Vislumbrou através da copa do castanheiro o prédio da
Maison des ÉtatsUnis, do outro lado do Boulevard Jourdan, que formava
um u que se dissolvia e tornava a reaparecer por entre os galhos.
Abaixando a vista, Lucien deparava o alambrado da Cité Universitaire
que se interrompia para dar lugar às escadarias sob o pórtico da entrada
principal do campus.
Lucien procurou novamente a presença do jardineiro,
mas não o encontrou mais. Deu as costas para a avenida e tomou uma aleia
lateral do parque. Pensou nas estações interiores de cada espécie e
observou como cada uma reagia de modo diverso ao fim do inverno; como os
plátanos, quase nus, sua seiva acordando lentamente do letargo.
Deixou a aleia e cortou o parque em diagonal, na
direção da Rue de L’Amiral Mouchez. No meio do caminho, encontrou dois
exemplares de cerejeira japonesa, já carregados com suas enormes flores
rosicler, num esbanjamento de vida e de alegria que contrastava com
a severidade dos olmos que, próximos ao pequeno e quase delicado coreto
do parque, espreitavam seu telhado em forma de cone. Castanheiros,
freixos, plátanos, cerejeiras japonesas, olmos. Cinco diversas
manifestações sobre a passagem do tempo.
Lucien contornou o lago, onde galinhas d’água e patos
incursionavam pela lâmina de água tecendo rastros prateados e retornou
na direção do Boulevard Jourdan. Chegou novamente ao pé do castanheiro.
Postandose abaixo da copa, podia agora perceber que uma intensa
luminosidade se projetava sobre a árvore, que decompunha, afiava e
direcionava os raios de sol; era como se suas folhas estivessem
mergulhadas em uma borbulhante substância leitosa com tons amarelos e
vermelhos, formando espirais, redemoinhos e crispações alaranjadas que
pareciam saltar na direção de seus olhos.
Tomou a direção da porta de saída mais próxima e
alcançou a calçada, dandose conta, agora sim, de que dera uma longa
volta ao redor do parque, e que voltara àquele mesmo ponto de partida
como se estivesse fadado a cumprir alguma espécie de ritual inadiável
que nem sequer figurava em seu consciente.
À sua frente, outra vez, o prédio da Maison des
ÉtatsUnis, formando um u, agora nítido, que abrigava bicicletas, um
pequeno pátio e as escadarias frontais. Mais acima, os arcos da entrada
principal do campus internacional, que deixavam entrever, ao fundo,
erguendo‑se do piso de cerâmica, canteiros de buchinhos talhados a
pique. Assemelhavam‑se a ziguezagueantes muralhas anãs, quando vistos a
uma certa distância.
Como se precisasse ganhar tempo para se decidir,
Lucien retirou do bolso um caderno de notas, no interior do qual
encontrou uma folha solta, dobrada, quadriculada, que dizia: dia 15 de
abril: 10h30 – Paris/Lisieux; chegada às 12h36. 12h46 – Lisieux/Deauville,
chegada às 13h13; dia seguinte, 16 de abril: 8h24 – Deauville/Lisieux,
chegada às 8h49. 8h57 – Lisieux/Paris, chegada às 10h50. 12h34, saída de
Paris a Le Havre, chegada às 14h40.
A princípio, esse roteiro parecia mais seguro que o
outro, que aventara, e que passaria por Deauville/Lisieux; Lisieux/Rouen
e finalmente Rouen/Le Havre. É que este último, embora não o obrigasse a
voltar a Paris, fazendo‑o se desviar apenas até Rouen, forçaria Lucien
a correr para alcançar sua última conexão. Além do mais, Lucien nunca
estivera na Estação de Rouen, e agastava‑o ter de correr por uma gare
que não conhecia.
De todas as alternativas de que dispunha, e já que
Lucien pretendia de qualquer maneira permanecer algumas horas que fosse
em Deauville, o mais confortável e inteligente roteiro era mesmo seguir
para lá por Lisieux, no dia 15 de abril, continuando o trajeto, no dia
seguinte, a partir dali, de ônibus até Le Havre, passando por Honfleur.
Além da comodidade, o percurso de ônibus pelas estradas vicinais entre
Deauville e o porto Le Havre era mais convidativo do que o trajeto pela
via férrea – e Lucien não teria que voltar a Paris, nem mesmo retroceder
até Rouen. Mais tarde, Lucien descobriria que estavam corretas suas suposições – e
quando passasse por Honfleur, com suas pequenas casas e albergues
sólidos e convidativos, à beira dos penhascos, sentir‑se‑ia ao mesmo
tempo enternecido e exultante, lembrando‑se de que aquele vilarejo, com
sua orla construída a pique e entalhada pela força persistente do vento,
abrigara os pincéis de Monet, Pissarro, Seurat. Lucien dobrou novamente o papel quadriculado, fazendo a folha deslizar
para o interior do caderno de notas. Seus dedos finos e sua palma da mão
esbranquiçada se fecharam sobre o pequeno caderno, que desapareceu no
bolso externo do paletó. Atravessou o Boulevard Jourdan, sentindo nas narinas um odor pesado de
gases que furgões, camionetas e automóveis despejavam no ar. Caminhou
em direção ao edifício de convivência internacional, entrou pela porta
lateral direita, que leva aos refeitórios, e tomou um lugar na fila que
leva ao guichê. À sua frente, a volumosa cabeça de um marroquino fincada sobre uns
ombros caídos. Impaciente, o jovem estudante vibrava o tacão da bota
sobre o piso. O ruído percutia nos ouvidos de Lucien, que girou o corpo
para a esquerda, procurando, na distância em que se encontrava, decifrar
o cardápio do dia, pregado à direita e à esquerda dos refeitórios
contíguos.
Subitamente o marroquino encara Lucien nos olhos e para de repicar o
chão. – Tem cigarro? – ele pergunta com viva naturalidade. A atitude do estudante interrompeu a concentração de Lucien, que
buscava refazer uma antiga sintonia com aquele lugar, o qual frequentara
anos atrás. A franca espontaneidade do marroquino pareceu‑lhe uma
espécie de variante do comportamento agressivo demonstrado instantes
atrás ao repinicar o chão do hall. Uma infantil necessidade de
reafirmação social, ao lado de uma até certo ponto ingênua
imprevidência, refletiu Lucien, poderiam sem dúvida explicar aquele
gesto do marroquino.
Ele pensou ainda muitas outras coisas, ocupando sua mente de modo a
evitar que a pergunta do jovem provocasse nele uma atitude explosiva. Não obstante, o jovem voltou à carga, falando um francês que sem grande
sucesso parecia querer perseguir o sotaque parisiense e o dialeto de sua
faixa etária, e recolocou a pergunta, lamentando que se esquecera de
comprar cigarros quando passou pela cafeteria. – Não, não tenho nenhum – Lucien respondeu, sem tirar os olhos do
cardápio. Às suas costas, dois alemães conversavam com os ombros colados
um ao outro, as mãos esquecidas nos bolsos.
A fila alongava‑se e engrossava rapidamente, Lucien sentiu‑se
comprimido e estrangeiro em meio a tipos aparentemente desempregados,
vadios, estudantes e gente da própria Cité Universitaire. Havia uma enorme distância entre eles e Lucien, a começar pela idade, e
a terminar pela higiene pessoal, que em Lucien era uma marca quase
obsessiva desde os tempos em que, também estudante, trabalhara por
alguns meses naquele imundo bistrot da Rue Mabillon. E, embora se
sentisse atraído pelo viver sem compromissos ou horários, acreditava
que não seria capaz de abandonar inteiramente a rotina. A fila avançava e Lucien ainda não conseguira decifrar o menu. O vulto
policialesco e agigantado da mulher que vendia os vales do refeitório
crescia atrás das barras douradas do guichê, com seu ar desconfiado e
rude, e Lucien ainda não se decidira se almoçaria no refeitório da
esquerda ou da direita. Seria, provavelmente, a última vez em que comprava uma refeição ali, já
que tudo o que o fizera visitar o campus com regularidade outrora já
não estava mais lá. Toda aquela manhã luminosa, de fato, não passara de um nostálgico e
dolorido estratagema de visita ao passado através da recuperação de
velhos hábitos, muito embora Lucien facilmente percebesse que de nada
lhe adiantavam os antigos lugares quando um enorme fosso se havia
formado entre sua vida de agora e aquela dos tempos de Su Ian. Lucien recebeu o bilhete passager, modalidade utilizada por
frequentadores não residentes no campus universitário. A mulher do
guichê entregou‑lhe o troco como se Lucien tivesse acabado de assaltá‑la
e aquele fosse o último dinheiro de que ela dispunha. Com o troco e o
bilhete entre os dedos, Lucien se afastou da fila, dirigindo‑se para o
local onde estava exposto o cardápio dos refeitórios.
O refeitório cujas janelas davam para o gramado do centro de convivência
internacional oferecia uma entrada de salada verde, canard avec purée,
além de outros acepipes mutuamente excludentes, como couscous,
andouille ou choucroute garni. O eclético e multinacional cardápio
terminava com queijos (Munster ou Chèvre), ou ainda gateau vanille. O outro salão, cujas janelas davam para o jardim dos arcos, oferecia uma
miserável salade de concombre de entrada, e a escolher: thon sauce
américaine ou pavé de rumsteack avec de ris, finalizando com um medíocre
ananas melba, que poderia ser inteligentemente preterido, imediatamente
pensou Lucien, em nome de uma cascate au citron.
Era enorme o risco de provar um pato enjoativo e passado demais, mas
Lucien resolveu arriscar, assim optando pelo refeitório que descortinava
o verde gramado do campus. Deslizou a bandeja ao longo do balcão de serviço. Com afetado pudor
alcançou com a ponta dos dedos o prato de canard e afetadamente, ainda,
impediu que a servente despejasse sobre a temível escolha uma nova
colherada de um purê moribundamente alvar.
Serviu‑se de uma pequena porção de salada verde e se decidiu
francamente por uma generosa fatia de Pont L’Evêque, queijo que lhe
pareceu uma miragem gastronômica uma vez que não constava do cardápio
fixado à entrada. Arrematou sem pestanejar uma garrafa de Gamais, haja vista que as outras
duas alternativas: um Gaillac e um Côte du Rhône ordinário – não o
seduziam de modo algum, o primeiro por sua evidente impropriedade; o
segundo por sua áspera palatabilidade. Sob tais condições, o rótulo
daquela bebida ligeira, esportiva e descompromissada chegava a ser quase
atraente. Lucien pagou a garrafa de Gamais e alçou a bandeja, dirigindo‑se até
onde sarcofagicamente se amontavam, em cestas de vime, pães cortados em
pedaços desiguais. A pesquisa arqueológica próxima da superfície era
lamentável e Lucien somente encontrou pães com o miolo cinzento, a casca
ressecada e sem o saudável brilho do pão fresco. Enfiou o antebraço até
o fundo do cesto, revirando seu conteúdo, até que a metade de uma
bisnaga é finalmente desenterrada. Escolheu um lugar em uma das mesas,
próximo à janela, sentou‑se e alçou até a altura dos olhos o
arqueológico pedaço de pão, examinando‑o com semblante desabonador.
Em seguida serviu‑se de vinho, prelibando o inocente toque de veludo do
Gamais; sorveu o primeiro gole e notou seu aroma quase inconsistente e
seu retrogosto juvenil.
Observa agora o copo e através da mortiça refração da luminosidade que
perpassa o vidro percebe uma coloração indefinida, levemente arroxeada,
que ganha brilho e uma profundidade ligeiramente alucinatória quando
Lucien inclina a borda do copo em sua direção, de modo a examinar a
textura e o corpo da bebida, sem a interferência do recipiente.
Lucien enche novamente seu copo, dando agora uma forte tragada no
líquido, em busca de uma resposta mais ativa da bebida. Com falsa
segurança, deixa o copo de vinho sobre a bandeja e gira a cabeça em
movimento panorâmico. Dezenas de rostos ao seu redor crispam‑se à
medida que braços nervosos executam a tarefa de levar a comida do prato
à boca. Manoplas atacam os bocados de pão; facas, garfos e copos
orquestram magistralmente uma espécie de ópera de desterrados
comensais.
Enquanto tangem, retinem e esgrimam com metais e vidros, com variado
nível de impetuosidade e destreza, Lucien passeia os olhos pelo salão.
Depara rostos, esgares, olhos tristes, imobilizados por longínqua
memória, por longínquos e saudosos afagos familiares. Não o agrada o que pressente no ar, muito menos o que vê. Paris assoma
quase impiedosa com seus estrangeiros mais modestos. Nisso ela mudou
muito pouco, pensa Lucien. A cidade do gosto, do fausto e da beleza
mostra sua impaciência de mundana. Para os desprivilegiados, o céu da
cidade é mais baixo, as vitrines ardem nos olhos, ofuscam, intimidam. Ele deixa tais considerações de lado, e pela primeira vez analisa a
composição de formas e cores que tem sobre a bandeja. O contraste entre
o panorâmico e o detalhe sempre o entusiasmou, e Lucien se sente por
vezes como um cineasta sem sua câmera, andando pelas ruas, em busca de
atores e cenários ao acaso; filtrando e capturando aqui e ali um
enquadramento, uma surpresa da luz. Nesse sentido, a bandeja inebria‑o. Antes de experimentar o pato, porém, Lucien se ergue e se encaminha até
a mesa de temperos. Apoia o prato sobre o tampo e se serve de mostarda. Um campo dourado e perfumado brota de sua memória. De uma janela de um
trem imaginário descortina os campos floridos de mostarda de Dijon. Os
pequenos capítulos das flores vibram sob os revérberos da luz,
enlouquecem à passagem do trem, como se a locomotiva abrisse à força um
caminho por entre os pedúnculos delicados da mostarda. Suas hastes
infletem para trás e para frente, para trás e para frente, sob o
deslocamento da massa de ar.
