A MÃO SOBRE O MÁRMORE / ELEGIA PARA SOPHIA
José António Gonçalves
04-04-2005 www.triplov.org

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à memória de Sophia de Mello Breyner Andresen
 

Agora chegou a vez, Sophia,

da terra funda e dos seus habitantes;

não há sombra, nem sol, nem a copa

das árvores, o mar e os pássaros

despedindo-se ao longe,

a caminho de outras ilhas verdes

e dos lagos imensos, na linha do luar

de onde regressavam sempre

em fugazes instantes futuros

somente para te saudar.

 

Não temas o frio do sepulcro,

nem o emaranhado inconstante das raízes,

o som dos passos dos que te visitam

para te trazer orações e flores.

Aquecer-te-emos com a memória,

banhar-te-emos com lágrimas de poesia,

abraçaremos por ti o viajante anónimo

e saciaremos com a água dos rios

a tua sede de vida, silenciando a noite

para te louvar a palavra no nascer do dia.

 

Dorme, sem medo de enfrentares os labirintos

nos teus sonhos novos, na voz guardada

nos versos de encantamento pelas paisagens.

Falar-te-emos, lendo-os alto, como rezas

nas manhãs das missas aos domingos

nas igrejas onde aprendeste a te recolher.

Haverá penumbra, a brancura do algodão,

umas nuvens lúcidas no céu azul, a areia

onde te sentavas esperando pelos peixes,

imitando à distância a púrpura dos flamingos.

 

Descansa e sorri apenas, rodeada de ninfas,

de fadas, das maravilhosas deusas do Olimpo

com as quais, sem querer, te confundes

e reaprende a amar coisas doces, os açucares

e os frutos tropicais, os poemas da Grécia Antiga,

as viagens pelos montes, o contra-luz das primaveras,

os cavalos portentosos subindo as colinas íngremes,

enquanto te cantamos uma primitiva cantiga

recordando os sons da pátria, o burburinho das cidades,

a beleza misteriosa dos riachos, as cores dos nenúfares.

 

E verás como andarás por aí, no nosso encantamento,

a recordar a missão obrigatória dos bardos, dos poetas;

confessarás, em voz grave e pausada, toda a história

da poética em gestação, do efeito das ondas oceânicas

no elaborar das páginas perfeitas de um livro, do ser

que parte e regressa, do eco dos gritos nos vales e abismos,

da importância das casas, das pradarias, do espaço

sideral e do pensamento livre no quotidiano dos homens.

E é assim, nos braços desse testemunho, que me rendo,

como tu, uma vez mais, ao poder da palavra,

no momento em que a traço.

 

JOSÉ ANTÓNIO GONÇALVES
(Funchal.11.07.04.inédito)