NATUREZA MORTA

As frutas estão podres
sobre a mesa.
Não é a ação do tempo,
o curso irrefreável da natureza.
Não é o desligamento
maligno da matéria.
São frutas sobre a mesa.

As frutas estão podres.
Não é o que consumiste
nas tuas horas de insônia,
a brasa do cigarro
reverberando no vazio.
Não é a pobreza,
o subdesenvolvimento
ou a ação do vento
que encera os ossos.
São frutas sobre a mesa.

As frutas estão podres.
A maçã e sua espada,
a pêra, sua anatomia,
o abacaxi refratário
vestindo organdi.
Não é a epifania,
o signo que aspira a eterno,
a luz táctil de Morandi.
Não estão no lugar do Deus ausente.
Não anunciam a morte da semente.
São frutas sobre a mesa.

As frutas estão podres.
Não quero refrear a sua química.
Não quero vasculhar o seu mistério.
Não quero conceder beleza a elas.
Não é o imperativo categórico.
Não é o animal que em nós se aninha.
Não é a dramatização de um conceito
nem a contrafação do diamante
ou aquilo que o amante faz no leito.
São frutas sobre a mesa posta.
Estão podres.
Não em busca de resposta.


ESTAMPAS DE MINAS
para Donizete Galvão

I

Alcantilados azuis.
........Celofane onde o gado pasta.
Uma moringa de água
........entre mãos negras ásperas.
Touro do céu.
........Trilhas de poeira prata.

Com o indicador descubro
.........essa estrela no mapa.

II

Ponte de cinco facas
.........a madrugada pesa
sobre esse dorso de pedra
.........que luta contra a serra
sob chicotes de lona
..........limpa o suor do rosto
e sobe a Ladeira da Glória
..........pata ante pata
como se comesse sombra.

III

O silêncio dos cotovelos sobre a mesa
se quebra com o ranger das mandíbulas
mastigando pedras.

IV

Uma moeda cintila
no azul safira
espelha o sol a pino.

Um mendigo se equilibra
entre estátuas de zinco.

O sino repica.
Os ossos estalam.
Murmuram os vivos.

V

Cemitério de pedras
..........sob o plenilúnio
onde alguns arbustos e ervas
..........cravadas na paisagem movediça
que o ônibus rumina e regurgita
..........nos diz que o espaço existe
e que a Terra
.....................gira.

VI

Folhas de cobre
..........farfalham com a brisa.

A luz amarelo-espada
..........dessa terra sem nome
arfa alguns instantes
..........antes de dar o bote.

Ergue-se em um último relâmpago.
..........Depois morre.

VII

Diamante de Minas
.........e suas águas repartidas
turbilhão de luz no cardume dessa face
.........oculta sob as folhas secas dos juncos
ronrona a memória e o eco de seus mortos
.........sobe da garganta do vale
e ressoa na amídala da árvore
.........sob forma esférica de ave
sinos doces de pluma sonora
.........espessa réptil lanosa
em algumas carícias breves abatida
.........se abre em pétalas de orvalho sobre a relva
e vermelho bale.

VIII

Cascalhos caídos do céu
.........formam toda a extensão da estrada
que se desdobra frondosa
.........em suas sete mil copas e casas.
Cidades que são uma lâmpada acesa.
.........Cidades que são uma única porteira
e alguém escorado no umbral
..........tendo atrás de si a morte
e alguns convidados à mesa

Cidades de pedra e sal
.........nadam no mar ancestral da memória
luzes que piscam e solitárias
.........emulam a noite.

IX

Tuas casas velhas
.........de ferrolhos doentes
e as folhas das janelas pensas
.........sobre paredes encardidas.

Uma mulher sorri à porta
.........com um buquê de sempre-vivas.

MIGRAÇÃO

nuvens
nuvens passam
nuvens ficam
nuvens escapam umas das outras
nuvens se lubrificam
nuvens panteras brancas líquidas
nuvens em descompasso
nuvens formam um emaranhado
nuvens se chocam e deslizam dentro de um lago
nuvens-alvo nuvens-nume nuvens-cravo nuvens-figo
que resumem em si a terra dos cacos
que sussurram no ouvido dos homens de barro
a terá fofa e quente que arfa
a terra que cospe areia
sob os sapatos do viajante calmo
na estrada de terra batida
de flanco escuro de barro sem margem
do viajante que anda a sós
com sua sombra verde
sob nuvens que marcham
nuvens que em multidão tapam o azul-acácia
e se enterram no horizonte
tumba egípcia laranja grave
que todo viajante alcança
se anda com seus próprios passos
se anda corre levita
que todo viajante alcança
no espaço de uma vida

PARMÊNIDES

Não dura a sombra dos homens contra a luz,
a palidez do dia e sua fatura
de signos que a essas frutas se reduz,
a consciência dos mortos não dura

o instante extinto e obliquo de um segundo.
Não duram as cinzas sobre a mesa fria,
a claridade mítica em que o mundo,
num lampejo, quase à sua revelia,

às mãos do místico se entrega intacto.
Não duro e não duras mais que o momento
em que o Ser à míngua se inscreve em ato

forjando em seu espelho o movimento,
o percurso que vai da Idéia ao fato,
entregue a flor ao Vento que há no vento.