REVISTA TRIPLOV
de Artes, Religiões e Ciências


Nova Série | 2012 | Número 23-24

 
 

Nos últimos meses, tive vários encontros, em Portugal e no Brasil, com Luís Serguilha. O primeiro foi em Vila Nova de Famalicão, no projeto de Wilmar Silva, «Portuguesia». O segundo verificou-se em Recife e Olinda, durante a  VIII Bienal Internacional do Livro de Pernambuco. O terceiro teve lugar em São Paulo, na Universidade 9 de Julho, onde participámos na «Semana de Letras & Tradutor e Intérprete – 2011». Finalmente, ainda em São Paulo, estivemos presentes num lançamento coletivo da Arte-Livros Editora, no Memorial da América Latina. O livro de Serguilha, «Khamsin-Morteratsch», inclui-se na coleção Poiésis. Antes deles e após estes sucessos, Serguilha tem corrido o Brasil, apresentando o seu livro «Koa'e» e dando palestras.

 

MARIA ESTELA GUEDES

1. Luís Serguilha
e os seus materiais de construção

ANEXOS

2. Entrevista de Abujamra a Pipol, Estela Guedes e Luís Serguilha e memória fotográfica de Luís Serguilha no Brasil
3. Um poema de Luis Serguilha

                                                                  

Vamos tomar essa obra, «Koa'e», como ponto de partida para algumas considerações. O volume, de cerca de 500 páginas, foi publicado em Belo Horizonte, na Anome Livros, em 2011. É uma edição de Wilmar Silva, poeta-performer. Inclui prefácio e posfácio, aqui designados por «Lahars» (avalanchas), de Marcelo Moraes Caetano e Victor Sosa.

Como declaram os comentadores indicados, os estaleiros verbais de Luís Serguilha podem ler-se aleatoriamente, significando isto que não existe desenvolvimento de ideias que careça de princípio e um fim; segundo Sosa, interessa neles mais o som do que a letra, como observou em sessões de recitação do próprio autor; Marcelo Moraes Caetano classifica a palavra de Serguilha como monstruosa, recusando-se a considerar textos as suas obras. De facto não constituem textos, se por texto entendermos uma unidade literária que, lida ou não de forma seguida, encerre uma imagem central, uma história, uma ideia, qualquer acontecimento que nos dê a sensação de acabada. Os objetos verbais de Serguilha assemelham-se mais a listagens de frases. Passando para um nível superior, parecem chuva de proposições (mas não de palavras), o que vai ao encontro de Marcelo Moraes Caetano, ao referir a escrita incontinente.

A questão é algo turbulenta, porque as fronteiras também se desfazem entre as lahars (para usar os termos do poeta) lírica e ensaística. Ou seja, Serguilha dispõe de um estilo, inconfundível, e é com ele que apresenta todos os seus objetos verbais, incluídas as palestras. Não existe fronteira entre poema e ensaio.

Perguntei ao autor que papel representava a poesia na sua vida. Vamos ver como se apresenta a resposta, e a partir daí desenvolverei a ideia contida no meu título sobre os materiais de construção de Luís Serguilha.

EDITOR | TRIPLOV

 
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SOBRE TUA PERGUNTA... EU NÃO DIRIA PAPEL.... MAS UMA CONEXÃO DE INTENSIDADES CONTÍNUAS COM O COSMOS.... HOLOMOVIMENTO EM POTÊNCIA... FLUXOS SOBRE A SUBSTÂNCIA OCULTA DO MUNDO.... UM MERGULHO NO DESCONHECIDO.... RELEMBRO ALGUMAS CONVERSAS QUE TIVE CONTIGO E AVIVO O SEGUINTE: O poeta transgride todos os limites ao refazer o vazio, ao imergir no insondável, ao magnetizar-se nos engolfamentos abíssicos do deserto como um instante obscuro e ardente a reactualizar as revelações pré-babélicas, a integridade alucinante do DEVIR-MUNDO, a fulguração enigmática.