Já de volta a seu posto, Lucien come sem pressa, examina o grande
gramado interno, àquela hora vazio. O lugar lembra a Lucien um campo de
golfe inglês, não o peripatético reduto de suas incursões no debate
filosófico e político que ali tiveram lugar outrora. Mirando esse
panorama imóvel, Lucien não consegue nem mesmo extrair sua solitária
figura sob a neve daquele Natal em que Su Ian estivera ausente.
Lucien passa uma generosa porção de mostarda sobre o pão e leva‑a à
boca. Em seguida bebe mais um gole de vinho, que alivia a ardência
sensual da mostarda e confunde as papilas, fundindo o intenso aroma da
mostarda ao despojado bouquet do discreto Gamais.
Estala a língua e sorri, deslizando a seguir a polpa áspera superior da
língua entre as gengivas e o lábio inferior. Ergue depois a ponta
avermelhada da língua, deslizando‑a pelo céu da boca, como se buscasse
aspirar algum recôndito sabor mal‑explorado. Na parte superior da boca repete a operação que realizara na arcada
inferior.
Volta a passar uma generosa porção de mostarda sobre o bocado de pão,
segurando‑o com a extremidade dos dedos de modo que o miolo embebido de
mostarda toque de leve a superfície castanho‑clara do molho do canard.
Laivos de mostarda marcam agora a cremosa e brilhante gelatina que se
forma ao redor da ilha de purê. Lucien leva o pão tingido de castanho e
ouro à boca, alcança a faca com a mão direita e retém com o garfo
inclinado e pressionado pelo indicador esquerdo uma fatia de carne,
abordando‑a pelo flanco com a faca serrilhada.
Separa o pedaço cortado com o garfo, acomodando entre o naco e o cabo
uma parede de purê. Cuidadosamente o garfo ascende até sua boca,
enquanto o antebraço e o pulso de Lucien fazem o garfo girar 45 graus, e
encontrar os lábios semiabertos. Enquanto mastiga demoradamente o alimento, Lucien examina o purê que
restara sobre o prato. Paisagem lunar movente, estranho Mont‑Blanc em
trágico degelo, dissolvendo‑se em planura lacustre alaranjada e
castanha, como um iceberg plantado sobre lavas fumegantes.
A carne do pato sugere areias de uma praia, tendo à frente um mar de
sargaços e óleo densos. Lucien traga mais um gole do Gamais e seus olhos
mergulham na inconsciência súbita daquela paisagem gastronômica que se
formou em seu prato, e que invadiu sua imaginação.
A paisagem evoca cores outonais solapando volumes glaciais antes
estáticos e eternos, estimulando em Lucien um incômodo e opressivo
sentimento de solitude. Ele ataca mais uma porção da praia de acastanhada mousse, em que se
transformou o canard. Incontinenti reduz o volume glacial da paisagem
sobre a bandeja, cavando com a ponta do garfo uma pequena cova no purê,
que logo é escamoteada quando então a estrutura finalmente parece querer
ceder, afundar e se fundir ao magma que cerca o iceberg.
Lucien tira os olhos de seu exercício cenográfico e se apercebe de que
à frente se encontra uma jovem oriental, provavelmente coreana, sentada
ao lado do que parece ser seu companheiro, que por seu turno gesticula
muito. A jovem tem a cabeça apoiada de leve sobre o ombro esquerdo do
rapaz, de forma que a cada impetuosa contração de seu expressivo bíceps
sua cabeça feminina perde por instantes o ponto de apoio. Sem se incomodar aparentemente com os modos do rapaz, a coreana mantém o
pescoço dobrado, a cabeça inclinada, aguardando até que um novo espasmo
muscular do namorado viesse favorecer o contato entre o ombro dele e o
queixo e o meio‑rosto dela. Tal fato não ocorreu, e a vibrante
gesticulação do coreano, contrastada com a ilimitada solicitude de sua
companheira, ou ambas as coisas em separado, acabaram por exasperar
Lucien. Era inevitável que a jovem coreana sentada à frente, no amplo
restaurante universitário, lembrasse a Lucien, de pronto, o rosto oval e
neutro de Su Ian. Era também inevitável que a paisagem gastronômica em
seu prato, que há pouco o fizera recordar‑se do Mont‑Blanc, evocasse
agora aqueles dias em St. Gervais‑les‑Bains, estação de esqui plantada
numa das faldas do maciço do qual o Mont‑Blanc se projeta em seus
majestosos 4.807 metros de imensos paredões de neve. Ali, dois anos atrás, o etéreo branco da neve da Savoie recortara o
rosto marmóreo e impassível de Su, um pouco encoberto por um capuz
forrado de lã, por sinal castanha, que formava uma crespa moldura
penugenta e adolescente ao redor do esfíngico rosto de olhos rasgados e
incisivos, de narinas minúsculas e pomos salientes, estupendamente
harmonizados com a linha da testa, do nariz e do queixo. E, para além
daquele rosto, um pescoço afilado e despudoradamente alvo, plantado
ereto como um aspargo, envolto por uma gola alta e de cor vulcânica. E
para além dele o corpo delgado de Su Ian, envolto em lãs e depositado no
branco leito de um patamar em Le Betex; e, para além de tudo aquilo, o
bovino e desarmado olhar de Lucien. E para além de Lucien, e de sua
bovina felicidade, novamente a montanha de neve, franqueando sua mais
íngreme escarpa gelada ao olhar do francês. E mais adiante, ainda, para
além da notável engenharia dos Alpes, novamente Su Ian, planta pronta
para ser tocada entre flocos de neve, agora com seus braços abertos:
– Lucien, m’embrasse, alors! – dizia, como uma miragem. E ao fundo, e em todos os lugares, o Mont‑Blanc, e dentro e fora e em
todos os lugares, Su Ian. Su Ian e a coreana à frente, o purê e o Mont‑Blanc,
o refeitório e suas colunas e suas janelas até o alto, paredões
íngremes, por onde entra a luz. A coreana acompanhada do namorado se levanta e com os braços arqueados
empunha a bandeja para fora da mesa. O purê no prato de Lucien funde‑se
ao molho, a neve desaparece, toma seu lugar um sopro de vozes, um
tilintar de copos, uma orquestração de metais, enquanto vapores da
cozinha espiralam e um cheiro de repolho, creolina e um ranço de ave e
de carnes cozidas toma conta do ar, impregnando tudo, infiltrando‑se
corrosivamente na memória, sob as mesas e nas passagens.
Lucien solta o garfo na bandeja e a seguir move lentamente a base do
copo, girando‑a como se buscasse a sintonia de uma emissora de rádio.
Afunda o polegar da mão esquerda no miolo de um bocado de pão, e a
seguir comprime fortemente a casca enrijecida do pedaço de baguette com
o indicador, segurando com a outra mão o restante da fatia, em busca de
apoio. Um movimento horizontal do pulso esquerdo completa a tarefa.
Depois, corta com a mão direita uma fatia de Pont L’Evêque. E com o
auxílio do polegar e da lâmina transporta o pedaço de queijo por sobre
a bandeja, em um movimento atento e firme como o de uma grua deslizando,
acomodando‑o em seguida sobre o pedaço de pão que sustinha na ponta
dos dedos da outra mão. Após se servir da sobremesa, Lucien dispara seu ataque na direção do
Gamais, que neutraliza a textura emoliente e pouco refinada do queijo.
Gira a cabeça na direção dos janelões do refeitório e encontra o gramado
vazio como antes. Pronuncia o nome de Su Ian com o sotaque que lhe
pareceu apropriado para fazer com que aquele nome, dito em voz alta,
tivesse o poder evocativo que Lucien buscava. A luz mortiça sobre o gramado, recalcitrante realidade de agora,
resiste à evocação de Su Ian. Ela continua deitada sobre a neve, em um
patamar do Le Betex, pedindo a Lucien que a abrace. Contudo agora, suas
feições não são nítidas, e a voz de Su Ian vibra não mais colada aos
ouvidos de Lucien, mas teatralmente distante. Ele fixa o olhar sobre o pano verde do campus, e finalmente consegue
plantar sobre o gramado a figura da oriental em uma tarde ensolarada,
quando se despediram um do outro, aparentemente como sempre o faziam.
Algo sucedera, no entanto, que tornava aquela despedida especial. O que
teria havido ali, que não se repetiria mais? Lucien não sabia, pois em
seu convívio com Su Ian era frequente a impressão, ao se despedirem, de
que o liame que os unia se esgarçara e se fendera.
Sente agora dificuldade de abandonar a geografia da Cité Universitaire
e alcançar novamente o inverno nos Alpes, rever o rosto de Su Ian, ouvir
bem de perto sua voz. O verde do gramado é uma cortina que esconde o passado e o futuro, e que
caprichosamente consente em revelar a Lucien imagens pouco
significativas ou confusas, que Lucien preferiria ver substituídas por
outras que desafiassem sua sensibilidade. Lucien se serve de mais uma fatia de queijo e sorve nova golada de
vinho. Definitivamente não se sente capaz de erguer o tapete verde que
recobre tudo, e extrair da memória, debaixo das raízes da grama pujante,
a razão secreta que movia Su Ian, sempre, para fora do eixo de sua vida,
e que naquela vez quase se manifestara por intermédio de palavras. Estudantes atravessam o gramado, em busca de seus alojamentos. Apesar
da primavera, algumas folhas cruzam o ar, vítimas de uma nevasca tardia
de abril. Abaixando o tronco, Lucien consegue ver, através do requadro
da janela, uma nesga de céu pérola. Ao descer os olhos, subitamente Lucien vislumbra Su Ian, sentada sobre o
parapeito da janela, as pernas cruzadas contra os seios. Um novo esforço
de Lucien e a pérola de céu é a pérola da neve ao redor da face de Su,
que pede a ele que a abrace, mas para tanto Lucien deve deixar de ser um
mero espectador. Deve sair de si, projetar‑se sobre a miragem da neve,
debruçar‑se sobre aquele corpo oriental, colocar seus braços ao redor. Lucien no entanto se mantém onde está e o corpo de Su Ian, com os braços
abertos, deitado sobre o campo de neve, está estático e imóvel, quase
artificial como em uma fotografia.
Novamente Lucien vê sobre o céu pérola um retábulo de janela e nele,
sentada, pernas recolhidas contra o seio, Su Ian, e ao fundo, ainda, o
Mont‑Blanc. Pérola. Abaixo o vilarejo de St. Gervais‑les‑Bains, e em
um ponto dele o balcão da taberna do barbudo Wolf e da linfática Adèle e
sobre o balcão uma flute de vin pétillant e, ao redor da taberna de
Wolf e Adèle, casas e lojas e ruas com marcas castanho‑escuras, como o
molho que restou sobre o prato de canard, e ao longe pinheiros,
castanheiros, faux ébéniers, e sobre a vila o platô de Le Betex, e um
pequeno hotel com janelas para o Mont‑Blanc, e um retábulo da janela do
hotel de poucos quartos. Sobre o parapeito, Su Ian se encontra
enquistada no silêncio, suas mãos cruzadas sobre os joelhos, os joelhos
cruzados contra o peito, os cabelos atirados para o lado de fora da
janela, de modo que seu rosto se constrói na mente de Lucien ampliado e
próximo. Um rosto maior que o maciço do Mont‑Blanc e seu majestoso
cenário. E ela não encara a montanha, tampouco Lucien. Seu olhar é um
projétil que não ultrapassa o enquadramento da diminuta janela em que se
alojou. Lança‑se contra os batentes, vai e vem, estanca neutralmente
sobre a película gasta da madeira do velho hotel, estiola no mistério.
Su Ian está sentada sobre a borda da janela no pequeno hotel em Le Betex,
suas pernas recolhidas contra o peito, tamborilando com as unhas
pintadas de vermelho o vidro da janela‑guilhotina. Lucien recorda‑se
de que os pés de Su Ian eram feios, moldados à pressa por um pasteleiro
aprendiz e desengonçado, que depreciava a aparência, embora valorizasse
o sabor e a consistência da massa. A carne do corpo inteiro de Su Ian, a
exemplo de seus pés, cedia à pressão dos dedos até um passo aquém da
flacidez. Uma tensão convidativa se impunha ao dedo invasor,
estabelecendo uma alquímica correlação entre a suavidade da pele, a
compressão dos dedos e a resposta física; agentes magnéticos entravam
em ação para que todo o corpo, inclusive o olhar de Su Ian, se
mantivesse sobre a linha divisória entre o estranhamento frígido e
inabalável e o acolhimento dócil e demoníaco; uma espécie de inércia de
combatente, que sabe explorar o ímpeto do opositor e transformar o
impulso do atacante em arma de defesa. Logo em seguida, eles estavam abraçados na neve, no Mont Joli, e Su Ian
acolhera Lucien em seu burnous branco, de modo que os dois quase que
desapareciam, confundidos com o branco da neve ao redor. – É o final dos tempos – lembra Lucien de haver ouvido Su Ian
dizer‑lhe; e desta vez ela sorria sem um enigma. – Você acha possível que tudo isto em volta de nós possa acabar de uma
hora para outra? – recordara Lucien de haver objetado em tom teatral.
