::::::::::::::::::::::::::::Nuno Júdice::::

POEMAS - INDEX

Tarde com sol
Exercício
Prognósticos
Interrupção de viagem
Jantar
Vigília branca

Vigília branca

As cadeiras em que ninguém se sentava foram

para o lixo. Partidas, tábuas podres, também poderiam

ter servido de lenha, se houvesse alguém

que precisasse de acender a lareira para se aquecer. Mas

há muito que ninguém se junta nesta mesa

onde a última toalha se colou à madeira, com

a humidade dos invernos que se sucederam aos invernos,

acumulando solidões no fundo de vinho seco das garrafas

esquecidas. Ainda abri a cortina, para ver se alguém

chegava; mas os campos estendiam-se até ao limite

das colinas e do bosque; alguns animais ainda pastavam; e

se alguém se avistava, logo desaparecia, como se não

fizesse parte da paisagem.

 

Afasto a casa vazia do meu horizonte. Sob

as suas telhas, os camponeses esvaziaram os barris

da última aguardente; e os guinchos do porco degolado

ressoaram pelas frinchas do fundo, quando o vento soprava

do norte. Nos caminhos de terra, os velhos de pés descalços

não sentiam as raízes ásperas ou as pedras, como se

uma sola de pele se lhes tivesse colado aos pés; e um silêncio

negro envolvia as suas roupas – o silêncio que

lhes serviria de mortalha, nos velórios sem ninguém,

a não ser as sombras da noite. Que resta da sua memória?

Passos apagados pelas chuvas, nomes que nenhuma

pedra regista, rostos que se perderam nas madrugadas

de névoa, as mais frias entre o natal e o fim do ano.

 

Mas sento-me com eles nesta casa de ninguém, e

sirvo-lhes o vinho da noite, para que matem a sua sede.