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1. Migração dos Cisnes é um romance multicultural,
todo ambientado na Europa. De onde veio a inspiração para construir essa
história?
Veio de uma mistura de atrevimento, ousadia, alegria
e intimidade. Os dois primeiros ingredientes fazem parte do meu fazer
literário. A alegria, por conseguir lidar com minha herança europeia,
com minha vida de andarilho e pesquisador e poder mesclar tudo isso com
um projeto literário; alegria, ainda, porque já sabia de antemão, logo
que o projeto começou a se desenhar na minha cabeça, que iria ter enorme
prazer na sua realização. Intimidade é a palavra que melhor identifica
minha relação com Portugal, França e Irlanda. Acrescentaria a tudo isso
mais algumas coisas, temperos, como o de concretizar uma espécie de
colonização reversa. Explico: instalo-me no mundo europeu,
disfarçando-me ora de português, ora de francês, ora de irlandês, e
colho uma história, ou várias, inventada, mas recriada a partir do que
lá está. É muito mais honesto do que fez Pero Vaz de Caminha que
permaneceu vestido enquanto os índios o admiravam nus. Mas voltando ao
livro, Migração dos cisnes é um romance de um escritor profundamente
brasileiro, que apeia do outro lado do Atlântico e se põe a narrar e a
reinventar o mundo que depara. É um registro de diversas ‘almas’
europeias e é um testemunho, um registro, melhor dizendo, do homem
contemporâneo. É já um mundo sem fronteiras físicas muito salientes,
esse nosso, mas que não escamoteia outras de toda sorte, envolvendo
oportunidades desiguais, angústias e pânico no âmbito da solidão
individual, da troca, da experiência humana, da vida material, da
fantasia e do sonho pessoais. Como a vida, devo acrescentar que Migração
dos cisnes é um jogo, um jogo jogando a vida com os elementos que ela
fornece. Um jogo intenso e um convite inadiável para viver.
2. Sua obstinação pela excelência literária não
prejudicaria, de alguma maneira, o entendimento de seus livros pelo
leitor comum?
Não conheço ninguém mais obstinado pela excelência do
que nomes como James Joyce e Henri James. Seus livros vendem no mundo
inteiro até hoje. A excelência e a qualidade andam de mãos dadas com a
perenidade e a vida longa da obra literária. A excelência é a formadora
da cultura e do pensamento. Se logrei alcançar em algum momento esse
estágio almejado, não poderei responder, mas o que mais conta é
justamente não se contentar com fórmulas literárias já gastas e
repisadas. Há mais de 700 anos o romance se instalou em Portugal. Não
podemos exigir que se leia hoje como se lia “A demanda do Santo Graal”,
em sua primeira tradução portuguesa (aproximadamente em 1270). A
evolução mental da raça humana deve encontrar sua contrapartida no
âmbito das artes. E, até onde sei, a obra de grande qualidade é muito
mais facilmente digerida do que a obra feita por mãos inexperientes ou
pouco calejadas. Só não percebem isso editores que não conseguem se
relacionar com o grande público. “Cuidado ao alimentar os leões! Jogue a
comida por cima da grade de aço” diz o aviso do zoológico. O leitor
comum, o leitor em formação, o jovem leitor, enfim, necessitam de um
texto de ficção, de um poema, de um filme que os seduzam pela clareza
fílmica ou literária, pela inventividade, pelas imagens, pela trama. Que
os atraiam. E isso ocorre quando a obra consegue dizer-se a si própria
sem subterfúgios; isso ocorre pelo simples fato de que o belo é uma das
mais antigas buscas do ser, desde as pinturas rupestres fazemos arte,
registramos, com os elementos que temos à disposição, o mundo ao nosso
redor. A arte e a literatura, oral ou escrita, fazem parte de nós, de
nossa vida.
Agora, os leões (leia-se os leitores) estão
enjaulados, dizem os editores, ou ao menos muitos deles, podemos então
atirar qualquer coisa de má qualidade. Se eles estiverem famintos,
comerão, não é verdade? O mesmo se dá com a grande massa de leitores
insatisfeita do Brasil. Edita-se muito, edita-se lixo, de modo geral.
Com o surgimento de faculdades em cada esquina, espalhadas pelo país
afora, haverá sempre um poeta excluído em cada rua, em cada prédio.
Ainda hoje escrever e publicar é um sonho. Originais de todas as partes
são atirados sobre o colo de editores indiferentes.
Ora, essa história é muito antiga em países
desenvolvidos. Em Paris, onde vivi, encontrei ao acaso uma dezena de
jovens servindo cafés em bistrôs lamentando que não tiveram ainda
oportunidade para apresentar seu extraordinário trabalho, muito superior
ao que as galerias expõem, melhor ainda de tudo o que se encontra nos
museus. Todos têm ideias absolutamente originais, jamais pensadas antes,
mas a burguesia francesa não lhes dá espaço.