Sua pergunta ecoara no espaço desabitado em volta. Lucien segurara as
abas do burnous de Su Ian, sacudindo‑a, como se tivesse tomado de
pânico. Depois, ainda experimentando o frágil script que imaginara,
Lucien se lembra de haver acrescentado: – Veja, Su, os pinheiros imóveis e o fumo que sai das chaminés das casas
ao longe, ouça o ruído das águas lavando o cascalho e as pedras dos
rios. Como é concebível agora, neste exato momento, admitir que tudo o
que aqui se encontra termine? Não parece que tudo está em seu mais exato
lugar? Lucien abrira os braços, num gesto que açambarcava tudo e Su Ian sorrira
sem conviccão. A seguir, recolheu os braços. Lucien repetiu a indagação que fizera, agora mais diretamente, o dedo
em riste sob a luva: – Como você pode crer que tudo isso termine, Su? É preciso estar repleto
de pessimismo. O corpo esguio de Su então se ergueu sobre os cotovelos. Su Ian deteve o
olhar na ponteira de suas botas. Depois, displicentemente, sem se
preocupar com aquela débil arma apontada contra ela como salvação de um
argumento, voltou‑se na direção de um grande galpão de madeira com
freixos e pinheiros ao redor, com aparência de absoluto abandono.
Depois, ainda, moveu o queixo para a esquerda, até deparar um telhado
avermelhado, de onde subia uma fumaça branca. Lucien retraiu o dedo e o
antebraço, percebendo que Su Ian não estava mais no jogo, e que seu
teatral dedo em riste apontava para o vazio. Lucien cedeu o corpo, atirou‑se de costas sobre a neve, colocou as
mãos atrás da nuca, fechou os olhos e ouviu nitidamente o gorgolejo de
água que detectara há pouco. Transcorreu algum tempo até que Lucien se pusesse de pé. Su Ian cruzara
as abas do casaco sobre o ventre, permanecendo imóvel sobre a cobertura
de neve. Adiante de Su Ian, algumas dezenas de metros encosta abaixo, pinheiros
volteavam uma tulha agregada a uma cocheira. Um filete de água escura
abrira uma canaleta na espessa neve e escavava o gelo pela borda,
correndo celeremente sobre o leito. As águas, pensara Lucien, pareciam
ser o único elemento vivo na estação hibernal. Lembra‑se também de que
baixou os olhos na direção de Su Ian, e os olhos dela não estavam
voltados para o mundo imediato. Encontrou a bandeja de comida, o último bocado de queijo, a garrafa
quase no fim. O imenso salão do refeitório estava praticamente vazio.
Da cozinha e da copa vinham frases incompreensíveis, bater de bandejas,
ruído de pratos; uma serviçal erguia as cadeiras sobre o tampo das
mesas, avançando metodicamente na direção de Lucien. Concentrou sua mente naquele quadrilátero de madeira no qual o corpo
inteiro de Su Ian se desenhara. À frente, o Mont‑Blanc. A leste o túnel
do Grand Saint‑Bernard. Ao sul, Curmayeur, mas antes dele, Entrèves. A
oeste, Saint‑Gervais e, mais adiante, Megève. A sudoeste, Notre‑Dame
de Bellecombe, Beaufort; Albertville e Chambéry; e, subindo sempre,
Annecy, Genève e o lago Léman.
Ele via agora, implantado sobre o quadrilátero de madeira da janela do
pequeno hotel de Le Betex, um mapa regional que, no entanto, não
encobria o vulto de Su Ian com os olhos fixos nos batentes da janela. Assim é que os olhos de Su Ian estavam à altura do lago Léman; seus
ombros à altura de Megève; seus quadris plantavam‑se em Grenoble, de
modo que suas longas pernas cruzavam Albertville e os joelhos infletiam
em Beaufort. As canelas de Su Ian passavam pelo burgo de St. Maurice,
Val D’Isère e o monte Cenis – e seus calcanhares em algum ponto antes de
alcançar Almese, talvez no caminho de Viù. Su Ian volta‑se para Lucien e diz: – Está próximo. O Japão será a nova Atlântida. Você e eu seremos
pássaros, voando sobre os Alpes, será o encontro entre Ocidente e
Oriente, você e eu. O Japão mergulhará sob as águas. Veremos as ondas
enormes que se formarão quando estivermos voando bem alto.
Um filete dourado saía da ponta dos dedos de Su Ian, executava uma
parábola sobre o cume de um plátano e desaparecia atrás daqueles galhos
de nudez absoluta.
Por um curtíssimo instante, o cepo da árvore ganha uma película
dourada, crepitante e macia. Su Ian volta‑se para Lucien e no centro da
palma de sua mão esquerda, que ergue aberta até a altura dos olhos,
Lucien visualiza uma esfera luminosa, às vezes branca, às vezes dourada,
às vezes vermelha, às vezes azulada. A esfera na mão esquerda de Su Ian
parece querer dizer alguma coisa, comunicando‑se através das cores que
cambiam em uma escala de cromos com intervalos desiguais e que se
repetem a um ritmo constante. Lucien fecha os olhos no canto da mesa do restaurante universitário, e
os olhos de Lucien se fecham no quarto do pequeno hotel em Le Betex. Su
Ian está dizendo algo com aquela esfera luminosa, mas ele não consegue
entender. Agora está ouvindo a voz de Su Ian, uma voz moldada de acordo
com o compasso ditado pela esfera colorida: vermelho, ao sol; azul, sob
o sonho; branco, amanhã; ouro, viagem.
Deitado sobre o édredon da precária cama do albergue, ele abre novamente
os olhos. A esfera luminosa pisca a espaços: vermelho, azul, branco,
dourado: Su Ian diz sol, sonho, amanhã, viagem. Vermelho, ao sol; azul,
sob o sonho; branco, amanhã; ouro, viagem e muito mais. Lucien vê o rosto de Lucien comprimido entre os cotovelos. As mãos se
escondem atrás da nuca. Lucien tem as pernas esticadas e calça uma
botina de couro preta, de cujo salto desponta uma estalactite cinzenta.
Encostando o queixo no peito semiencoberto por um cachecol castanho e
vermelho, Lucien pode ver os pés, a biqueira de couro das botas. Mas
não se dá conta da estalactite cinzenta. – Estou com fome – diz Su Ian, ainda sentada sobre o parapeito da
janela, agora com um cálice de Calvados entre os dedos. – Nada de Atlântida, Su. Nada de bancarmos os pássaros – diz Lucien em
sua cadeira no refeitório agora inteiramente vazio. Interpondo‑se à sua voz de agora, Lucien rememora sua própria voz com
a empostação de dois anos atrás: – Vamos telefonar para Andrés e dizer que não vamos encontrá‑lo na
Suíça – dizia a voz de Lucien como um eco na cabeça de Lucien. O
companheiro de Su Ian, depois de haver pronunciado a frase, inclinara
sua cabeça para o lado esquerdo, na direção do pequeno lavabo do quarto. Recorda‑se ainda de que antes de formular o desejo de não mais ir ao
encontro de Andrés, preferindo a solidão do albergue em Le Betex,
entremeada por uma ou outra eventual descida até Saint‑Gervais para um
brandy com Wolf e Adèle, Lucien experimentara como era penoso, muitas
vezes, o ter de ingerir o discurso frio de Su, com seu verbo escasso e
pouco elucidativo, em meio ao contraste da embriaguez branca e lunar
daquela região.
Após alguns instantes em que a ideia de uma catástrofe a oriente chegou
a minar seu ocasional envolvimento com as coisas da natureza, Lucien
voltou‑se para Su, com o objetivo de encerrar o assunto: – Nada de mortes, Su, nada de Atlântidas, de pássaros apocalípticos, ou
sei lá mais o quê. É a humanidade que imola seu futuro, não um destino
impermeável à ação humana. Se quisermos, todos, evitar a catástrofe,
evitaremos. Lucien havia gostado da frase que construíra, até porque conseguira
imitar quase perfeitamente um oriental falando, lentamente,
inexpressivamente, quase como se tudo fosse sucumbir sob um lento
borbulhar de sílabas, e isso desconcertava Su Ian.
Depois então, e já que Su fizera um grande esforço para fingir que não
escutara absolutamente nada do que Lucien dissera, ele emendou, ainda
fazendo uso da modulação oriental: – Preciso de mais tempo aqui. Vamos telefonar para Andrés e dizer que
não vamos mais encontrá‑lo. Perdi inteiramente a vontade de esquiar. Não satisfeito com a forma como definira sua posição, voltou à carga: – A neve dos Alpes foi feita para a contemplação, mesmo que mórbida.
Apenas para isso. Decididamente não quero mais esquiar.
– Andrés nos espera, Lucien – lembrou Su. – Para esquiar. Apenas para esquiar, e isso é muito pouco – retrucou
ele. – Você era um bom esquiador – respondeu Su Ian, retirando a perna
direita do esquadro da janela e apoiando a sola do pé no chão, enquanto
massageava a coxa.
Ele recorda‑se de que a entonação da amante lhe parecera agradável,
quase escolar. Antes porém que Lucien pudesse cartesianamente verificar
como Su Ian pudera fazer aquela afirmação sem jamais tê‑lo visto com um
par de esquis nos pés, ela espontaneamente aduziu: – Andrés me disse. Su Ian está sentada no interior do esquadro da janela, imóvel, sem luz.
Sobre seu corpo plasmam‑se estradas e nomes de cidades. Fronteiras
cruzam seu copo. Os bicos dos seios, sob a roupa, róseos e perfumados,
não coincidem perfeitamente com nenhuma expressiva cidade no mapa que
de memória Lucien desenha agora, sobre uma das colunas que sustentam o
teto em arcos do restaurante universitário.
Sobre a coluna surgem agora os rostos de Wolf, de Adèle, de Andrès, que
se juntam ao rosto de Su Ian, como numa fotografia em que cada um se
esforçou para ostentar o mais lúbrico e debochado desenho labial, sendo
que o restante do rosto não acompanhou a mímica, de modo que os lábios
de cada um deles parecem um estranho e caricato implante facial, uma
colagem mal realizada ou imprópria. Lucien concentra‑se em Su Ian. Ela aparece agora de corpo inteiro,
recostada na pilastra central do refeitório. O braço esquerdo apoiado
sobre o direito, ambos sobre o ventre; a perna direita cruzada sobre a
perna esquerda. Su Ian veste uma calça de lã grossa afunilada nos
tornozelos e com amplos bolsos laterais. Traz os cabelos sobre os ombros
e tem uma fita branca acima da testa. Seu pai, que era chinês, de Santai,
além de dar a ela o nome, deu‑lhe aquele porte e, muito provavelmente
ainda, aquele olhar, que sempre afrontava o horizonte. O resto, porém,
como o modo ambíguo de enfrentar a dor, ou o gestual minimalista e
preciso, pensa Lucien sem muita convicção, viera talvez da mãe japonesa.
A pilastra sobre a qual a imaginação de Lucien imprimira a imagem de Su,
agora traz um Mont‑Blanc, só que compactado, reduzido ao geometrismo da
pilastra, como se a montanha tivesse sido concebida por um deus criador
monótono, com a espiritualidade rasa de um pedreiro. – Andrés me disse que você esquia bem – diz uma vez mais a voz de Su,
agora emitida do interior da pilastra. Era desconcertante a maneira como Su repisava seu ponto de vista,
recorda‑se ainda Lucien. Sem dúvida contributo do lado chinês, que
realçava a independência e cultuava a personalidade. Su ressurge parcialmente à flor da cantaria, Lucien não enxerga seus
ombros, nem seus cabelos. Apenas uma parte de seu nariz curto e
arredondado aflora diminuto, empoado como o de uma cortesã oriental. Aquela visão cambiante de Su parecia a Lucien mais um jogo da amante,
que mesmo não estando a seu lado, conseguia armar arapucas em sua mente
e imprimir seu temperamento, mesmo no território da mais armada vontade
de Lucien. Só não era uma exímia jogadora, porque jogava sem consciência de que o
fazia. Assim mesmo, parecia aplicar‑se nessa tarefa ininterruptamente e
sem trégua. Com esse notável predicado, submeteu Lucien, sem
dificuldades, forçando‑o a jogar como eterno perdedor. E Lucien
deixava‑se conduzir pelo mundo congestionado de indagações ao vazio,
declarações obscuras, quase pérfidas, e que o francês tragava como
tragava seus gauloises em disputados cafés ao redor do Carrefour Odéon.
Assim, sem se dar conta, era envolvido pelas preleções escatológicas de
Su sobre a vida, sobre o furor do destino, sobre o refrigério da morte
oriental, sobre a decomposição do planeta para um novo nascimento – e
quando Lucien finalmente sucumbia, fustigado pelos acordes dissonantes
dessa música sem fugata, Su dava a Lucien a oportunidade de escapar
daquele beco sem saída. Franqueava‑lhe uma janela de onde se
descortinava um oásis. Ou simplesmente fazia desaparecer o muro que
interrompia o curso das coisas, como ao insistir em lembrar a Lucien que
ele esquiava bem, para assim fazê‑lo recobrar a lembrança do
encantamento e da magia dos momentos de seu passado que lhe foram
gratos. Com tais procedimentos, Lucien tornava‑se presa fácil para Su Ian, que
o retirava do cotidiano parisiense e sem piedade o acorrentava a seu
mundo.