Ele procura o ilimitado, alimenta-se do informulável, da composição imaginária-radical, da revelação do relâmpago da existência absoluta, do magnetismo da estranheza, da regressão incomensurável do CORPO à anterioridade da palavra, ao território da liberdade criadora que se abre ao mundo, à originalidade, à transgressão instauradora que tenta desvendar a esfinge, o segredo do universo através das viagens utópicas, das usinas do desejo, da eclosão do corpo-resistente, do corpo-emintermitência. O poeta acolhe a disseminação dos sentidos, as alucinantes sensorialidades, a fulguração alquímica da luz-sombra, do firmamento-terra, da matéria (in)orgânica-mutante do livro da NATUREZA. O poeta e o silencio anunciam as suas forças das efusões puramente iniciáticas sacralizando as atmosferas do inexplicável, do indizível, do não sentido como matérias centrais das gestações de um animal-dançante-musical. O silêncio da energia encantatória e do desassossego destrói a tentativa da definição, do "PAPEL" da poesia, da significabilidade, da tradução, da exegese, porque as suas incubações obscuras, as suas fecundações hipnóticas, as suas mutações eruptivas transformam o poema numa coexistência incontaminada, selvagem reinaugurando o simulacro-do-simulacro, estimulando os corpos mónadas-labirínticos. As circunvoluções alucinantes habitam o lugar do poeta como ritmicidades de linhas mutantes. A exteriorização dos caminhos racionalizadores-totalizadores-delimitadores é dizimada pelo desabrochamento do relâmpago da correspondência entre a linguagem, o silêncio, o desconhecido, o (in)visível, a germinalidade da raiz da vida, os perpétuos renascimentos, o abismo-do-devir, o caos antecipador da existência e da reinauguração da metamorfose. Relembrando Derrida "o texto só é texto se ele oculta ao primeiro olhar, ao primeiro encontro a lei da composição e a regra do seu jogo. Um texto permanece, aliás sempre imperceptível". Além disso, ainda há uma fortíssima incógnita sobre a inter-relação dos neurónios. O alvoroço criativo é ilimitado, possivelmente é indizível.

Contudo, poderei dizer que tento transformar a vida, o subsolo da aceitação e recusa da existência através das subducções lávicas da corporalidade, da força catalítica, incicatrizável, oscilatória e regeneradora da palavra. Tento enfrentar a tensão dos contrários, o infinito, a indeterminação, o não-sentido com a respiração do desejo, da transgressão do imaginário como fenómeno estético destruidor dos determinismos. O confronto com o nada, com a ausência, com o lugar-nenhum, com o insondável, com as infinitas possibildades eleva dentro de mim a incerteza, a incógnita, os andamentos utópicos e a reinauguração da metamorfose até ao indefinível e à impossibilidade que alimenta sempre o alvoroço, a necessidade da desordem, a violência da imersão e da emersão da construção poética. Mergulho no inexprimível, no desconhecido, na gestação obscura para procurar a minha origem, o meu silêncio sempre num processo regenerador, antropofágico, cósmico, mitológico, quântico. O poema absorve o desabrochamento, as pulsões e o espírito do poeta como uma reconstrução mútua repleta de energias e ritmos transmutadores, libertadores, cosmogónicos.

Na página em branco procuro a substância oculta do mundo, o mistério da Natureza, a intemporalidade, a contínua dança da energia e a autonomia selvática. As palavras alastram-se, diferenciam-se como "cavalos sonâmbulos" na ebulição do labirinto. O sublime da palavra explode a sua origem no impenetrável, na obscuridade, na música dançante do pensamento.

Encontro-me com o poema na eclosão do silêncio, na armadilha do caos, na libertação do enigma silencioso, na antecipação da vida, no desassossego, na perscrutação do abismo, no desejo de unificar os elementos da Natureza. O Poema tenta espiritualizar a violência como matéria em agitação estética através das suas linhas vibratórias, das suas imagens expansivas, do seu magma libertador da vida. Busco o poema na contínua dança da energia, nas multiplicidades do corpo indomável, na consciência caótica, na espiritualidade, na energia do informulado, na integridade do ser, na fertilidade ardente da mãe-terra, nas fusões do nada, nas interrogações do deserto, na violenta nidação da ausência e do exílio.

Neste regresso à ascendência nativa o poema esculpe-me, reconstrói-me entre a visão-outra, o inexplicável, a voz das vozes, a impossibilidade e a transmutação da unidade original, resistindo ao poder... sempre, criando desterritorializações. Na esfinge que me persegue procuro o lugar verdadeiro, a teia cósmica, a vida verdadeira que está ausente relembrando Rimbaud: eis o holomovimento, a natureza dinâmica onde tudo de inter-relaciona. A palavra instaura-se onde germina a nossa ignorância e avivando Kuniichi Uno "pensar é cruel sobretudo porque nunca conseguimos pensar corretamente" [...]

De algo podemos ter a certeza: Luís Serguilha escreve apaixonadamente, crê no poder da palavra e na sua capacidade de penetrar os segredos da Natureza. Mas será a escrita a-lógica, apenas fervilhante de emoções, a ferramenta adequada para a experiência cósmica? O facto de o poema refazer o vazio, como ele escreve, signica que «No Princípio era o Vazio?». O poeta, embora não se explique, uma vez que recusa o pensamento tradicional (e nem esse procedimento se requer à poesia) labora em situações genesíacas, de grande potencial criador. O plano de composição em que trabalha é o da reunião de materiais para a construção. Um dia terá erguido a casa, mas, de momento, voa pela cidade e pela floresta, de onde vai carreando para o estaleiro os mais variados materiais de construção.