Agora, o tom de sua pergunta sobre a minha obstinação
pela qualidade, pela excelência literária soa como algo alheio à
indústria cultural, quando deveria ser seu objetivo maior. Quem em algum
momento provou que escrever qualquer coisa de qualquer modo, gera um
produto final mais agradável ao espírito? Ora, o leitor não sabe
escolher entre o que é do partido da excelência literária e o que é do
partido da mediocridade literária, e, convenhamos, é mais fácil seguir
pela larga avenida da mediocridade, do que buscar a excelência. Mas será
isso realmente verdade?
Jamais senti de um leitor medíocre qualquer desalento
ao deparar por engano uma obra literária de grande qualidade. Comigo
aconteceu bem o contrário. Ganhei leitores ao primeiro contato com minha
obra; leitores que não sabiam escolher livros, que os compravam e os
liam porque estavam mais à mostra. A realidade é bem outra. A excelência
não é um recinto fechado, impermeável aos mortais. É um salão aberto,
escancarado, cheio de luz e alegria, repleto de humanismo e beleza.
3. Até que ponto sua obra ensaística, em particular o aprofundamento
no estudo do modernismo português, influencia sua obra ficcional?
O meu projeto acadêmico tomou consistência no momento
em que descobri a obra de Cesário Verde. Um pré-modernista. Desse
momento em diante eu já sabia que iria, depois de Cesário, continuar a
vereda em direção a Pessoa, Almada-Negreiros, Mário de Sá-Carneiro -- os
modernos portugueses, como se costuma dizer. E foi o que fiz.
Entretanto, por mais estranho que possa parecer, nenhum deles
influenciou o meu trabalho diretamente.
De cada um deles recebi, contudo, um sopro de vento
para ir até o mar alto e não ter medo de abrir caminho através das ondas
e correntes. A busca de novas formas de narrar e versar está neles, como
em outros brasileiros, franceses, irlandeses, latino-americanos. Creio
que quando decidi entrar para o mundo acadêmico, talvez por já haver
percorrido um bom caminho como escritor, eu já houvesse fincado algumas
raízes no terreno movediço da ambição de inovar. Meu trabalho sobre o
Orpheu tornou-se incessante após minha defesa de tese, há quase duas
décadas. E correu paralelamente ao meu projeto literário de poeta e
prosador. Mas é evidente a forte contaminação que a atividade crítica
exerce sobre o trabalho poético e prosaico, quer meu objeto de trabalho
fosse o modernismo ou o barroco, e o contrário também é verdadeiro. Mas
isso não quer dizer que iria reeditar na minha escrita o verso barroco
por força de lidar com ele intensamente. Seria subestimar demais a
atividade crítica, o bom-senso e a capacidade humana de, em espírito,
estar em vários lugares ao mesmo tempo. Não quero repetir Gregório de
Matos, nem Fernando Pessoa, ou Joyce, ou Manuel Bandeira, ou Eugenio de
Andrade. Estou com todos eles e com nenhum. Estou lutando comigo e por
vezes contra mim para me superar, para rejeitar pela décima vez a frase
que iria fechar um certo parágrafo, até encontrar a linguagem que me
supera até esse exato momento. Então, aí, saberei que avancei um pouco
mais na direção do objetivo intangível e talvez inalcançável da
excelência.
Mas convenhamos: a solidão de escrever é menor quando
se sabe que por cima dos seus ombros, por cima dos ombros do escritor,
do poeta, estão bisbilhotando o que você escreve autores de outros
lugares e épocas. Escrevo com eles, por causa deles, e por causa da
obrigação que sinto ter de testemunhar a existência do homem na face da
terra. Essa é a tarefa.
A literatura é uma enorme rede. Cada nova obra é um
novo nó, que altera, mesmo que de maneira muito sutil, a tensão em
pontos distantes da mesma rede. Quando faço um verso sem pontuação penso
por vezes em Guido Cavalcanti, do século XIII, amigo de Dante (e sei que
o nó da poesia de Guido estremeceu um pouquinho); quando penso em
cabelos negros, me ocorre qualquer coisa de Vinícius de Morais, qualquer
coisa lírica, que não vou aproveitar, mas que causa em mim um certo
contentamento íntimo, muito íntimo.
4. É sabido que o brasileiro lê pouco. O índice de leitura aqui é
muito inferior ao dos países desenvolvidos, e até mesmo de alguns em
desenvolvimento, como a vizinha Argentina. A que atribui isso? E como
enfrentar esse problema?