Ali, a estudada e sufocante prosopopeia de Su, temperada de ímpetos
ocidentais, que também formulava em benefício de salvaguardar o carisma
do gen chinês, dava lugar a um vernáculo econômico, árido, erigido
sobre a pedra do silêncio, haicai jamais escrito. Desde essa nova perspectiva, o corpo de Su, ao mesmo tempo
anatomicamente oriental, esguio, quase esquálido, mas firme e dengoso,
se tornava então o eixo momentâneo em redor do qual a energia de Lucien
gravitava e se dissipava. Nesses encontros, muitas vezes Su Ian retinha o corpo de Lucien junto
ao seu – e ambos naufragavam, paralisados durante horas em uma absoluta
inércia física. A mente de Su assemelhava‑se a uma bateria sendo
carregada sem pressa. Seu cenho se contraía, e se o pensamento de Lucien
fosse uma mosca, esta não atravessaria incólume o território de força
que a jovem oriental soubera edificar para tornar ainda mais grave sua
soberania. A imagem da companheira do passado mergulha novamente na cantaria da
pilastra do restaurante universitário. Restam as coisas sólidas,
presentes: o ruído de copos e louça triscada, a luminosidade quente,
opressora e imobilizante que torna o panorama do campus, visto através
das janelas do refeitório universitário, tão definitivo e monumental;
resta o chamamento das ruas, convocação do mundo. Lucien sente‑se pesado, abandona sua vista em uma coluna mais ao fundo,
sobre a qual cresce uma sombra violácea. Subitamente se lembra de que
no auge do inverno aquela coluna, a essa hora, estaria já inteiramente
mergulhada numa tintura acinzentada. Agora, entretanto, nesses dias de
abril, prenunciadores da primavera, a luz impregna mais longamente os
esmaltes, e mais lentamente escorre para a noite. À sua frente, o gramado vazio, uma realidade em suspensão, inconstruída,
impessoal. Volta a pensar em Su Ian. Misturado ao gosto adocicado
deixado pelo vinho, Lucien filtra com esforço o olor denso das narinas
da oriental, recolhe a textura porosa e réptil da língua da amante
rolando no interior de sua boca, contorcendo‑se ágil num dueto com sua
própria língua, recuando estrategicamente para logo depois voltar a
pulsar, projetanto‑se para depois retroceder e se aninhar no centro da
boca, agora à espera de que o pas‑de‑deux recomece.
É inútil; advém um sabor amargo, deliquescente e estéril – e Lucien por
instantes reconhece que escapar de Su Ian fora também extirpar o risco
de perder sua identidade e seus objetivos mais íntimos. E que persistir
no isolamento, no afastamento dela – embora minado por contundentes
imagens de uma convivência quase improvável agora –, era afastar do
centro de sua vida um fator de desequilíbrio. Ademais seu traço francês
fustigava‑o, acicatava‑o como um avozinho impaciente, ansioso por
encontrar no neto as marcas do ancião; e essa vertente de seu caráter,
quase sempre dominante, não tinha qualquer piedade para com semelhante
miscigenação; e tanto isso era verdade que, sabedora disso, Su Ian, com
tato e empenho obstinado, delicadamente mas com certa ousadia e
atrevimento, vinha procurando minar, abalar as certezas civilizatórias
que ornamentaram o berço de Lucien Sorel, com seu sobrenome stendhaliano,
mas tradicionalmente anticlerical e materialista. Tanto era assim que a contrapelo de seu caráter oriental, zeloso,
pudico e reservado, a companheira oriental por vezes ostentava, dir‑se‑ia
para desconcertá‑lo mais, ares parisienses, brandindo uma quase cômica
indiferença para com o que se movimentava imediatamente à sua volta, e
demonstrando uma ingênua e quase infantil preocupação com o que não lhe
dizia de modo algum respeito. Quando assumia a primeira postura, a pele
de Su Ian ganhava a textura de uma máscara de porcelana, e sua expressão
corporal refletia a contento o novo papel. Com o tórax imóvel, dando
mostras de que o espírito se cansara da mesmice daquela vida; a região
lombar afundada na cadeira do café, à maneira da rive gauche, as pernas
cruzadas e o joelho despontando irreverentemente do mantô, Su parecia
uma francesinha adolescente, cansada de ser protegida.
Nesses momentos, Su Ian cuidava com esmero que o mármore dos olhos
permecessem sempre indefinidos; a retina, insensível para o mundo,
enquanto o café, sorvido no máximo até a metade, esfriava
inapelavelmente na xícara. Quando, todavia, entretinha‑se com aspectos
exóticos, distantes da vida parisiense, como amiúde faziam suas
colegas, tratava deles como se integrassem seu cotidiano e postulava,
como convinha ao modelo, bizarros proselitismos e sectarismos
descabidos. Era contudo de raro em raro que Su assumia essa última
atitude, preferindo, na maior parte das vezes, o primeiro papel.
Lucien exasperava‑se todo o tempo com os alentados silêncios de Su, com
sua caricata encenação da decepcionante fragilidade dos franceses, que
quando ousavam não se pronunciar, simulavam reter entre os lábios um
conceito definitivo e espirituoso sobre a existência, conceito esse que
seria emitido em momento mais oportuno, quando ouvidos tarimbados e
atentos dele pudessem verdadeiramente se beneficiar. Tal fragilidade
caíra como uma luva na arrogância chinesa de Su Ian, e ela sem esforço a
incorporara como estratégia de defesa, de modo que Lucien não sabia
mais se deveria ouvir a voz avoenga da raça ou fazer coro para o
desempenho da amante – ou, ainda, largar todos os conflitos debaixo do
pires do garçom e escapulir para o studio sem móveis, onde habitou antes
de se mudar para a Rue Berthollet. A vontade de escapulir da mise en scène dos cafés se manifestava nele.
Lucien recolhia o maço de cigarros e o isqueiro, empurrava o pires com
o dinheiro para o centro da mesa, passava em revista a cadeira onde
sentara e num arranco atabalhoado, como alguém que tivesse se libertado
de um escafandro, punha‑se de pé, acenava na direção de Su Ian, dando
adeus a tudo aquilo, e avançava para a calçada. Su, incontinenti,
saltava por sobre o álgido muro que ela própria erguera em sua
planificada impassividade e se punha também de pé, sem consultar se
Lucien queria tê‑la a seu lado.
Com tantos atributos, não era difícil para Su Ian municiar os cordéis da
trama amorosa, apesar de não haver jamais previsto que o relacionamento
entre eles, ao qual talvez desse um nome mais sólido e mineral, tivesse
um fim. Há sempre um outro lado da questão, e, a seu modo, Su Ian dependia
intensamente de Lucien para poder sobreviver em território inimigo e,
ao mesmo tempo, cultivar alguns princípios de raiz, que destilava com
perícia, sem ser molestada por isso.
Inegavelmente, Lucien concedera‑lhe um espaço de manobra generoso, e a
oriental alargara suas fronteiras e se instalara sem ruído, sem
violência, sem causar alarme.
Numa manhã em que descera no metrô Trocadéro, e caminhara na direção do
apartamento dos pais, na Avenue Georges Mandel, Lucien chegou a se
comprazer com a súbita constatação de que Su Ian também dependia dele;
de que ela não era tão independente como seus modos davam a entender,
mas essa descoberta era tardia e inútil. A despeito de diversas constatações acerca de ambos, a ausência de Su
Ian era por vezes opressora, ainda mais porque Lucien admitia que havia
falhado com Su Ian, ou, melhor, que havia falhado pour cause de Su Ian;
e que sobretudo havia falhado com ele mesmo.
O refeitório da Cidade Universitária Internacional estava prestes a
fechar. Lucien abandonou novamente o olhar sobre o gramado do campus,
onde agora, aqui e ali, surgem, aos pares, jovens que iniciam suas
tarefas do período da tarde. Esses sintomas de atividade lembram a Lucien que é o momento de sair
dali. A garrafa de Gamais está quase vazia sobre a bandeja. As cadeiras
vão sendo erguidas e emborcadas sobre as mesas.
A primavera subitamente parece‑lhe sufocante e Lucien sente‑se
confundido em seu próprio estratagema de embaralhar vozes, diálogos,
tempos, no intuito de manter acordada a percepção sobre o fluir dinâmico
da vida. De qualquer modo, o resultado de seu pequeno esforço é
medíocre. Findo o repasto, iniciada a digestão dos alimentos ingeridos,
uma sonolência sem virtude dilui as imagens mentais e toma conta de
Lucien Sorel, que se ergue da mesa e se afasta com a bandeja na direção
do balcão de serviço, não sem antes inspecionar, como de hábito, a
cadeira onde se acomodara há pouco.
São onze horas da manhã. Antes de alcançar a esquina da Rua Almeida e
Souza com a Praça da Quarta Parada, Manoel vê passar, quase ao alcance
das mãos, o autocarro que o levaria ao Largo do Rato, onde tomaria
outro, para Entrecampos.
São onze horas da manhã e justamente quando seu coração se agita ao ver
seu transporte seguir em frente, sem sequer parar no ponto, encontra‑o,
vindo em direção oposta, o Sr. Albano Aires, seu pai, que se posta à
frente, de forma tão decidida e grave que parecia, com efeito, pretender
a qualquer custo barrar‑lhe a passagem. – Perdi o autocarro – diz Manoel, como se pensasse em voz alta e
estivesse desamparadamente sozinho em Lisboa. Seu pai não lhe dá ouvidos, e não demonstra interesse pelo fato. Com as
gordas mãos enfiadas no jaleco do bar, interpela‑o: – Não me faltes à tarde. Vossa mãe ausenta‑se algumas horas após o
almoço. Quero‑te de mãos limpas a atender ao balcão dentro de duas
horas. – Sim, sempre afirmei‑te que sim – respondeu o ex‑jogador do Benfica,
em um tom de quem se sentira melindrado. – Se tu me faltas, é que são elas – acrescenta o Sr. Albano antes de
continuar em seu passo afogado, de pernadas curtas e nervosas, como se
estivesse a ponto de correr e uma força estranha, uma espécie de pudor,
o obrigasse a apenas andar. Manoel não retrucou, nem acompanhou com os olhos o tronco socado
daquele homem, tão parecido com o seu, afastar‑se na direção do Bar e
Tabacaria da Quarta Parada, estabelecimento do outro lado da rua, onde
dona Maria Luíza Carvalho Souza, naquele exato instante, passava um
pano úmido sobre um tampo de mármore de uma das mesas do salão. Ele estava melhor quando por sua conta e risco se acomodara no 1o andar
daquele residencial próximo ao Jardim da Estrela, pouco acima do
parque, em um cômodo com janelas voltadas para o oitão de cima, de onde
aos finais de semana ouvia o rilhar de ferros do 28, que tomando embalo
na Saraiva de Carvalho trazia visitantes do Cemitério dos Prazeres, ou
que, saindo da Graça, passava por São Vicente, Santa Luzia, Chiado, São
Bento, recolhendo e redistribuindo, com parcimônia e pouca pressa,
ociosos em apertados trajes domingueiros.
Ao menos ali, na Pensão Estrela, não era forçado a enfrentar a
curiosidade maledicente dos velhos conhecidos seus e de sua família, que
volta e meia o obrigavam a relembrar sua última e desastrosa
apresentação como goleiro do Benfica, quando o país inteiro, exceto seus
pais e o oculista, que já o sabiam, tomou conhecimento de que Manoel
tinha uma deficiência visual grave. De fato, as paredes encardidas, o roto cortinado das janelas, o ranger
do piso ao mais leve movimento, numa sinfonia intérmina que povoava o
casarão em todas as horas, sinfonia essa executada com um acompanhamento
de tosses catarrentas e vozes a meio‑tom, pareciam‑lhe, agora que por
conveniência voltara à casa paterna, algo muito mais suportável do que
a rotina familiar dos Souza Aires. Sabia, contudo, que regressara por pouco tempo, e o fizera não pela
necessidade de aliviar as despesas, e mais, muito mais, porque sentia
que era preciso regressar e arrancar com as próprias mãos as raízes
plantadas no solo paterno. E era melhor fazer com força, de uma vez,
como estava fazendo, do que deixar que apodrecessem lentamente. De outra parte, sua resolução de regressar à casa paterna fazia‑o por
algum tempo mais jovem, como se jamais tivesse passado pelo amargor que
o futebol lhe trouxera.
Residindo por alguns dias com os pais no andar da Almeida e Souza,
trabalhando a poucos metros dali, no café paterno; fazendo suas
refeições ao pé do balcão, beliscando um rissol, furtando discretamente
uma e outra cerveja do frigorífico, iria experimentando a vida que
quase teve quando muito mais jovem; quando ainda não se
profissionalizara no futebol. E Manoel se sentia quase como um
colegial, como esses que se empregam temporariamente para fazer uma
pequena economia, ou poupar parte do dinheiro para alguma aventura
secreta. Para completar a encenação, os proventos de seu trabalho
chegavam‑lhe com dissimulada má vontade pelas mãos de Seu Albano, todos
os domingos, pontualmente, em um envelope pardo. Era um pagamento
modesto, que Manoel muitas vezes recebia sem conferir, abandonando o
envelope sem abrir na gaveta do criado‑mudo de seu quarto.
