Wilson Daher - Triplo II: O blog do TriploV - Revista TriploV de Artes, Religiões e Ciências
 
 
 

WILSON DAHER

Natureza em transe

Wilson Daher, formado na Faculdade Nacional de Medicina da Universidade do Brasil (Rio de Janeiro), é mestre e doutor em ciências da saúde. É professor de História da Medicina da FAMERP - Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto.  Membro da Academia Rio-pretense de Letras e Cultura e articulista de jornais e revistas, é autor de várias peças teatrais. Publicou os livros Antes e Sempre (poesia), Diga adeus ao velho Aristóteles (novela) e Memorial de uma Faxineira (contos).

   
 

A natureza fala e refala, os ouvidos escutam e não ouvem, só ouvem aqueles que têm ouvidos para tanto. Que nem são tantos, porque estamos agora saturados dos monóxidos e dos urânios enriquecidos que se esparramam pelas calhas do mundo, dos machados e serras que, se cortam o sândalo, não percebem o perfume que recebem em troca, talvez pelo massacre a que se viciaram, das putrefações que correm como vísceras expostas pelo lodaçal que enojou os rios, pela voz do vento outrora suave, que emana agora suas amargas pestilências. A natureza fala e refala com sua voz de plástico, não mais a sonoridade dos ventos cantantes da antiga mocidade, polui os olhos e a alma, esta que desfalece em múltiplos heterônimos para não ser sequer ninguém, embaçando o rosto anuviado pelas nuvens de enxofre, vazando na pele como emanações que vagueiam pelos canais dos linfáticos, das artérias entorpecidas pelo polímero veneno. A natureza fala e refala pelo sangue escuro que viceja a céu aberto deste mundo-aldeia que descobre água em Marte e apodrece os rios de nosso viver, outrora serenos e compassados pelo murmurar que era quase uma sonata, talvez um prelúdio, quase um não sei quê de nítido e cristalino que se perdeu nas orlas do tempo. A natureza fala e refala sua percepção da falsidade de todos nós, que idealizamos discursos e passeatas, forma sutil de compromisso descompromissado, estamos plantando gemidos ao invés de vozes alertas para o canto das árvores e a luminosidade do sol escondido por trás das nuvens artificiais, que as fábricas emanam por suas chaminés-falos, em priapismo constante para a ironia dos céus e as asas negras dos pássaros. Mesmo quando os pássaros são brancos. Agora sim, vivemos em cavernas e presídios, muros que nos protegem e ao mesmo tempo nos aprisionam, devastamos matas e invadimos os descampados que se formam, até que venha a clorofílica nostalgia, então plantamos uma árvore, escrevemos um verso ou dançamos um bolero, ficamos presos à imagem falsa da reconquista, da penitência pelos pecados cometidos. Mas é inútil tudo, aqui não correrão mais o leite e o mel de nossa ingênua alegria, o coração da terra entrou em taquicardia e, um pouco lá na frente, talvez desfaleça em arritmia irreversível e não ouviremos mais nada, sequer nossos passos na areia escaldante de um sol atormentado pela pestilência de nossas próprias mãos

De nossas mãos, sim, que ainda dilaceram o corpo da mãe-terra que aparentemente (só aparentemente) se deixa promiscuir com nossas mazelas de um progresso que não chega, ou se chega será sempre com a dubiedade do que serve e do que surrupia, do que descobre e do que transgride, do que torna fatal nosso futuro corrompido pela flagelação de nosso próprio corpo e nosso próprio espírito.

Que assim não seja.  

   
   
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