O Brasil se tornou um país visual antes de ser um
país da palavra escrita. O que não ocorreu no Velho Mundo, nem nos EUA,
só para dar dois exemplos, nem mesmo na América Espanhola, em que se
edificou a segunda ou terceira universidade mais antiga do mundo, em
Lima (Peru). A colonização portuguesa proibiu a imprensa até a chegada
de D. João VI e sua comitiva ao Brasil. Jornais eram proibidos, e um
indivíduo que tivesse mais do que três livros em casa era considerado o
sábio do ‘pedaço’. O Governo brasileiro, em todos os níveis, desde o
início da Primeira República, deveria reconhecer que estávamos muito
atrasados e que tinhamos que lutar com todas as forças para recuperar o
tempo perdido, o tempo não lido, o tempo não pensado e não escrito. Mas
não fez isso.
Diferentemente, a colonização do Oeste dos EUA
ocorreu de acordo com um modelo que se reproduziu em todo o país.
Primeiro se construía a prefeitura, depois a Igreja, a biblioteca e a
Escola. Estes eram os esteios da vida pública e as referências magnas da
vida privada.
Na Inglaterra, uma revolução cultural teve lugar
depois da Primeira Grande Guerra, quando se formulou nos altos escalões
uma diretriz que fomentaria a implantação de bibliotecas públicas em
todo o país, com o propósito de valorizar e salvaguardar o futuro da
língua e da cultura inglesas. As bibliotecas surgiram então, como
grandes salas de leitura. A pesquisa como função surgiu depois. A
indústria editorial se ergueu vertiginosamente, impulsionada pelo
programa de aquisições governamentais que aparelhavam as salas de
leitura com novos titulos a cada semana, garantindo o custeio de
edições. A biblioteca era um equipamento escolar obrigatório, e a
universidade já implantada em grande parte antes do século XVIII se
modernizava.
Nesses países havia um reconhecimento tácito de que a
leitura, o conhecimento e o domínio das artes, das letras e da ciência
eram o único meio para o desenvolvimento humano.
E o que ainda hoje temos no Brasil? Escolas públicas
e privadas, cidades pequenas e médias, inclusive faculdades e
universidades sem bibliotecas. E, quando existem, não são geridas por
bibliotecárias, mas por zeladores de livros. Seus acervos são medíocres
e jamais atualizados, posto que os prefeitos e governadores não crêem
que gastar com livros seja eleitoralmente falando muito lucrativo. Muito
pelo contrário.
A televisão brasileira controla os meios culturais
com garras inquebrantáveis e instala-se no interior das casas
disseminando uma campanha incansável que valoriza o exterior, o visual,
o efêmero. O jornalismo busca o sensacional, o desastroso, o acidente
brutal, a fofoca política, e adquire as matérias de fundo, sobre
política, economia internacional, análises de conjuntura, lá fora, das
agências. O espaço na imprensa escrita para divulgar a literatura é cada
vez mais reduzido e entregue, por medida de economia, a jornalistas (que
já se encontram na folha de pagamento da empresa) que muitas vezes não
têm formação alguma para resenhar uma obra. Literatura não vende jornal,
dizem os chefes de redação. Pode o quadro ser pior do que este? Acho que
pode. Basta proibirem que se escreva boa literatura, bom ensaio e que
também se proiba que se pense em voz alta. Aí então teremos chegado ao
fundo do poço nessa questão.
5. Solução? Soluções?
Eis algumas:
1. Leis que obriguem estados e municipios a empenhar
parte da verba na aquisição de obras literárias de autores brasileiros
ou não para as bibliotecas públicas;
2. leis que obriguem que estados e municípios
construam mantenham e equipem bibliotecas públicas, mantendo pessoal
preparado para tanto, informatizando-as e interligando-as em rede
municipal e estadual; e, ainda, que essas bibliotecas tenham seu acervo
acrescido anualmente em pelo menos 30%, todos os anos;
3. leis que obriguem que a imprensa televisiva,
falada e escrita criem em sua grade de programação, a primeira e a
segunda; e em sua pauta, a última, programas focados na divulgação da
literatura brasileira primordialmente, programas esses que deverão
ocupar pelo menos 5% da grade ou espaço, conforme o caso, da matéria
jornalística editada. Isso é limitação à liberdade de imprensa, dirão
alguns. Isso é amplificação do direito humano de pensar, direi eu e
muitos outros que pensam como eu penso;
4. leis que obriguem a implantação de bibliotecas
escolares a curto prazo, não daqui a dez anos, como pretende o governo
federal hoje (agindo como sempre, tardiamente);
5. criação de postos de ensino em universidades para
escritores (residência), com carreira própria: criação de cursos e
workshops literários, para ensinar professores e alunos a escrever e a
valorizar a escrita e a leitura;
6. criação de um programa permanente e obrigatório,
em todo o território nacional, de encontros e palestras de escritores em
todas as universidades brasileiras, públicas e privadas; escolas de
primeiro e segundo graus e instituições ligadas de alguma forma à
cultura;
6. criação de incentivos financeiros para a
publicação de obras literárias de autores brasileiros que possibilitem
primeiramente que autores possam receber subsídios para escrever e
editoras apoios para publicar suas obras, sem burocracia e complicações
demasiadas;
7. criação de uma campanha permanente para incentivar
o gosto pela leitura nos meios de comunicação, campanha parcialmente
subsidiada pelos governos federais e estaduais, e em parte por empresas
privadas (que poderiam obter redução de impostos na proporção dos
investimentos feitos e comprovados nessa campanha pela leitura).