Já estava nisso há dois meses, mas parecia muito mais. No jaleco que
habitualmente vestia, e que o tornava, diga‑se de passagem, mais
parecido com o pai, Manoel mantinha, por zelo e sigilo, certa
correspondência, da qual não se apartava. Vez por outra, quando o balcão
ficava vazio e não havia ninguém por perto, extraía, de um envelope
guardado no bolso esquerdo superior, uma folha de papel muito amassada e
que já principiara a se rasgar na dobra central.
Furtivamente lia um e outro parágrafo, relia e treslia certas passagens.
Ali, em um inglês quase literário, o autor, que apenas assinara J. B.
H., dizia‑lhe como e por que concebera o jogo de Dublin e também lhe
explicava que a ficha com seu nome fora selecionada dentre muitas
outras, e fazia parte de um acervo da empresa Irish Ferries que
continha o nome de consulentes em busca de informações turísticas sobre
a Irlanda.
Na ficha da companhia, Manoel declarara compreender e falar o inglês,
por força de haver jogado na Liga Inglesa. Isso chamara a atenção do
missivista, uma vez que o domínio do inglês era imprescindível em seu
plano. Só assim cada participante iniciaria o jogo com as mesmas chances
de sucesso. O fato de Manoel ter 31 anos completos, observou ainda o
missivista sem maiores explicações, era fator decisivo, e favoreceu
grandemente a escolha de seu nome e o posterior convite de participação.
Mas o autor da carta alertava: o jogo de Dublin não seria fácil, não
bastaria resolver com sucesso todas as charadas, decifrar as armadilhas,
interpretar os múltiplos enigmas propostos. Seria imprescindível, para
que o jogador tivesse direito à recompensa, demonstrar especiais
talentos.
O ex‑jogador arrasta‑se até o ponto de autocarros. De onde se encontra
enxerga um pedaço da praça, os táxis verde‑pretos estacionados no
ponto, defronte justamente do estabelecimento da família. Daquele ponto,
mas mais próximo do centro da praça, alguém gesticula, apontando em sua
direção. Será alguém que o conhece e de longe o está saudando, ou o
gesto é para outrem?
O Autocarro 18, que vai para Chelas, para no ponto. Àquela altura do
trajeto, ainda se encontra vazio de passageiros. Manoel sobe os
degraus do ônibus. Mostra seu bilhete de assinatura mensal ao
motorista e atravessa o corredor até um assento próximo à última janela,
na parte traseira do autocarro. Com certa relutância, ergue os olhos à
procura do passante que acenara em sua direção, mas não o encontra mais.
Quando o ônibus recomeçou a circular, Manoel retirou os óculos de grau
do rosto, esfregou os olhos com a ponta dos dedos, massageou o nariz e
voltou a colocar as lentes em seu lugar. Ainda uma vez refletiu sobre o
aceno do meio da praça. O homem que gesticulara tinha estatura média,
era obeso e vestia um chapéu negro enfiado na cabeça. Apesar da
distância, pareceu a Manoel que o transeunte trazia o chapéu inclinado
para o lado, como o fazia Mário de Sá‑Carneiro. No Largo do Rato, há uma confusão à porta de uma papelaria. Ao redor de
dois homens, atracados numa dupla chave de pescoço, curiosos em cerco
instigam os contendores.
Manoel avança até a escada do autocarro. De qualquer modo, o ex‑jogador
deve descer ali e fazer uma baldeação. Quando está prestes a descer o
primeiro degrau, vislumbra o rosto avermelhado de um dos contendores.
Parece o Bombarda, diz para si, sem saber se o socorre, ou se ignora a
porfia.
O mostrador do relógio de pulso do ex‑jogador marca 11h20. Tem um
encontro às 12h45, no portão principal do Estádio da Luz, com um
jornalista do Diário de Notícias; um almoço, em troca de uma
entrevista, provavelmente com fotos. A ideia da entrevista
incomodava‑o um pouco, e Manoel relutou alguns dias até assentir em se
encontrar com o Paiva, mas deixar‑se fotografar decididamente não o
agradava; preferia manter seu rosto fora das páginas esportivas.
Com ou sem fotos, a questão estava posta. O que fazer agora? Ser pontual
em seu compromisso, deixando o amigo para trás, em apuros, ou ficar e se
atrasar? Se fosse apartar a briga, perderia com certeza a hora. Além do
mais, detestava apupos; temia ser reconhecido por algum torcedor de boa
memória.
No entanto, Bombarda estava ali, não poderia haver dúvida, se alguma
dúvida ainda persistisse na mente de Manoel; um dos brigões, justamente
o que parecia estar em desvantagem, era o seu colega do liceu, com quem
conversava sobre poesia e de quem se afastou quando supôs que o relvado
do futebol era mais macio e promissor que a estrada marginal, sem
asfalto ou sinalizações de percurso, reservada aos poetas. Bombarda
também não persistiu na poesia, embora continuasse a fazer versos até
hoje, mais como higiene espiritual do que por profissão de fé. Em vez da
penosa obra de construção e lapidação do verso, engajou‑se na indústria
de ferragens de seu pai, e lá ficou, como uma edição nova, mas
falsificada, de Cesário Verde. Por acaso, o departamento comercial da
empresa do Sr. Bombarda, pai, era na Rua dos Fanqueiros, justamente onde
aquele outro pai, o de Cesário, tivera um dia seu negócio de ferragens. Mas agora não estava em jogo o mal aproveitado vezo poético de Bombarda,
e sim a dignidade que a custo, difusamente, em seu rosto os que estavam
no anel interior do tumulto mal podiam vislumbrar agora.
Com a vista esquerda intumescida, e com sangue escorrendo do nariz e da
junção do lóbulo da orelha com a face, o colega de liceu de Manoel
parecia entregue à fúria do oponente, que não obstante continuava a
acertar‑lhe murros ora no estômago, ora no rosto. Do instante em que Manoel pisou o primeiro degrau da escada do ônibus,
até o momento em que decidiu intervir diretamente na batalha, o rosto de
Bombarda havia se transformado em uma posta de sangue. Não haveria
muito mais tempo para salvá‑lo embora de onde estava agora, já no plano
da rua, Manoel não pudesse mais enxergar o amigo, cuja visão se escondia
atrás de uma valorosa barricada humana. Por esse motivo, deixou de
presenciar, estampado no rosto de Bombarda, o sentimento de humilhação e
vergonha que com suas últimas forças conseguiu por instantes deixar
transparecer, antes de perder os sentidos.
Com determinação, dando‑se conta de que algo muito grave estava para
acontecer, enfiou os óculos no bolso do paletó, e avançou como um
desbravador para o centro do tumulto. No caminho, aos repelões, foi
extraindo e atirando longe ombros e braços daquele estranho corpo vivo
em agitação, como alguém que arrancasse, com ímpeto e precisão, coxas e
asas de um frango assado, de forma que logo chegou ao coração, ao
epicentro do embate. Quando finalmente acercou‑se dos lutadores, encontrou o amigo
desfalecido, sem reação, à mercê do rival, que o mantinha ainda preso na
chave de braço. Manoel não vacilou, e com o punho esquerdo desferiu um
golpe cruzado contra a lateral direita do rosto do oponente. Em seguida,
quando o rival, surpreso com o golpe, afrouxou o laço fatal que prendia
a cabeça de Bombarda, buscando aprumar o tronco, Manoel, prontamente
acertou um direto em seu queixo, que o levou à lona, onde o amigo
despencara um segundo antes. Todavia os apupos, que em sua maioria revelavam um sentimento de júbilo
pela demonstração convincente de animalidade dos competidores, ao invés
de diminuir após a intervenção decisiva de Manoel cresceram
enormemente. O que acontecia era que o organismo vivo, que se desenvolvera até ali
alimentando‑se do sangue dos desavindos, não recebia bem o invasor. O
cerco parecia se fechar sobre ele, para assim expurgá‑lo, como célula
doente de um organismo que queria voltar ao estado dinâmico
imediatamente anterior.
Um tipo raquítico, barba branca por fazer, cabelo espesso nas ventas e
um pano vermelho no pescoço, espalmou‑lhe as costas. – Vai‑te daqui, homem! Em seguida, desferiu um murro à traição, embora sem resultado prático.
Quando Manoel se voltou, o sujeito não estava mais ali, havia escapulido
na direção da Rua de São Bento. – Baderneiro – gritou‑lhe alguém perdido em um dos anéis humanos que o
circundavam. – Covarde – ouviu de um rosto bexiguento, plantado sob um chapéu de
feltro de abas caídas, que despontou um palmo acima de sua cabeça. Tal
opinião a maioria dos presentes, de uma forma ou de outra,
compartilhava, convencidos estavam de que Manoel estragara a festa,
roubando‑lhes o entretenimento. Sem tempo para pensar, Manoel desferiu uma direita contra a testa do
porta‑voz, que foi despencar sobre duas senhoras que engrossavam o anel
intermediário de cabeças. No deslocamento do tronco, o porta‑voz
atingiu com o cotovelo o rosto do condutor de um elétrico que, movido
pelos mesmos nobres instintos dos que ali se encontravam, havia largado
seu posto e atravessado todo o largo, posto que se dirigia aos Prazeres,
deixando em imobilidade desesperadora o bonde com seus passageiros e
compromissos vários, já agora adiados, e se enfiara no meio do tumulto,
com seu espírito dividido entre dois sentimentos ambíguos: o de
engrossar a assistência, e o de apaziguar os ânimos. Do elétrico sem o condutor ouviam‑se vozes exaltadas, de pessoas para
as quais o tempo tinha alguma importância. Outras ameaçavam descer,
tomadas pela curiosidade, que era mais premente que o futuro. No
entanto, acicatadas pelo receio de perder o direito já adquirido de
transporte, hesitavam entre saltar à rua e permanecer espojadas sobre os
bancos. Assim mesmo, alguns passageiros desceram, ofegantes e comovidos; foram
os primeiros. Logo em seguida o mesmo se deu em outros pontos de paragem
do largo, de tal sorte que os transportes coletivos foram sendo
esvaziados de seu conteúdo, e quase todo ele era vertido sobre o foco de
interesse maior, defronte da papelaria. Os automóveis, que normalmente cruzam o Rato com certo vagar, uma vez
que em meio a autocarros estacionados, elétricos em lenta manobra e
gente comprimida às portas dos coletivos, agora não avançam mais. No
Rato, já são vistos alguns motoristas com seus engenhos desligados;
outros, agastados, parecem não acreditar no que veem e mordem o cigarro
aceso entre os dentes, estapeando a direção em sinal de protesto. Os
mais atrevidos já abandonaram seus automóveis e se dirigem ao centro do
conflito. Engrossam os anéis humanos, ao redor dos pelejadores,
representantes de praticamente todos os andares do edifício social.
O congestionamento alcança as artérias que costumeiramente alimentam o
fluxo através da praça; na Braancamp, na Álvares Cabral, na Rua de São
Bento e na da Escola Politécnica, o trânsito está totalmente paralisado
na mão de direção de quem se dirige ao Rato. Ao longe, sirenas ouvem‑se, perdidas no engarrafamento, emulando com a
orquestração de buzinas dos arredores, sem que contudo surgisse um só
representante da lei e da ordem.
No núcleo difusor de tudo, os contendores são sacudidos pela
assistência, que não se conforma com o aparente encerramento do
espetáculo. O oponente de Bombarda, após os murros de Manoel,
desmontou‑se de seus propósitos, e agora jaz combalido ao colo de uma
conhecida frequentadora do largo, que ganha ali sua vida apregoando
cautelas e revistas velhas, envolta em surrobecos gastos. Bombarda começa a acordar agora e, embora ainda estirado sobre chão
frio, consegue aos poucos se recobrar, em seguida aprumar o tronco e
abrir um dos olhos, sob as vistas do condutor do elétrico que recebera a
cotovelada involuntária no rosto, aplicada pelo homem grande de rosto
bexiguento. O contendor derrotado procura decifrar o que está acontecendo a seu
redor. Quando vislumbra com dificuldade o corpanzil do marido traído por
Leocádia, no colo da cauteleira Floripes, se anima e diz com voz
abafada: – Cabrão. A turba se agita com essa palavra mágica. – Olhem o safado, ainda está vivo – diz um sujeito que tomou o partido
do marido chifrudo, contra o amante. Antes, porém, que as coisas piorassem ainda mais, Manoel agarrou com as
duas mãos as abas do paletó do amigo e num golpe, como se este não
passasse de um saco de farinha, atirou‑o sobre suas costas e, forçando
aos trancos e barrancos sua passagem, conseguiu romper um a um os anéis
humanos de curiosos. Tomou a Rua de São Bento e, vertiginosamente, sempre a descer, foi
carregando o Bombarda sobre os ombros por dois quarteirões, até que,
não suportando mais o esforço, entrou na primeira porta aberta que
encontrou. Era uma tasca. Ali, numa cadeira a um canto, pousou o antigo colega de
liceu, que só agora o reconhecia, encarando‑o com aquele único olho
viável. – Mas és tu, ó Manoelzinho! – Não me chames assim, sabes que não gosto – repeliu o ex‑jogador,
tentando retomar o fôlego. Manoel retirou seu par de óculos do bolso e firmou‑os sobre o nariz.
