Canta o Judeu
«Canas do amor, canas, canas do amor Polo longo dum rio Canaval vi florido, Canas do amo.»
Canta o Escudeiro o romance «Mal me quieren en Castilla» e diz Vidal:
VIDAL
Latão, já o sono é comigo Como oivo cantar guaiado, Que não vai esfandegado...
LATÃO
Esse é o Demo que eu digo! Viste cantar Dona Sol: Pelo mar voy a vela, Vela vay pelo mar?
VIDAL
Filha Inês, assi vivais Que tomeis esse senhor Escudeiro cantador E caçador de pardais, Sabedor revolvedor Falador gracejador Afoitado pela mão, E sabe de gavião... Tomai-o por meu amor.
Podeis topar um rabugento, Desmazelado, baboso, Descancarado, brigoso, Medroso, carapatento. Este escudeiro, aosadas, Onde se derem pancadas, Ele as há-de levar Boas, senão apanhar.. Nele tendes boas fadas.
MÃE
Quero rir com toda a mágoa Destes teus casamenteiros! Nunca vi Judeus ferreiros Aturar tão bem a frágoa. Não te é milhor mal por mal, Inês, um bom oficial, Que te ganhe nessa praça, Que é um escravo de graça, E mais casas com teu igual?
LATÃO
Senhora, perdei cuidado: O que há-de ser há-de ser; E ninguém pode tolher O que está determinado.
VIDAL
Assi diz Rabi Zarão.
MÃE
Inês, guar'-te de rascão! Escudeiro queres tu?
INÊS
Jesu, nome de Jesu! Quão fora sois de feição!
Já minha mãe adivinha... Folgastes vós na verdade Casar à vossa vontade? Eu quero casar à minha.
MÃE
Casa, filha, muit'embora.
ESCUDEIRO
Dai-me essa mão, senhora.
INÊS
Senhor de mui boa mente.
ESCUDEIRO
Per palavras de presente Vos recebo desd'agora.
Nome de Deus, assi seja! Eu, Brás da Mata, Escudeiro, Recebo a vós, Inês Pereira Por mulher e por parceira Como manda a Santa Igreja.
INÊS
Eu, aqui diante Deus, Inês Pereira, recebo a vós, Brás da Mata, sem demanda, Como a Santa Igreja manda.
LATÃO
Juro al Deu! Aí somos nós!
Os Judeus ambos
Alça manim, ó dona, ha! Arreia espeçulá. Bento o Deu de Jacob, Bento o Deu que a Faraó
MÃE
Espantou e espantará. Bento o Deu de Abraão, Benta a terra de Canão. Para bem sejais casados! Dai-nos cá senhos ducados.
MÃE
Amenhã vo-los darão.
Pois assi é, bem será Que não passe isto assi. Eu quero chegar ali Chamar meus amigos cá, E cantarão de terreiro.
ESCUDEIRO
Oh! quem me fora solteiro!
INÊS
Já vós vos arrependeis?
ESCUDEIRO
Ó esposa, não faleis, Que casar é cativeiro.
Aqui vem a Mãe com certas moças e mancebos pera fazerem a festa, e diz uma delas, per nome Luzia:
Luz. Inês, por teu bem te seja! Oh! que esposo e que alegria!
INÊS
Venhas embora, Luzia, E cedo t'eu assi veja.
MÃE
Ora vae tu ali, Inês, E bailareis três por três.
FERNANDO
Tu connosco, Luzia, aqui, E a desposada ali, Ora vede qual direis.
Cantam todos a cantiga que se segue:
«Mal herida va la garça Enamorada, Sola va y gritos dava. A las orillas de um rio La garça tenia el nido; Ballestero la ha herido En el alma; Sola va y gritos dava.»
E, acabando de cantar e bailar diz Fernando:
FERNANDO
Ora, senhores honrados, Ficai com vossa mercê, E nosso Senhor vos dê Com que vivais descansados. Isto foi assi agora, Mas melhor será outr'hora. Perdoai pelo presente: Foi pouco e de boa mente. Com vossa mercê, Senhora...
Luz. Ficai com Deus, desposados, Com prazer e com saúde, E sempre Ele vos ajude Com que sejais bem logrados.
MÃE
Ficai com Deus, filha minha, Não virei cá tão asinha. A minha bênção hajais. Esta casa em que ficais Vos dou, e vou-me à casinha.
Senhor filho e senhor meu, Pois que já Inês é vossa, Vossa mulher e esposa, Encomendo-vo-la eu. E, pois que des que naceu A outrem não conheceu, Senão a vós, por senhor Que lhe tenhais muito amor Que amado sejais no céu.