8. criação de postos avançados de oferta de obras
para leitura, interligados à principal biblioteca municipal de cada
cidade, permitindo que os habitantes de todas as regiões e municípios
possam retirar livros para ler no caminho do trabalho, mediante
apresentação de um cartão magnético de identificação e controle de obras
retiradas.
9. ampliação dos programas de ensino de línguas e
literatura nas universidades federais em pelo menos 50%;
10. ampliação dos programas de ensino de português e
suas literaturas nas escolas de primeiro e segundo graus;
11. obrigatoriedade de avaliações escolares por meio
de trabalhos escolares escritos nas áreas de língua portuguesa e
literatura brasileira, com base em critérios de desempenho e domínio do
idioma e do assunto de maneira efetiva, sendo o resultado insuficiente
determinante para que o aluno volte no ano seguinte ao mesmo ano de
formação em que se encontrava, até dominar o idioma com a devida
fluência e conhecimento.
E fico por aqui, porque a solução do problema da
ausência de leitores e do baixo índice de consumo de livros por
habitante no Brasil não se esgota com essas onze medidas apontadas.
6. Mas voltando a seu romance Migração dos cisnes, que você acaba de
lançar no Brasil, por que motivo ou motivos a comparação com a música
está sempre presente quando você fala desse trabalho?
É que quando surgiu a ideia de produzir um livro
europeu, no sentido de que toda a ambiência da obra é europeia, e em
seguida, após refletir sobre sua provável estrutura, personagens e
enredo, concluí que para dar conta só da primeira parte do livro, de
modo intenso e minucioso, dos quatro dias da vida de duas personagens,
como foi afinal o que foi projetado e realizado, e ainda introduzir os
elementos que seriam utilizados na segunda parte, eu necessitaria de
centenas de páginas, para obter o efeito e o resultado pretendidos.
Nesse ponto lembrei-me de um projeto de Carpentier, que atrelava sua
novela a uma determinante peça musical.
Mas não era isso o que eu desejava. O que
efetivamente pretendia era buscar construir uma obra que fosse sempre
fresca a cada página virada, que não provocasse fastio. Para tanto,
pensei – e aí entra a música – nas grandes sinfonias. E ao pensar nisso
refleti sobre os diversos movimentos que a compõem e se articulam entre
si, ora mais moderados, ora mais pulsantes e enérgicos, voltando a algum
ponto entre a moderação e a emoção incontida, para depois oferecer em
outro movimento uma explosão de emoção, etc.
Concluí que Migração dos cisnes deveria evoluir sobre
diversas plataformas narrativas, alterando ritmos, ora esmiuçando
detalhes como pode fazer uma câmera cinematográfica parada, com lente de
zoom; ora oferecendo ao leitor um convite para correr agarrado ao fio
narrativo, como alguém que ama a velocidade e a vertigem. Isso, no meu
modo de entender iria permitir que a obra se desenvolvesse como
planejado sem cansar o leitor (e o autor também!). Decidi ainda que a
segunda parte do livro receberia a maior dose de aceleração, com a
entrada em cena do criador do jogo de Dublin, homem maduro, casado com
Kate, pai de Kathleen, artesão nas longas horas vagas que a
aposentadoria lhe oferece diariamente, e grande leitor, mas também homem
que não esquece de uma perda que afetou sua vida desde então: a morte
prematura de seu filho, ainda menino.
Mas já estou contando a história, quando na verdade
só devo responder ao que me foi indagado: a relação da obra com a
música. Pois bem, na segunda parte, já se sabe, tudo parece ganhar
aceleração, ou, melhor, eu diria que a aceleração da narrativa predomina
sobre a contenção mais do que na primeira parte. Por essa razão, e por
outras, que não vou revelar agora, a segunda parte é menor que a
primeira. Você vai querer saber se o final do romance é surpreendente?
7. Claro que sim, muito, e por diversos motivos.
Mas essas coisas são da alçada da obra. Não cabem nesta entrevista nem
neste espaço.
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