O homem contemporâneo, obrigado mais uma vez a enfrentar um desconhecido saturado de terríveis ameaças, parece ajustar com facilidade as visões de pesadelo daquele Mestre de antanho às que lhe são oferecidas a cada passo no seu contacto diário com a realidade brutal dos acontecimentos mundiais. À sua volta tudo se desagrega. O mundo aparece-lhe como caótico, desordenado, monstruoso, precisamente como Bosch o entrevira nas suas proféticas pinturas. Não apenas o mundo exterior, representado pelo drama da humanidade, mas também o interior de cada ser humano agitado por múltiplas e poderosas forças de acção contraditória: o cinismo dos argentários, a frieza sinistra dos fanáticos políticos ou religiosos, a corrupção ética da magistratura, o desleixo e o desinteresse dos governantes, o oportunismo e a mesquinhez de sectores dirigentes embrutecidos pelos interesses espúrios e grosseiramente manipuladores.
Decerto as imagens do Inferno e dos Demónios, tais como Bosch os pintou, já pouco devem aterrorizar os homens do século em que vivemos, se estes olharem para eles distraidamente, deixando-se aliciar apenas por encenações fantásticas e a configuração grotesca dos seus habitantes. Mas se esse olhar for mais atento e perscrutador, se ele for analisando com cuidado cada pormenor isoladamente, ou apreciando cada um dos conjuntos concebidos de maneira a apreender-lhes o sentido (os seus quadros assemelham-se a miniaturas ampliadas) já as impressões recebidas serão bem diferentes.
Este homem contemporâneo sentirá, então, quanto elas se ajustam às suas próprias visões do mundo em que vive. A tão grande distância no tempo e no espaço, dir-se-ia que Bosch assistiu, dominado por grande angústia, às destruições indescritíveis de cidades inteiras submetidas aos bombardeamentos aéreos, aos combates, aos impulsos instintivos que transformam os homens em seres cruéis, impiedosos, sedentos de sangue, verdadeiros demónios de configuração monstruosa sob a capa de perfis habituais.
Formalmente, devemos entender a aversão de Bosch à perspectiva e à regra pictórica como a identificação do pintor com a realidade obscura e a busca da identidade através da arte que deixa de ser um mero exercício estético para abarcar a totalidade dos temas.
O espírito entra então num mundo fantasmagórico, onde seres e coisas tomam um aspecto imprevisto, possuídos e revelados por cores muitas vezes irreais.
Paralelamente, surge uma problemática que no âmbito deste trabalho nos interessa à partida e para a qual, afirma-se desde já, é difícil encontrar uma resposta segura: saber em que momento exacto a imaginação do pintor se expandiu livremente, sem obedecer a qualquer condicionamento imposto por objectivos bem definidos. Penetrar nesta problemática é para nós tanto mais importante quanto André Breton, “pai” do movimento surrealista, referiu que o surrealismo “repousa na crença na realidade superior de certas formas de associação negligenciadas até aí, no forte poder do sonho, no jogo desinteressado do pensamento”. Os surrealistas procuram uma ultrapassagem do dito “mundo real” para penetrarem naquele das aparições, dos fantasmas, porque – referem – é somente à aproximação do fantástico, nesse ponto onde a razão humana perde o seu controle espartilhador, que se têm todas as hipóteses de traduzir emoções das mais profundas do Ser. Como o autor de “A chave dos campos” disse um dia: “O que há de extraordinário no fantástico é que, vai-se a ver e já não há fantástico – só o real existe.”. |