Ida a Mãe, fica Inês Pereira e o Escudeiro. E senta-se Inês Pereira a lavrar e canta esta cantiga:
INÊS
Si no os huviera mirado No penara, Pero tampoco os mirara. O Escudeiro, vendo cantar Inês Pereira, mui agastado lhe diz:
ESCUDEIRO
Vós cantais, Inês Pereira? Em vodas m'andáveis vós? Juro ao corpo de Deus Que esta seja a derradeira! Se vos eu vejo cantar Eu vos farei assoviar..
INÊS
Bofé, senhor meu marido, Se vós disso sois servido, Bem o posso eu escusar.
ESCUDEIRO
Mas é bem que o escuseis, E outras cousas que não digo!
INÊS
Porque bradais vós comigo?
ESCUDEIRO
Será bem que vos caleis. E mais, sereis avisada Que não me respondais nada, Em que ponha fogo a tudo, Porque o homem sesudo Traz a mulher sopeada.
Vós não haveis de falar Com homem nem mulher que seja; Nem somente ir à igreja Não vos quero eu leixar Já vos preguei as janelas, Por que não vos ponhais nelas. Estareis aqui encerrada Nesta casa, tão fechada Como freira d'Oudivelas.
INÊS
Que pecado foi o meu? Porque me dais tal prisão?
ESCUDEIRO
Vós buscastes discrição, Que culpa vos tenho eu? Pode ser maior aviso, Maior discrição e siso Que guardar o meu tisouro? Não sois vós, mulher meu ouro? Que mal faço em guardar isso?
Vós não haveis de mandar Em casa somente um pêlo. Se eu disser: - isto é novelo - Havei-lo de confirmar E mais quando eu vier De fora, haveis de tremer; E cousa que vós digais Não vos há-de valer mais Que aquilo que eu quiser.
(para o criado)
Moço, às Partes d'Além Me vou fazer cavaleiro.
MOÇO
(Se vós tivésseis dinheiro Não seria senão bem...)
ESCUDEIRO
Tu hás-de ficar aqui. Olha, por amor de mi, O que faz tua senhora: Fechá-la-ás sempre de fora.
(para Inês)
Vós lavrai, ficai per i.
MOÇO
Co dinheiro que leixais Não comerei eu galinhas...
ESCUDEIRO
Vae-te tu por essas vinhas, Que diabo queres mais?
MOÇO
Olhai, olhai, como rima! E depois de ida a vindima?
ESCUDEIRO
Apanha desse rabisco.
MOÇO
Pesar ora de São Pisco! Convidarei minha prima...
E o rabisco acabado, Ir me-ei espojar às eiras?
ESCUDEIRO
Vai-te per essas figueiras, E farta-te, desmazelado!
MOÇO
Assi?
ESCUDEIRO
Pois que cuidavas? E depois virão as favas. Conheces túbaras da terra?
MOÇO
I-vos vós, embora, à guerra, Que eu vos guardarei oitavas...
Ido o Escudeiro, diz o Moço:
MOÇO
Senhora, o que ele mandou Não posso menos fazer.
INÊS
Pois que te dá de comer Faze o que t'encomendou.
MOÇO
Vós fartai-vos de lavrar Eu me vou desenfadar Com essas moças lá fora: Vós perdoai-me, senhora, Porque vos hei-de fechar.
Aqui fica Inês Pereira só, fechada, lavrando e cantando esta cantiga:
INÊS
«Quem bem tem e mal escolhe Por mal que lhe venha não s'anoje.» Renego da discrição Comendo ò demo o aviso, Que sempre cuidei que nisso Estava a boa condição. Cuidei que fossem cavaleiros Fidalgos e escudeiros, Não cheios de desvarios, E em suas casas macios, E na guerra lastimeiros.
Vede que cavalarias, Vede que já mouros mata Quem sua mulher maltrata Sem lhe dar de paz um dia! Sempre eu ouvi dizer Que o homem que isto fizer Nunca mata drago em vale Nem mouro que chamem Ale: E assi deve de ser.
Juro em todo meu sentido Que se solteira me vejo, Assi como eu desejo, Que eu saiba escolher marido, À boa fé, sem mau engano, Pacífico todo o ano, E que ande a meu mandar Havia m'eu de vingar Deste mal e deste dano!
Entra o Moço com uma carta de Arzila, e diz:
MOÇO
Esta carta vem d'Além Creio que é de meu senhor.
INÊS
Mostrai cá, meu guarda-mor E veremos o que i vem. Lê o sobrescrito. «À mui prezada senhora Inês Pereira da Grã, À senhora minha irmã.» De meu irmão...Venha embora!