Agora via bem o estrago que o marido de Leocádia fizera no rosto de
Bombarda. Confere o mostrador do relógio de pulso. Tinha apenas alguns minutos
para ir ao encontro de Paiva
– Estou muito mal? – perguntou‑lhe o outro, agora procurando um lenço
no bolso do paletó, para passar em seu rosto. E sem aguardar a resposta, aduziu: – Pedes água, para que possa umedecer um lenço, faz favor. – Está bem – disse‑lhe Manoel, vendo‑o extrair o quadrado de alva
cambraia do casaco. – E eu? – insistiu o amigo, comprimindo com a palma da mão o antebraço
de seu defensor. – Estou muito mal? Dize francamente, Manoel. – Estás. Estás deveras mal – responde‑lhe Manoel, já arrependido de se
haver envolvido na briga. Contudo, ao invés de sair e largar o amigo ali, cuidando de seus
ferimentos e de seu orgulho, deixa‑se ficar e pede um copo de água e
duas cervejas ao encarregado da tasca. – Espero que o moço traga rápido. Tenho uma entrevista em instantes –
diz Manoel. – Mas o que é que fizeste para merecer tantos carinhos? –
acrescentou, tentando sorrir. – Tu te feriste? – indaga Bombarda, como se não tivesse ouvido uma só
palavra do amigo, enquanto enfiava a ponta da cambraia no copo que o
garçom lhe trouxera. – Estou bem, apenas os nós dos dedos incomodam‑me um pouco. Mas vamos
aos fatos: em que enrascadela te meteste? – Tive um caso com a mulher daquele cabrão. Ele ficou sabendo. É só
isso. Mas valeu a pena. Manoel avalia as palavras do amigo, depois coloca as mãos em paralelo,
sobre o tampo da mesa. Deixa os dedos esticados e abertos e abaixa os
olhos como se os fosse examinar clinicamente.
Bombarda retira de sobre o olho esquerdo o emplastro improvisado que
fizera com o lenço e imita o gesto do amigo, projetando o corpo sobre a
mesa e encarando com consternação as falanges do outro. Seu defensor sente a respiração irregular e sobretudo desagradável de
Bombarda, com as narinas tão próximas assim do dorso de suas mãos. Manoel recolhe o braço e recua o tronco, comprimindo‑o contra o
encosto da cadeira.
Entorna o líquido da garrafa no seu copo, e no de Bombarda.
– Não te preocupes. Estou bem. Tu é que deves te consultar com algum
médico. Nunca se sabe – diz Manoel. – Claro, naturalmente, mas antes de mais nada apetece‑me brindar e
agradecer a presença tão prestante do amigo, que salvou a vida daquele
cabrão do marido de Leocádia. Dizendo isso, Bombarda segurou o copo de Sagres e ergue‑o à
meia‑altura, sorvendo‑o de um trago, não sem simultaneamente gemer
baixinho, enquanto bebia, acusando os ferimentos nos lábios. Manoel
imitou o gesto. – Efetivamente não posso ficar mais – diz Manoel, jogando sobre a mesa
uma nota de cem escudos. – Ao menos deixa que eu pague – apressa‑se em dizer Bombarda,
devolvendo a nota ao amigo. Em seguida, disse‑lhe: – Dá‑me a direção de tua morada. Sempre estás em Saldanha? – Não, isso foi há muito tempo. Morei em outros lugares depois –
responde Manoel, recolhendo o dinheiro e enfiando‑o no bolso. – Agora
resido com meus pais, no Campo de Ourique, mas é por poucos dias mais. A
bem da verdade, horas. – Na velha morada, do tempo em que estudávamos juntos? – Sim. Essa mesma. Aparece para uma visita. Meus pais gostam muito de
ti. – Está bem, lá ir‑vos‑ei ver. Mas deixa que me entenda com o moço
sobre a conta – insistiu Bombarda ao ver que o amigo fizera novamente
menção de pagar. Ao ver o ex‑jogador se distanciar da mesa, Bombarda disse ainda: – Sabes de uma coisa? Apesar de tudo, tinha piada ver‑te jogar – e
soltou uma risada com a parte da boca menos danificada, servindo‑se em
seguida da outra garrafa de cerveja que ficara intacta sobre a mesa. Manoel não falou mais nada. Acenou apenas, ganhado a calçada e a luz do
dia. Naquele exato instante, descia um dos integrantes da malta que
assistira à briga. Por estar ainda engasgado com as últimas palavras que
o Bombarda dissera, Manoel não reconheceu o outro, com quem cruzara
logo que desceu do autocarro no Largo do Rato. Por sua vez, o tipo,
embora tivesse assistido a toda a cena, também não reconheceu o protetor
de Bombarda, quiçá por conveniência, quiçá por causa das lunetas que
Manoel agora estava usando, e que davam ao ex‑jogador do Benfica um ar
de conciliadora gravidade. Suas têmporas latejavam após o desforço físico de há pouco. Olhou
novamente no relógio. 12h35. Se fosse de autocarro à entrevista com
Paiva, teria que tomar dois. Mas para fazê‑lo, teria de subir ao Rato,
novamente. De lá, tomaria o primeiro deles, que o deixaria em
Entrecampos, e ali tomaria outro para o Estádio da Luz. No entanto,
refletiu, voltar ao Rato não era aconselhável.
A poucos metros da tasca, no sentido da Calçada da Estrela, Manoel
decidiu parar um táxi e entrou nele. Um sol de primavera infletia sobre as vidraças e os metais. As pessoas,
mais despidas, caminhavam atirando braços e pernas para o ar,
diferentemente do úmido inverno lisboeta, quando todos sentem nos ossos
a frialdade e o povo andava pelas ruas com o queixo enfiado no tórax. Do assento traseiro do veículo, Manoel se dá conta da intensa
luminosidade daquele dia. Começa já a fazer calor em Lisboa, embora mal
tivesse começado oficialmente a primavera. Os olmos e os cedros da
Praça Real já ensaiam as roupagens da nova estação. Alguns tímidos
beberrões sentam‑se já nas mesas ao ar livre da praça. Quando cruzou a Faculdade de Ciências, a luz parecia reverberar com
mais força sobre os muros e paredes brancas do casario, ofuscando seus
olhos e seu pensamento. O vento ligeiro e álgido da manhã se diluíra
numa brisa suave e quase morna, que trazia a reboque o olor ácido da
maresia. Manoel procurou organizar suas ideias, concluir apressa-damente um
balanço do encontro estapafúrdio que tivera com Bombarda, e ao mesmo
tempo entender seu próprio ato de violência, disfarçado em gesto de
compaixão para com um colega de infância. Sobretudo porque nesse
incidente de há pouco, havia muito mais do que um ato de legítima defesa
do mais fraco; havia talvez uma espécie de resposta contra a opinião
pública, contra os que escarneceram dele sem piedade, e que se
esqueceram de todos os anos em que defendeu as traves do Benfica; em que
honrou a camisa jogando no exterior, para condená‑lo por um único lance
de um jogo.
Além do mais, como se não bastasse tudo isso a mente de Manoel
agitava‑se no sentido de desvendar quais eram as intenções de Paiva.
Qual o porquê de tão repentino interesse por ele, passados três anos de
ostracismo completo, em que sobre o Manoelzinho do Benfica não se
escreveu uma só linha, nem se formulou, na imprensa televisiva, um só
comentário, mesmo que breve?
Foi um período em que sequer teve como consolo o suporte, mesmo que
discreto, dos colegas de profissão. Nem mesmo sua família importou‑se
com seu afastamento definitivo do futebol, exceto na medida em que
Manoel, sem as expressivas rendas do futebol, acabasse se tornando
dependente do dinheiro familiar, o que era improvável, mas nem por isso
menos preocupante. O táxi contornou vagarosamente a Marquês de Pombal, mas em vez de subir
a Antônio Augusto de Aguiar, em direção à Praça de Espanha,
matreiramente tomou a Avenida Fontes Pereira de Melo, engrossando o
congestionamento da Praça Saldanha. Ali, arrastou‑se metro a metro,
competindo por espaço com outros veículos, até alcançar a Avenida da
República, onde finalmente trafegou sem esforço, logo atingindo o
cruzamento desta com a avenida Estados Unidos da América.
Enquanto o táxi passeava por Lisboa, seguindo um itinerário nada
recomendável para quem tinha pressa e respeito pelo próprio dinheiro,
dançavam na cabeça de Manoel dois distintos estratos da realidade
vivida. O primeiro devolvia a lembrança de seu passado estudantil, e de
seus débeis projetos literários. E remetia Manoel para os anos da
adolescência, anos em que não soube urdir com os fios de ouro da vida
seu melhor sonho; anos esses que, de maneira repentina, retornaram com
nitidez, saindo da dimensão do tempo pretérito para uma dimensão de
quase existência presente, no momento em que Manoel ergueu o corpo
desfalecido de Bombarda do chão. Sim, porque o corpo do ex‑colega de
liceu, que Manoel protegera, e ao qual, de certo modo, devolvera a vida,
era simbolicamente a própria palavra poetizável, quase revolucionária,
de tão intempestiva e dominadora, instrumento primordial de gozo e
prazer daqueles tempos, e que havendo ficado submersa, desde então,
voltava a marcar presença; a se fazer, embora quase moribunda como o
próprio Bombarda, estirado no Largo do Rato, plenamente audível. O
segundo estrato de realidade vivida era justamente a memória de seu
passado mais recente, em que fracassara, ou, talvez melhor, em que a
vida e a sorte fizeram‑no fracassar, porque arriscara‑se demais e
perdera; porque não pesara as consequências de sua farsa; porque criara
um modelo na arte de representar que fugia aos parâmetros estabelecidos.
Um deficiente visual não poderia jamais assumir a responsabilidade de
adivinhar a rota da bola e a esta se antecipar, de modo a
interromper‑lhe a fatal trajetória.
Quando a voz desafinada e quase feminina de Paiva ecoara em seus ouvidos
dias atrás, e o convocara para aquela entrevista, todo o pesadíssimo
silêncio à sua volta, silêncio que envolvera sua existência e sua
carreira profissional nos últimos três anos, parecera ter ficado ainda
maior, mais pleno e mais insuportável. Esse silêncio agora ganhava
forma, expandia‑se, ocupando o peito de Manoel, e dificultando o
respirar. O táxi avança, mantendo um quase evidente propósito de retardar a
viagem.
Após Entrecampos, o ar se torna mais leve e perfumado. O largo passeio
público entre as duas mãos de tráfego expõe uma vegetação que se torna
espessa aqui e ali, com árvores e arbustos espalhados em canteiros, de
forma que a custo se vislumbra o edifício da Biblioteca Nacional, na
outra mão de direção, com seu gramado frontal, onde já se podem ver
minúsculas papoulas eclodindo.
Se Manoel estivesse a pé, e caminhasse pela aleia central da avenida,
veria também o baixo casario na mesma margem da biblioteca. Aquelas
eram edificações modestas, que já nasceram acanhadas, geminadas à beira
da estreita calçada, e hoje corroídas pelo tempo e pelo esquecimento;
algumas com as portas cerradas há anos, à espera de serem demolidas; mas
a primeira do renque de casotas traz uma pequena porta sempre aberta
àquela hora; é uma minúscula tasca, com um balcão gasto de fórmica verde
sem lustro, e uma televisão pendurada sobre uma alta prateleira; o prato
do dia está gizado numa lousa à entrada. Adiante, em uma esquina, a
Livraria Lácio, do falante e solitário Antônio André, rodeada de
pequenas tascas e concorrentes. Ao meio‑dia, as crianças atiram‑se
pelo portão do estabelecimento de ensino, localizado ao fundo da rua, e
ganham as calçadas, em seus costumes azul‑marinho, espalhando sons
álacres. As mais crescidas agarram‑se e deslizam pela rua fazendo
confidências. Seus olhos cintilam à luz solar; de seus rostos brotam
ruges; trazem, em incansável movimento, os lábios trincados pelo frio
matinal. É como se quisessem compensar, naqueles instantes de liberdade
recobrada, o silêncio imposto pela disciplina escolar durante toda a
manhã. Seus dentes alvos despontam, estrelas embarcadas realçando a
boca. Manoel, contudo, não pensa em nada disso, nem nos tempos em que mantinha
conta‑corrente com o proprietário da livraria, nem mesmo nas tascas em
que à saída do Liceu comia uma sande e um copo de cerveja, enquanto
entretinha colóquios exaltados numa mesa de alunos. Compassivo, procura
controlar o desabamento silencioso de seu espírito.
Nesses momentos que antecedem seu encontro com Paiva, dissipam‑se de
sua mente os pormenores do incidente matinal, agora existem apenas seu
peito em surda sufocação, seu estômago intumescido, e um sentimento de
comiseração, como se acarinhasse a si próprio e a seu destino. E seu
destino e sua vida eram agora dois gatos siameses afofados sobre o colo.
Um pouco doentes, um pouco cansados, um pouco apreensivos. – Já se está quase ao pé do estádio – assegurou o motorista. Manoel saiu do letargo. – Pedi‑lhe que fosse ao Estádio da Luz, mas vejo agora que o senhor
preferiu um passeio turístico pela capital – disse Manoel decepcionado,
logo que percebeu onde estava. – Às vezes o trajeto mais longo não é o pior. Quando chegar ao estádio,
pode pagar‑me o que quiser, que não estou aqui para querer enganar
ninguém. Manoel limitou‑se a concordar.