Que materiais? Serguilha não é radical ao ponto de usar palavras sem nexos gramaticais como praticaram alguns concretistas. Pelo contrário, uma das suas técnicas é a construção de novos vocábulos, colando muitos termos por meio da hifenização. Na generalidade, os seus poemas são listas de frases, algumas, compostas. A maior parte das compostas articula-se por um «que» sem significado sintáctico preciso, e por um «onde» que também pode carecer do sentido de lugar. Para usar um termo tão em moda, «projeto», Serguilha projeta essas frases, isto é, arremessa-as. Ele é um poeta da intensidade. O que me ficou de mais insistente das várias palestras de Serguilha a que tive oportunidade de assistir, foi a regularidade com que recorre à imagem da projeção e a veemência com que se opõe ao discurso lógico.

Voltando aos materiais de construção sintática, em que repito existirem as proposições, algumas delas complexas, acrescento o mais importante: falta total de presença humana. Na área da morfologia, a grande percentagem de elementos é constituída por nomes (mais substantivos que adjetivos), os verbos desempenham papel fraco, e verifica-se a inexistência de um «eu», um «ele» ou «ela», atribuíveis a autor ou outras pessoas. Em consequência, o leitor é convocado com maior intensidade do que é habitual a pronunciar-se sobre o que lê ou vê, da mesma forma que, face a filmes como «Matrix» (o autor menciona vários filmes de ficção científica em que a identidade humana se dilui), o espetador é forçado a interrogar-se sobre os objetos visuais mais do que sobre questões como o acontecimento, as personagens ou a narrativa, em geral pulverizados; por isso, de outra parte, a referencialidade é substantiva, por deliberado gesto de afastar a irrupção da subjetividade, ela diz respeito a coisas vistas ou ouvidas, em livros, televisão ou cinema, para mencionar um campo de referência cultural dominante. Outro campo de referência é constituído por diversas ciências, com preferência pela Geologia, que está na origem do léxico vulcanológico, geotérmico e outro, a começar pelo vulcão do Hawai que dá título ao seu livro «Koa'e». De notar entretanto que o discurso é a-científico, uma vez que a-lógico (recusa de formular conceitos, de apresentar hipóteses), e por vezes cientificamente incorreto, como nas imagens «os crocodilos/ de úteros rítmicos» e os «mugidos/ das serpentes» (Koa'e, p. 282; p. 303). Pergunta então o leitor, e com toda a razão: qual a diferença entre os úteros dos crocodilos em Serguilha e as guelras das rosas em Herberto Helder (cito de cor HH: as rosas com as suas guelras ferozmente em arco)? As imagens, em ambos os poetas, não criam híbridos verbais igualmente?

Não sei responder, qualquer tentativa de explicação tem meta na aporia. Precisávamos de instrumentos para identificar limites. Esta outra imagem de Serguilha, «os óvulos ígneos dos pássaros» (Koa'e, p. 309), não me leva a falar do cientificamente correto. É uma bela imagem, poeticamente correta.

Serguilha representa um ponto de chegada, extremo, do discurso da modernidade, quer se trate dele na arte, quer na filosofia. Já nos anos 60 ou antes Karl Popper analisava o discurso dos filósofos da Escola de Frankfurt, para criticar o seu vazio embrulhado numa grande folha de papel de celofane retórica. São velhos problemas que só vale a pena relembrar porque, no caso de Serguilha, se sente com mais veemência a falta de ferramentas críticas para analisar as obras mais radicais. A Academia dará certamente uma resposta, uma vez que os livros de Serguilha vão ser objeto de tese de doutoramento numa universidade do Brasil.

 

 

 

 

 

LUÍS SERGUILHA
KOA'E
Belo Horizonte, Anome Livros Editora, 2011

 

 

LUÍS SERGUILHA NO TRIPLOV
http://triplov.com/poesia/Luis-Serguilha/index.htm

 

 

 

 

Maria Estela Guedes (1947, Portugal). Diretora do TriploV
ALGUNS LIVROS. “Herberto Helder, Poeta Obscuro”, Lisboa, 1979;  “Mário de Sá Carneiro”, Lisboa, 1985; “Ernesto de Sousa – Itinerário dos Itinerários”, Lisboa, 1987; “À Sombra de Orpheu”, Lisboa, 1990; “Prof. G. F. Sacarrão”, Lisboa, 1993; “Tríptico a solo”, São Paulo, 2007; “A poesia na Óptica da Óptica”, Lisboa, 2008; “Chão de papel”, Lisboa. 2009; “Geisers”, Bembibre, 2009; “Quem, às portas de Tebas? – Três artistas modernos portugueses”, São Paulo, 2010; "Tango Sebastião", Lisboa, Apenas Livros, 2010; "A obra ao rubro de Herberto Helder", São Paulo, 2010; "Risco da Terra", Lisboa, 2011; "Arboreto", São Paulo, Arte-Livros, 2011. TEATRO. Multimedia “O Lagarto do Âmbar, levado à cena em 1987, no ACARTE, com direcção de Alberto Lopes e interpretação de João Grosso, Ângela Pinto e Maria José Camecelha, e cenografia de Xana; “A Boba”, levado à cena em 2008 no Teatro Experimental de Cascais, com encenação de Carlos Avilez, cenografia de Fernando Alvarez  e interpretação de Maria Vieira. 

 

 

© Maria Estela Guedes
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