MOÇO
Vosso irmão está em Arzila? Eu apostarei que i vem Nova de meu senhor também.
INÊS
Já ele partiu de Tavila?
MOÇO
Há três meses que é passado.
INÊS
Aqui virá logo recado Se lhe vai bem, ou que faz.
MOÇO
Bem pequena é a carta assaz!
INÊS
Carta de homem avisado.
Lê Inês Pereira a carta, a qual diz:
«Muito honrada irmã, Esforçai o coração E tomai por devação De querer o que Deus quiser.» E isto que quer dizer? «E não vos maravilheis De cousa que o mundo faça, Que sempre nos embaraça Com cousas. Sabei que indo Vosso marido fugindo Da batalha pera a vila, A meia légua de Arzila, O matou um mouro pastor.»
MOÇO
Ó meu amo e meu senhor!
INÊS
Dai-me vós cá essa chave E i buscar vossa vida.
MOÇO
Oh que triste despedida!
INÊS
Mas que nova tão suave! Desatado é o nó. Se eu por ele ponho dó, O Diabo me arrebente! Pera mim era valente, E matou-o um mouro só!
Guardar de cavaleirão, Barbudo, repetenado, Que em figura de avisado É malino e sotrancão. Agora quero tomar Pera boa vida gozar, Um muito manso marido. Não no quero já sabido, Pois tão caro há de custar.
Aqui vem Lianor Vaz, e finge Inês Pereira estar chorando, e diz Lianor Vaz:
LIANOR
Como estais, Inês Pereira?
INÊS
Muito triste, Lianor Vaz.
LIANOR
Que fareis ao que Deus faz?
INÊS
Casei por minha canseira.
LIANOR
Se ficaste prenhe basta.
INÊS
Bem quisera eu dele casta, Mas não quis minha ventura.
LIANOR
Filha, não tomeis tristura, Que a morte a todos gasta.
O que havedes de fazer? Casade-vos, filha minha. Inês Jesu! Jesu! Tão asinha! Isso me haveis de dizer? Quem perdeu um tal marido, Tão discreto e tão sabido, E tão amigo de minha vida?
LIANOR
Dai isso por esquecido, E buscai outra guarida.
Pêro Marques tem, que herdou, Fazenda de mil cruzados. Mas vós quereis avisados...
INÊS
Não! já esse tempo passou. Sobre quantos mestres são Experiência dá lição.
LIANOR
Pois tendes esse saber Querei ora a quem vos quer Dai ò demo a opinião.
Vai Lianor Vaz por Pêro Marques, e fica Inês Pereira só, dizendo:
INÊS
Andar! Pêro Marques seja. Quero tomar por esposo Quem se tenha por ditoso De cada vez que me veja. Por usar de siso mero, Asno que me leve quero, E não cavalo folão. Antes lebre que leão, Antes lavrador que Nero. Vem Lionor Vaz com Pêro Marquez e diz Lianor Vaz:
LIANOR
Nô mais cerimónias agora; Abraçai Inês Pereira Por mulher e por parceira.
PÊRO
Há homem empacho, má-hora, Cant'a dizer abraçar.. Depois que a eu usar Entonces poderá ser:
INÊS
(Não lhe quero mais saber Já me quero contentar..).
LIANOR
Ora dai-me essa mão cá. Sabeis as palavras, si?
PÊRO
Ensinaram-mas a mi, Porém esquecem-me já...
LIANOR
Ora dizei como digo.
PÊRO
E tendes vós aqui trigo Pera nos jeitar por riba?
LIANOR
Inda é cedo... Como rima!
PÊRO
Soma, vós casais comigo,
E eu com vosco, pardelhas! Não cumpre aqui mais falar E quando vos eu negar Que me cortem as orelhas.
LIANOR
Vou-me, ficai-vos embora.
INÊS
Marido, sairei eu agora, Que há muito que não saí?
PÊRO
Si, mulher saí-vos i, Qu'eu me irei pera fora.
INÊS
Marido, não digo isso.
PÊRO
Pois que dizeis vós, mulher?
INÊS
Ir folgar onde eu quiser
PÊRO
I onde quiserdes ir, Vinde quando quiserdes vir Estai onde quiserdes estar. Com que podeis vós folgar Qu'eu não deva consentir?
