LEDA E O CISNE
Em cortinas de luz que o Sol refrata,
pousado o bico em colo de safira,
íntima só da lâmina de prata
que ao cair mata o que no ser respira
e tinge de sangue o abismo que acata
a doce faca que ao matar suspira,
como um castelo, límpida e exata,
nega-se a quem insidioso a aspira.
Revolve as asas de estrutura bela
no ar que é a asa pura de uma Ave ausente,
pende volátil e finalmente sela
com o arpão vivo que lhe orna a frente
o pacto que aos dois enfim anela:
o muro esvai-se em pétalas
........................................gemente.
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URNA
Estrelas pascem a solidão noturna,
lusco-fusco de cinza sob prata
que ora é clarão que o fundo negro mata,
ora insetos entregues a uma urna.
Ser e não ser conjugam-se no mito
dessa cúpula vazia, erma gruta,
que traz nos seus dentes a antiga luta
da matéria que de minha alma omito.
Estalactites de gelo etéreo e mudo,
e a luz inteligível encena a Peça:
contas de ar e cristal sobre um veludo
escuro que o destino humano traça:
não há no mundo quem traduzindo meça
o quê de eterno que há no ser que passa.
FÁBULA MILENAR
E DE COSTUMES
o rei sofre
........Uruk dorme
o rei reflete
........Uruk dorme
o rei repousa
........Uruk dorme
ESTÁTUAS DE SAL
para Bruno Tolentino
Pisando espumas de veludo vivo,
em candeias de luz entretecida,
cavalga tendo o sol como cativo
da sua luz minguante e enfraquecida,
senhora da matéria indigente,
que está no fruto e dentro da semente,
que restringe sem nunca ser restrita,
está na zona azul do céu que some
na solidão amorfa e infinita
dessa constelação que o breu consome
e no seu ventre escuro enfim devora
a via-láctea e toda a rubra aurora.
É a química da morte imperativa
que faz arder o combustível eterno
da seiva que nas veias corre viva!
Ah! Mármore luzente e sempiterno
que brilha e inebria a alma com sua luz
opaca e com artifícios a seduz!
Engana a eternidade que se exila
na luz meridional e vil da Idéia,
apagada a inscrição da mão na argila,
Fênix que em si mesma fogo ateia
e morre à noite fria do conceito
que aspira contra a vida ser perfeito.
Beleza, irmã mais nova da mentira!
A brisa que entre as folhas se enovela
serpente de ar que ao luar se estira ,
enfuna e risca o horizonte a vela,
não sabe nada da ciência arcana
que a todos seres na matéria irmana
e, no caos informe da Natureza,
vivendo o sono milenar das Eras,
transforma o tempo mesmo em sua presa,
nessa alquimia oculta onde liberas,
mãe de tudo quanto foi engendrado,
o Espírito do que o tem limitado.
Templo de cristal mudo e incandescente,
feixes de opala sulcam e abrem a terra,
um monumento que em silêncio mente
a riqueza do passado que encerra,
fonte que rompe a noite borbulhando,
essa trilha batida por onde ando
às voltas com as lâmpadas celestes,
o ranger de um anônimo minério
que brota verde destes chãos agrestes,
lápides rindo à luz do cemitério,
o mar que quebra e sempre se renova:
com quantos rostos o eterno nos prova
sua metamorfose e nos intriga?
Quantos tempos de si o Tempo desdobra
mudando em nova face a face antiga?
Qual o fim de nossas vidas nessa Obra
que gira incontinenti e só aguarda
a completa extinção que já não tarda?
Ah! O marulho da água na clepsidra
não nos deixa apartar do sonho a vida!
E, na apostasia onde o Ser se envidra,
negando em si o real que se liquida
no devir convergente do universo,
encontra sempre no seu mundo inverso,
alheio ao tempo e suas cicatrizes,
aquela morte e imitação da aurora
tela branca sem tons e sem matizes
que, não transfigurando o que adora,
é passo que não dá seu rastro à areia
e cessa com tudo o que em vão semeia.
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DANÇA
É inútil querer que a alma seja una.
Simulacro que aos olhos se desata
e na matéria cálida ressuma
alheia à vida e, no que morre, intacta.
Tela branca que o tempo mimetiza
em sua fluência líquida e serena,
inscrição frugal que a ave faz na brisa,
signo ancestral que aos mortais acena
do interior do âmbar resoluto,
giro dos seres que o sensível esmalta
à sombra do que fora Absoluto:
irmã do Ser Imóvel do Eleata,
dança a alma quando vive do que falta
e morre em quanto aspira ser exata.
TRÍPTICO PARA FRANCIS BACON
I
Escorrendo no laranja ocre
lívido
.......as vísceras inutilmente exigem forma.
Do plano abstrato
e sem ritmo
onde estátuas se movem
invisíveis em suas sedas e istmos
de pele que a pálpebra deflora
o verme busca a terra
o verme busca o ventre aprazível da terra
o verme busca a terra podre
e o que ela expectora.
A imitação de ourives
em tons e cores explode:
o movimento incide sobre a matéria
e a devora
no espaço tempo agora
.................................do anátema
no exílio da carne lúcida e viscosa
que apaga o céu da vista
e a tinta vibra desforme.
Na cruz inversa de Cimabue
mais uma vez o verme morre.
II
Escapando ao olhar,
a intensidade dissolve os corpos
na luz a pino de outro espaço.
O nervo se tenciona e une
os pedaços dos homens em um tempo parado.
O papa de Velázquez evapora
em um grito eternamente estático.
O andarilho
................tenta em vão achar a porta,
a chave engastada na pata
e a seta nos mostra a luta
de dois corpos
.................sobre a cama em forma de átrio.
III
O tempo tem outra espessura
e corre infenso à física da luz e suas regras
quando suspenso no vazio de um plano azul,
dentro de hastes de metal
.....................................em uma jaula delgada
- a vítima abatida na vitrine
presa pela ilharga olhando o nada.
Vermelho
assim se fez o mundo.
Vermelho vivo e licoroso
o sêmen e a terra são vermelhos
quando a mente divaga
entre escombros de vida e a vida intacta
no útero
............vermelho do sangue do cordeiro
vermelho que não se apreende nas cinzas da manhã
vermelho da luz noturna
vermelho da vagina e do feltro
vermelho mais que cor vibrátil
imune a qualquer ponteiro.
Homens içados em hastes
no escuro aceso
.......................pelo toque e pelo do tato
o mundo em movimento
corpos mutilados
.......................vêm e vão no tempo espaço
a tela virando sombra da Idéia que refrata.
O mundo como evento.
O mundo como templo
sujo e conspurcado.
Em fila indiana o gado dócil vai ser abatido
no vermelho vivo e rápido
que desfaz as linhas e contornos
do auto-retrato.
No vermelho em que o olho vê o mundo como rapto.
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