Instantes depois, olhando com suas grossas sobrancelhas através do
retrovisor do Mercedes‑Benz, o motorista indagou: – Não vos conheço?
Os olhos de Manoel encontraram os do homem ao volante.
– Já fui ao estádio de táxi várias vezes – respondeu o ex‑jogador,
buscando demonstrar uma cortês naturalidade. O motorista pareceu satisfazer‑se com a resposta. Desinteressou‑se por
instantes de seu passageiro e pressionou o acelerador. Ao ouvir um
incomum rugido do habitualmente silencioso motor de sua joia verde e
preta, o motorista lembrou‑se de que deveria fazer reparos no
escapamento. Nem bem ocupava‑se com tais comezinhas considerações, o
senhor ao volante ouviu a voz um pouco abafada de seu passageiro, que
repetia a instrução que dera ao tomar o táxi.
– Vou descer no portão principal, faz favor.
O condutor do táxi voltou a exibir no retrovisor suas grossas
sobrancelhas ao passageiro do carro. Estas contudo desapareceram das
vistas de Manoel quando o motorista, empurrando o espelho levemente para
a direita e para baixo, enquadrou quase todo o rosto do jovem senhor de
lunetas. É muito pouco provável, quase impossível, que o motorista, mesmo que
torcedor do Benfica, guardasse em sua memória registros da voz daquele
que envergara a camisola número um de sua esquadra preferida. O mais
certo e provável é que o itinerário ao estádio de futebol, associado ao
ronco nervoso de sua Mercedes‑Benz, fê‑lo lembrar‑se da desgraciosa e
febril engrenagem vocal das torcidas, em domingo de grande jogo. Somando
todo o intenso clima futebolístico, propiciado pela simples compressão
dos artelhos, no à‑vontade das chinelas gastas, sobre o aceleredor, às
feições de seu passageiro, agora estampadas quase por inteiro no
espelho, como uma rara estampilha de colecionador, só havia um resultado
possível: Manoelzinho do Benfica.
– Manoel, Manoelzinho, não é verdade? – disse o motorista, fazendo
surgir as lascas de ouro de sua boca – Isto foi há muito tempo – defendeu‑se Manoel. – Pretende voltar a jogar? – perguntou ingenuamente o homem ao volante.
– Acho que devia, se permite a indiscrição. Manoel já ouvira isso antes. Mas já ouvira também torcedores fanáticos,
que jamais perdoaram sua farsa, dizendo‑lhe desaforos nem bem o
reconheciam. Por isso, respondia com prudência, buscando encerrar
rapidamente o assunto. – Não, aquilo acabou. Agora só assisto aos jogos pela televisão. – Mas hoje você vai ao estádio – disse o homem, mudando a forma de
tratamento. – Apenas para encontrar uma pessoa. Nada mais. Chegaram finalmente ao estádio. – Aqui estamos – diz o motorista, virando‑se e colocando o braço
direito sobre o encosto do banco a seu lado. – Chamo‑me Oliveira. E
tive muito prazer em transportar você. – E acrescentou: – A corrida não é nada. O Manoelzinho já a pagou. O ex‑jogador do Benfica agradeceu e desceu do carro. Alguns ademanes
desgraciosos se perderam no ar.
Encostado em uma árvore, está Paiva, apoiando o pé direito no tronco. O
cigarro entre os dedos tesos, como os de uma lady. Ao seu lado, um tipo
que Manoel não distingue de imediato. – Vais desculpar‑me pelo atraso, Paiva. É que tive que dar assistência
a um amigo. – Dizendo‑lhe isso, Manoel estica o braço quase
militarmente, e aperta os dedos moles e suados do repórter. – Não faz mal. Chegaste a tempo – diz Paiva, que desde que vira o
ex‑jogador descer do táxi fixara seu olhar na pesada armação de
tartaruga dos óculos de Manoel, como se esta fosse um objeto incomum, ou
uma ferida não cicatrizada. E acrescentou: – Este é Nuno, lembras‑te dele? Manoel conhecia superficialmente o fotógrafo que acompanhava Paiva; era
um homem silencioso e esquivo, com um rosto enrugado e sempre crestado
de sol, que trabalhava sem paixão, obedecendo maquinalmente às ordens do
repórter. Desde quando o conheceu, tempos atrás, no meio da imprensa
futebolística, Nuno dera‑lhe a impressão de alguém que estava sempre
realizando seu trabalho pela última vez, e que logo em seguida deporia
para sempre sua máquina fotográfica e demais petrechos, abandonando‑os
sem remorso.
– Já nos vimos, não é certo? – perguntou Manoel, enquanto esperava, com
seu braço esticado, que o sujeito libertasse uma das mãos do equipamento
e o cumprimentasse. Nuno inclinou a testa para frente em um movimento lento, mas não emitiu
qualquer som audível. Seu aperto de mão foi rápido como um furto. – Claro está que já se conhecem. Nuno está no jornal há mais de dez anos
– disse Paiva, atirando longe o toco do cigarro. Manoel reparou no paletó de veludo justo e levemente empinado nas
ombreiras, que Paiva está usando, e que davam a ele um ar ainda mais
afetado que o habitual. Essa vestimenta realçava a baixa estatura e a
compleição frágil do repórter, que parecia se mover em um apertado
ateliê de costura. – Muito agradecido por teres vindo – disse ele. – Vou dizer‑te qual é
minha proposta. Primeiramente, faremos algumas fotos no centro do
relvado, depois começamos a entrevista, propriamente dita. Parte dela no
relvado, ainda em meio a fotos, parte dela no restaurante. Concordas? – Não vejo problema – respondeu Manoel, constrangido, deixando‑se
levar pelo repórter. O fato é que logo que vira Nuno em companhia de
Paiva, Manoel pensara em recusar a sessão de fotos, peremptoriamente,
mas nada fez, além de um aflito esgar facial, que o entrevistador não
percebeu ou dissimulou não haver notado.
Paiva uniu os calcanhares, alçou‑os do solo, ergueu teatralmente os
dois antebraços e uniu o polegar e o indicador de cada uma das mãos,
como se estivesse esticando um fio invisível à altura do peito. – O administrador do estádio já nos autorizou a fazer as fotos. Podemos
ir? – perguntou ele.
Paiva desfez o gesto; Nuno ergueu a sacola que depusera no chão e rumou
na direção de um acesso lateral, à entrada do portão maior. Manoel
caminhava lado a lado com Paiva. – Sem parar, até o centro do relvado – avisou o repórter. O fotógrafo atravessou o centro do campo, virou‑se na direção de Manoel
e disparou as primeiras fotos, sem que o ex‑jogador tivesse tempo de
retirar os óculos.
– Já começamos? – lamenta Manoel, sentindo‑se surpreendido pela lente
de Nuno. – Sim, já começamos – diz Paiva. – É tudo muito natural – acrescentou,
com as duas mãos nos quadris, buscando a direção da luz do sol. Paiva voltou‑se para Nuno. – Quero algumas fotos escuras, sombreadas, para dar ideia de isolamento
e tristeza. Talvez daquele outro lado, com Manoelzinho nas
arquibancadas. – Para que tudo isso? – perguntou o ex‑goleiro, retirando
discretamente os óculos. – Sou eu quem faz as perguntas – advertiu amistosamente a voz de falsete
sempre desafinada de Paiva. Manoel enfiou as mãos nos bolsos largos das calças e se deixou
fotografar, como alguém que acabasse de acatar o conselho médico e
permitisse que lhe aplicassem a injeção salvadora. – Agora, senta‑te bem ali – disse Paiva.
Manoel enfiou novamente os óculos para localizar o lugar apontado pelo
repórter. – Queres que me sente naquele sítio?
– Sim, na faixa em que não bate sol, mas podes ficar com os óculos, não
faz mal – diz Paiva. – Não, espera, vamos fazer uma sequência sob as
traves, antes. Vamos, Nuno, vamos. Manoel se afastou do repórter e caminhou na direção apontada. O
fotógrafo foi atrás, sem pressa, resistindo aos estímulos de uma mão
invisível que o empurrava para diante. Feitas as fotos sob os arcos, ambos voltaram. – Agora, sim, Manoel, faz favor de sentares ali. Muito bem. Agora dobra
o tronco para frente, coloca as mãos no queixo, como se estivesses
pensativo – acrescentou o repórter, elevando a voz para se fazer ouvir
pelo ex‑jogador. Nuno seguiu maquinalmente o movimento do entrevistado. – É essa a ideia de naturalidade que tu tens? – perguntou
maliciosamente Manoel, enfiando as lunetas no nariz. – Vamos, vamos, é só por um segundo.
Depois de bater algumas fotos, Nuno aproximou‑se lentamente das
arquibancadas, sentou‑se alguns degraus abaixo de Manoel, permanecendo
ali, no aguardo de novas instruções. Paiva retirou um pequeno gravador do bolso e se dirigiu também até onde
se sentara Manoel. – Quantos anos jogaste no Benfica? – Dois anos e meio. – E antes? – Sheffield Wednesday. Três anos. – E antes? – Oh, pá, tu não sabes já tudo isso? – repeliu Manoel. – É só para testar o gravador.
– Se é só para testar, respondo‑te que não sei em que clube joguei
antes, porque não conseguia perceber o escudo na camisola. – Tem paciência, aí está – diz Paiva, voltando a gravação e verificando
o volume. – Pronto, está bem assim, começamos de verdade – aduziu o
repórter. – O que representou para ti o afastamento do futebol, na
altura em que eras reconhecido em todo o país? – O futebol era o que melhor sabia fazer; com ele conquistei respeito; e
com o dinheiro ganho, conquistei independência. – E acrescenta: – Era,
em suma, tudo, ou quase tudo o que eu tinha. – Tu te arrependeste de haver iludido os que confiaram em ti? –
perguntou Paiva, indo direto ao ponto. Manoel retirou os óculos do rosto e os apertou discretamente entre as
mãos. – No último clube em que joguei, o Benfica, defendi seis penalidades
máximas em menos de um ano, algumas dezenas de bolas dificílimas e uma
centena de outras. Fiz o que qualquer bom guarda‑redes faria pelo seu
clube. Não traí ninguém. – Não quis dizer isso – retrucou Paiva. – Mas não podes negar,
permite‑me a franqueza, que tu escondeste o fato de seres cego como uma
topeira. O tom de voz de Paiva não escondia um de seus graves defeitos: a
incapacidade de se controlar quando o momento o exigia. E, junto com
esse defeito, outro, que era o de antagonizar todo aquele que se
encontrava próximo dele, e de exagerar o peso do braço, em situações em
que para obter o que pretendia seriam necessárias justamente doçura e
lhaneza. O entrevistado recolocou os óculos, olhou ao redor do estádio vazio,
acusou o golpe, mas reagiu. – Com ou sem o problema visual, vesti a camisola com profissionalismo.
Se não fosse aquela partida contra o Sporting, talvez estivesse fazendo
um papel melhor do que os sucessores do meu posto têm feito desde então. – Sem dúvida, não contesto. Achas então que a diretoria do clube não te
deveria multar e afastar?
– Francamente creio que não. Pois não era minha responsabilidade
avaliar minhas próprias condições físicas, mas do departamento médico,
que, se não sabia que eu enxergava mal, ao menos desconfiava. – Achas realmente que deveriam dar‑te novamente a camisola de arqueiro
no jogo seguinte? É isso o que tu pensas? – insiste o entrevistador,
levando a conversa por uma vereda perigosa. – Há corredores de carros de corrida sem visão perfeita. Há mesmo alguns
com deficiência de visão, como o Bob Rahal, e que terminam na dianteira.
– Corredores de carros trabalham sentados, não têm contato físico com os
outros competidores – argumentou Paiva. – Joguei aproximadamente 90 partidas pelo Benfica, mais de 100 pelo
Sheffield Wednesday. E não sei mais quantas por outros clubes. Apenas
uma vez, uma única vez, em centenas, cheguei a perder a lente de contato
em um jogo.
– E foi fatal! – acrescentou Paiva, exaltado. O pequeno gravador com
microfone embutido tremia em suas mãos. – Era para dares tua opinião que me chamaste aqui? Se soubesse disso,
não teria vindo! Pois a tua opinião e a de teu jornal pouco me importam!
– rebateu Manoel arrancando os óculos do nariz. Paiva bateu com a palma da mão direita na própria perna. – Façamos o seguinte: mudemos de assunto. O motivo desta entrevista não
é tua deficiência visual. – E qual é então o motivo? – perguntou Manoel. – Dir‑te‑ei ao almoço. Tu almoças comigo? – perguntou Paiva. – É um
convite do jornal – disse, finalmente conciliador. Agradava a Manoel impor sua existência, desiderato que imaginava
alcançar enfrentando o lado perverso do mundo com as armas da sua
verdade. E, naqueles instantes, esse mundo maligno estampava‑se por
inteiro na cara ictérica de Paiva.
Contudo, ao mesmo tempo em que as palavras do entrevistador
afrontaram‑no – como uma espécie de simulacro da opinião pública, e em
que, ao ouvi‑las, sentira‑se motivado para o embate, instigado para
lutar –, a quase intimidade com o oponente e o jogo melífluo e
intrigante, que parecia começar agora, excitavam sua imaginação. Era
como ter o atrevimento de esfregar as mãos na focinheira de um leão
faminto. Por essa razão, a resposta de Manoel não poderia ser outra. – Pode ser, por que não?