Vem um Ermitão a pedir esmola, que em moço lhe quis bem, e diz:
Señores, por caridad Dad limosna al dolorido Ermitaño de Cupido Para siempre en soledad. Pues su siervo soy nacido. Por ejemplo, Me meti en su santo templo Ermitaño en pobre ermita, Fabricada de infinita Tristeza en que contemplo,
Adonde rezo mis horas Y mis dias y mis años, Mis servicios y mis daños, Donde tu, mi alma, Iloras El fin de tantos engaños. Y acabando Las horas, todas llorando, Tomo las cuentas una y una, Con que tomo a la fortuna Cuenta del mal en que ando, Sin esperar paga alguna.
Y ansi sin esperanza De cobrar lo merecido, Sirvo alli mis dias Cupido Con tanto amor sin mudanza, Que soy su santo escogido. Ó señores, Los que bien os va d'amores, Dad limosna al sin holgura, Que habita en sierra oscura, Uno de los amadores Que tuvo menos ventura.
Y rogaré al Dios de mi, En quien mis sentìdos traigo, Que recibais mejor pago De lo que yo recebi En esta vida que hago. Y rezaré Com gran devocion y fé, Que Dios os libre d'engaño, Que esso me hizo ermitaño, Y pera siempre seré, Pues pera siempre es mi daño.
INÊS
Olhai cá, marido amigo, Eu tenho por devação Dar esmola a um ermitão. E não vades vós comigo
PÊRO
I-vos embora, mulher Não tenho lá que fazer
(Inês fala a sós com o Ermitão):
INÊS
Tomai a esmola, padre, lá, Pois que Deus vos trouxe aqui.
ERMITÃO
Sea por amor de mi Vuesa buena caridad. Deo gratias, mi señora! La limosna mata el pecado, Pero vos teneis cuidado De matar-me cada hora. Deveis saber Para merced me hacer Que por vos soy ermitaño. Y aun más os desengaño: Que esperanças de os ver Me hizieron vestir tal paño.
INÊS
Jesu, Jesu! manas minhas! Sois vós aquele que um dia Em casa de minha tia Me mandastes camarinhas, E quando aprendia a lavrar Mandáveis-me tanta cousinha? Eu era ainda Inesinha, Não vos queria falar.
ERMITÃO
Señora, tengo-os servido Y vos a mi despreciado; Haced que el tiempo pasado No se cuente por perdido.
INÊS
Padre, mui bem vos entendo Ó demo vos encomendo, Que bem sabeis vós pedir! Eu determino lá d'ir À ermida, Deus querendo.
ERMITÃO
E quando? INÊS I-vos, meu santo, Que eu irei um dia destes Muito cedo, muito prestes.
ERMITÃO
Señora, yo me voy en tanto.
(Inês torna para Pêro Marques):
INÊS
Em tudo é boa a concrusão. Marido, aquele ermitão É um anjinho de Deus...
PÊRO
Corregê vós esses véus E ponde-vos em feição.
INÊS
Sabeis vós o que eu queria?
PÊRO
Que quereis, minha mulher?
INÊS
Que houvésseis por prazer De irmos lá em romaria.
PÊRO
Seja logo, sem deter
INÊS
Este caminho é comprido... Contai uma história, marido.
PÊRO
Bofá que me praz, mulher
INÊS
Passemos primeiro o rio. Descalçai-vos.
PÊRO
E pois como?
INÊS
E levar me-eis no ombro, Não me corte a madre o frio.
Põe-se Inês Pereira às costas do marido, e diz:
INÊS
Marido, assi me levade.
PÊRO
Ides à vossa vontade?
INÊS
Como estar no Paraíso!
PÊRO
Muito folgo eu com isso.
INÊS
Esperade ora, esperade! Olhai que lousas aquelas, Pera poer as talhas nelas!
PÊRO
Quereis que as leve?
INÊS
Si. Uma aqui e outra aqui. Oh como folgo com elas!
Cantemos, marido, quereis?
PÊRO
Eu não saberei entoar..
INÊS
Pois eu hei só de cantar E vós me respondereis Cada vez que eu acabar: «Pois assi se fazem as cousas». Canta Inês Pereira:
INÊS
«Marido cuco me levades E mais duas lousas.»
PÊRO
«Pois assi se fazem as cousas.»
INÊS
«Bem sabedes vós, marido, Quanto vos amo. Sempre fostes percebido Pera gamo. Carregado ides, noss'amo, Com duas lousas.»
PÊRO
«Pois assi se fazem as cousas»
INÊS
«Bem sabedes vós, marido, Quanto vos quero. Sempre fostes percebido Pera cervo. Agora vos tomou o demo Com duas lousas.»
PÊRO
«Pois assi se fazem as cousas.»
E assi se vão, e se acaba o dito Auto. |