Características evidenciadas pela obra de Bosch, tais como a desarticulação do mundo da realidade imediata ou a condensação, em formas plásticas bem definidas, de forças instintivas mas recalcadas nos mais íntimos meandros do subconsciente, pareciam encontrar uma notada equivalência nas condições impostas pelas leis do “automatismo psíquico”, fundamentais no processo de criação dos comparticipantes do movimento surrealista.
No Primeiro Manifesto lançado pelos seus iniciadores, André Breton definia surrealismo nos seguintes termos: “Automatismo psíquico puro, pelo qual nos propomos exprimir, seja verbalmente seja por escrito, seja por qualquer outra forma, o funcionamento real do pensamento. Ditado do pensamento na ausência de todo o controle da razão e de toda a preocupação moral ou estética”.
Devido à enorme influência exercida pelo movimento surrealista na arte do século XX e à sua voz nos meios cultos, Bosch e a sua obra passam a ser admirados sem reservas e glorificados, facto a que também não será estranha a difusão, até ao grande público, dos princípios da psicanálise estabelecidos por Sigmund Freud e seus discípulos e continuadores.
No entanto, vários investigadores começaram a levantar a questão da falta de identidade entre os dois processos, o de Bosch e o dos surrealistas. Estudos mais ou menos recentes, sem dúvida de importante valor para a melhoria da compreensão de toda a obra do Mestre como os do crítico francês Jacques Combe, do historiador holandês Dr. J. Bax e do erudito alemão Wilhelm Franger, vêm redimensionar a problemática do seu processo criador, já anteriormente aqui aflorada, concluindo pela finalidade apologética da obra de Hieronymus Bosch. Referem que, enquanto nos surrealistas a finalidade máxima é escapar à acção dominadora da vontade consciente, o que fica comprovado pela definição de Breton acima transcrita, em Bosch, ao contrário, a finalidade máxima seria a de colocar a mesma vontade ao serviço do processo criador. Teríamos assim que, enquanto os primeiros tentam uma optimização de condições para a livre criação através da exteriorização dos impulsos provindos directamente do mais profundo do sub-consciente, o segundo submetê-las-ia quase sempre à rígida disciplina da vontade consciente.
Contudo, esta última hipótese não se apresenta como verdadeiramente definidora e limitativa dos dois processos de criação: como tudo parece indicar, em Hieronymus Bosch os impulsos originados no seu subconsciente deviam ser de tal modo irreprimíveis que eles romperiam com impetuosidade através das figurações plásticas voluntariamente preconcebidas. Não se discute se a imaginação criadora do artista foi condicionada por finalidades apologéticas preconcebidas, isso é um facto estabelecido. Mas as preocupações moralizadoras do pintor, evidenciadas através de símbolos mais ou menos pronunciados e recorrentes, se bem que constantemente presentes na sua obra não devem – por si só – ser suficientes e até esgotarem a questão da problemática da necessidade da criação artística. Nem, é claro, para se ver a obra de Bosch apenas como um enorme conjunto de formas plásticas imbuídas de forte cariz pedagógico. Por outro lado, é também certo: quanto mais não seja pela problemática decorrente desta questão e pela dificuldade em lhe dar resposta, constatamos que na essência os dois processos de criação artística podem coincidir em certos pontos, posto não se ajustem completamente. Apesar disso, há que atender igualmente, na obra de Bosch, aos ditames que vêm do mais profundo do ser, pois muitas vezes “A grande aventura é no interior que se desenrola” (sic Fernando Batalha in “Aforismos”).
Temos igualmente que verificar o interesse de não nos cingirmos e ligarmos umbilicalmente às teorias explicativas e a trabalhos que demasiadas vezes cedem à tentação da história da arte imbuída de determinismo artístico, onde cada artista passa ao seguinte o melhor da sua produção, procurando uma sequência lógica mas também referenciando e catalogando os artistas de uma maneira rectilínea e simplesmente ortodoxa. Atitude perigosa, quer por esquecer as antecipações, “tão necessárias para o desenvolvimento global”, quer sobretudo por pôr de parte, muitas vezes, o direito e a liberdade de usufruir de maneira descomprometida valores plásticos de superior beleza formal e aliciante colorido mas tidos por “incomuns”.
Há que deixar também que a estética se ponha ao serviço do prazer sensorial, mesmo que para isso se corra o risco de confundir ou chocar os novos Wolfflins ou Robert Frys. A educação pela arte, se bem que necessária, diria mesmo urgente, não pode eliminar a liberdade interpretativa nem, muito menos, a liberdade criadora. Como dizia Leonardo da Vinci, a pintura, sendo também outras coisas, “é uma poesia visível”. Contemplando os trabalhos de Bosch, essa afirmação ganha um surpreendente realce e traz-nos à memória o ensinamento do Prof. Agostinho da Silva. Diz ele: “A nossa obrigação é ser poeta à solta, cada um com a sua poesia, porque tanto há poesia em fazer versos como em fazer matemática ou olhar aquela nuvem e dizer que se parece vagamente com um crocodilo ou com um anjo batendo as asas”.
É quando a pintura, ou qualquer tipo de Arte, afinal, contribui para o enriquecimento espiritual do Homem, para a realização do homem integral, através da fruição estética e dos aliciantes trabalhos de pesquisa e estudo - que a “psique fragmentada”, de que nos fala sir Herbert Read, está finalmente reconstituída.
João Garção |