– E o que tu tens feito para sobreviver? – perguntou Paiva, segurando o
braço do ex‑jogador, ao mesmo tempo em que se levantava do degrau em
que se encontrava. O fotógrafo guardou seu equipamento e seguiu o
jornalista.
– Vivo das minhas magras rendas – respondeu evasivamente Manoel. – Podes ser mais explícito? – Na ocasião em que parei de jogar, era sócio de uma pequena pensão no
Gerês, e ainda sou; possuía, além disso, uma casota no Algarve e dois
andares em Lisboa.
– Tinhas seguro para a eventualidade de não poderes jogar mais? – Sim, tinha – respondeu Manoel, enquanto caminhava ao lado do repórter
para fora do estádio. – Então vives bem, apesar de não trabalhares mais? – pergunta
conclusivamente o entrevistador. – Não vivo como vivia antes, nem tenho mais os dois imóveis aqui em
Lisboa, que comprei com o dinheiro de minha transferência para o
Sheffield. Mas não estou mal. – Portanto, vives de renda – insistiu Paiva. – Não vivo inteiramente no ócio. Algumas vezes auxilio meus pais no
negócio da família. Mas a bem da verdade não preciso disso. – E que negócio é esse, exatamente? – Um estabelecimento comercial, um café com sala de almoço, ao pé da
Quarta Parada, no Campo de Ourique. Os três atravessam a ampla calçada em frente ao estádio. O carro do
jornal os aguarda. – E de onde és? – perguntou Manoel, já no carro do jornal, a caminho do
restaurante. – Nasci em Amarante, em uma morada humilde, quase ao pé do Zé da
Calçada, na 31 de Janeiro. Conheces? – Penso que cheguei a entrar na cidade, mas não me recordo se cheguei a
permanecer lá por mais do que alguns minutos. O repórter continuou: – Aos quinze anos, mudei‑me com a família para Viseu, antiqua et
nobilissima cidade. – Essa eu conheço bem – disse Manoel, acomodando‑se no fundo do assento
do automóvel. – E conheço não só porque lá joguei, mas porque lá voltei
inúmeras vezes. Hospedava‑me no Hotel Avenida, de onde, a pé, saía ao
encalço de uma Lídia que não era a do Ricardo Reis.
E a voz do ex‑jogador se tornou mais branda:
– Vem sentar‑te comigo, Lídia, à beira do rio, sossegadamente fitemos o
seu curso e aprendamos que a vida passa, e não estamos de mãos
enlaçadas.
Manoel olhou para fora do carro, como se a observação da paisagem
pudesse prolongar as sensações que o poema de Reis evocara. – Então, gostas de poesia! – exclamou Paiva desconcertado, acentuando as
sílabas com afetação. – A poesia veio antes do que o interesse pelo futebol. Ficou todavia
abandonada, esquecida em benefício de coisas mais práticas, mas não nego
que aprecio muitíssimo. – E eu também – acrescentou Paiva. – Quando recitavas o verso falando
do rio, lembrei‑me novamente de Amarante, e de seu rio, que como tu
sabes é o Tâmega; rio que passava defronte de minha casa, e lá ainda
passa, com seus carvalhos e plátanos nas margens; com seus salgueiros
beijando a água, numa mansuetude que não era a dos meus quinze anos.
Paiva interrompe‑se por um instante e prossegue: – A casa defronte do rio é que não é mais minha, infelizmente. – Sim – balbuciou Manoel, ainda fitando as ruas através da janela do
carro.
Voltou‑se em seguida para o repórter: para onde me levas? Paiva, que por distração nada dissera ao motorista do carro, curvou‑se
sobre o encosto do banco dianteiro. – Seu Moraes, vamos a uma marisqueira na Praça do Chile. Ao chegar nas
proximidades, mostro‑lhe o sítio. O motorista balançou a cabeça
afirmativamente. – Não é o restaurante do Castelo de São Jorge, nem tem
seu luxo, mas come‑se bem, e isto é o que importa – disse,
dirigindo‑se a Manoel. Sem saber ao certo se foi a menção que Paiva acabara de fazer do
restaurante ou se foi pelo fato de este haver mencionado seus pais, ou,
ainda, por causa das duas coisas combinadas, o fato é que a lembrança do
compromisso de substituir a mãe nos afazeres do bar, enquanto esta se
ausentasse, veio à mente de Manoel como um soco na testa. – Paiva, ao chegarmos à marisqueira, dar‑me‑ás licença de telefonar,
pois não? – E acrescentou, como se estivesse endereçando ao repórter as
desculpas devidas à mãe:
– É que não vejo como estar em dois sítios ao mesmo tempo. Vou avisar
que me atraso. Razões profissionais. – É assim que se fala – disse Paiva, estimulante, sem contudo
compreender exatamente a que se referia Manoel ao dizer da
impossibilidade de se encontrar em dois lugares diferentes. O carro contornou a Saldanha e virou na direção da Avenida Casal
Ribeiro. Manoel calou‑se, nutrindo uma ideia fixa: telefonar, telefonar
assim que puser o pé na calçada. Uma hora deve bastar para o as
palrações de Paiva, considerou. Depois, é tomar um táxi e desabalar para
o Campo de Ourique. Mais uns trinta minutos. Não mais do que isto. – Já estamos na Almirante Reis – avisou Paiva, compelido pela
necessidade de preencher o silêncio que se instalara dentro do carro.
Ao lado do motorista, Nuno olhava absorto à frente, segurando, como se
embalasse um cesto de bebê, a sacola com seus petrechos de trabalho. O
carro afastou‑se da Alameda Afonso Henriques.
– Moraes, deixa‑nos mesmo ao pé da Praça do Chile. Depois procura uma
vaga em uma travessa da Morais Soares ou da Pascoal de Melo, e nos
encontra no restaurante. – Qual o nome? – pergunta Moraes. – Olha, é bem ali. Podes parar. Podes parar, homem de Deus! Estás vendo?
– bradou Paiva, gesticulando energicamente. – Marisqueira Chimarrão? – Pronto. Aí tens – disse o repórter, ainda arrebatado. – Desçamos,
antes que o Senhor Moraes nos leve de volta ao Estádio da Luz.
A iluminação é débil e tons vermelhos predominam na marisqueira que,
diferentemente das outras, exala um intencional ar afrancesado de
bistrot. Quando a porta da rua se cerrou atrás de Manoel, também ficaram
do lado de fora a orquestração de ruídos da Praça do Chile – com seus
bondes, seus comerciantes à soleira das portas, sua clientela simples,
de modos apressados e fala ácida – e o dia de luminosidade
incandescente.
Paiva avançou na semipenumbra e escolheu uma mesa redonda e ampla, no
centro do salão, de modo que todos se acomodaram perfeitamente ao redor
dela.
Quando o garçom ameaçou tirar os talheres em frente à única cadeira
vazia, Paiva advertiu: – Aguardamos mais alguém, podes deixar como está.
Em seguida dirigiu‑se a Nuno: – Quero ver quanto tempo levará para o Moraes estacionar o veículo. Esta
cidade está a entupir‑se de latas. Manoel, nem bem se sentara, saltou como uma mola de sua poltrona e se
pôs de pé, aflito. – Vou telefonar à casa. Já volto.
Enquanto o ex‑jogador despachava‑se marisqueira adentro, no intuito de
localizar um telefone, Paiva e Nuno manuseavam o cardápio. O garçom traz três buchas em um cesto. Os dedos de Nuno pinçam uma
delas, nem bem tocam a mesa. Paiva olha desinteressadamente os modos do
fotógrafo. Do outro lado do restaurante, ao canto de um balcão cheio de pratos e
copos sujos, Manoel ouve seu pai atender ao telefone, e diz: – Aqui é Manoel.
Seu pai não responde de imediato, como se esperasse a construção do
sentido da frase. Manoel continuou: – Infelizmente vou atrasar‑me deveras. Quero pedir desculpa à mãe. – Tua mãe já saiu – diz o sr. Albano Aires. – E tu me fizeste mais esta!
Não posso mais confiar em ti. – Eu irei, prometo que irei. É só mais uma hora, talvez menos –
defende‑se Manoel. – Tu vais me obrigar a fechar em pleno dia o bar, coisa que jamais me
aconteceu antes!
– E se eu não estivesse aqui, como o senhor se arranjaria? – Não me faças rir. Tu sabes bem que não empreguei o Fonsequinha porque
tu me deste tua palavra que ficarias algumas semanas a atender o
balcão. – E arrematou: – O bar é nosso sustento, não nosso passatempo! – Eu já vou. Tem paciência, sim?
Quando Manoel chegou à mesa, já lá estava o motorista, abocanhando a
última bucha que sobrara. Os comensais faziam seus pedidos e Paiva
encomendava o vinho. – O que vai ser? – perguntou o repórter a Manoel. – Qualquer coisa – disse o ex‑jogador.
– Queres uma sugestão? – Sim, faço gosto que me escolhas o prato – respondeu Manoel. – Pede umas ameijoas a Bulhões Pato e uma posta de cherne com grelos –
sugeriu Paiva. – Estou sem apetite, ademais não posso demorar‑me demais. Só o peixe,
está bem? – Como quiseres. O repórter em seguida dirigiu‑se ao garçom e encomendou um vinho branco
do Douro.
O serviço avançava com lentidão. A impaciência de Manoel aumentava e o
ex‑jogador exibe‑a agora arrancando os óculos do nariz e
recolocando‑os entre uma e outra mirada no mostrador do relógio de
pulso. Paiva apercebe‑se disso. – Antes que teu descompassado coração pare de bater, vamos ao que
interessa. Em primeiro lugar, quero que o Nuno deixe de lado a sopinha e
faça‑me o favor de trabalhar. E tu, quero que me ouças, está bem? Manoel assentiu. Incontinenti, o fotógrafo limpou os beiços e abriu o zíper da maleta,
dali extraindo a câmera fotográfica.
– De que se trata então? – perguntou o ex‑goleiro. – É simples. Queremos‑te novamente em circulação. É por isso que a
editoria de esportes incluiu‑te na pauta.
– E para quê? – O jornal acha que uma matéria favorável sobre ti bastaria para que o
país inteiro voltasse a ver‑te com simpatia, e até com saudade.
– Sim, mas repito: ainda não percebi qual a finalidade. – Queres um pouco de vinho? – pergunta Paiva, sentindo‑se sutil. – Basta, assim está bem – diz Manoel, levantando o copo da mesa, mas não
escondendo sua ansiedade para que o repórter pusesse de uma vez as
cartas sobre a mesa. – O que o jornal pretende é oferecer‑te uma crônica esportiva semanal.
Uma coluna, para escreveres sobre o que tu conheces. E com inteira
liberdade de opinião, como convém a uma coluna assinada. Mas antes de
mais nada, como te disse, precisamos devolver‑te ao mundo, fazer teu
nome ouvido aqui e ali, compreendes? O ex‑jogador recolocou os óculos que havia retirado segundos antes. À
sua frente, o rosto de Paiva, com seus olhinhos de rato, seus modos de
pequeno roedor, endereçando‑lhe uma proposta salvadora e inteiramente
inesperada. – Queres dizer que o convite está condicionado à receptividade de meu
nome? O flash da máquina de Nuno espocou na retina de Manoel. – Não é bem assim. Achamos que uma matéria jornalística simpática sobre
ti daria maior segurança a teu regresso; prepararia, por assim dizer,
teu caminho de futuro cronista. – Garantiria o empreendimento do jornal, isto é o que queres dizer. – Se entendes assim – respondeu Paiva, reticentemente. – Estão por acaso os senhores imaginando que em benefício do bom nome do
jornal e sucesso da seção eu consentirei em fazer publicamente um mea
culpa relativo a um incidente ocorrido há três anos atrás, e do qual não
tenho qualquer remorso? – De modo algum, tu estás sendo precipitado e leviano, se me permites a
franqueza – atalhou o repórter. – Não admito que me dirijas a palavra desta maneira! – contra‑atacou
Manoel. – Tu pensas, ao que parece, que o mundo inteiro gasta seu tempo a
preparar‑te uma peça? O pequeno roedor defendia seu patrão com as armas da ironia, pensou
Manoel. – Todo ele, não – redarguiu o ex‑jogador. O repórter serviu‑se de mais vinho, atacou uma lasca da batata cozida
que acompanhava as lulas, deixou sabiamente escoar alguns segundos e
respirou fundo. Manoel tinha os cotovelos abertos como se fosse voar; os
dedos contraídos, os punhos sobre a mesa. – Independentemente de tua opinião e de tua má vontade, penso que é uma
oferta tentadora que o jornal te faz. Basta seres prático e
desarmares‑te. Lucrarás muito com tudo isso – profetizou. – E a parte financeira? – Agora, sim, falas bem. Ora, a parte financeira não deixa a desejar.
Garantote – diz Paiva. – Se teu nome repercutir bem, com certeza não
precisarás vender mais nada daquilo que é teu, para pagares tuas contas.
E ainda reconquistarás a celebridade. – E para quando é isso, quero dizer, qual é o próximo passo? – Breve tu serás chamado – afiançou o repórter. – Deixa tudo comigo,
está bem? Tua matéria sairá com grande destaque, verás. Mas acalmate.
Não tenho raiva de ti.
Eram 14h45 quando o exgoleiro entrou num táxi rumo a seus relegados
afazeres no Bar e Tabacaria da Quarta Parada. |