Vivemos como se nada nos afetasse. Às vezes enxergamos o óbvio e
fugimos da possibilidade de interpretá-lo, uma escolha cômoda, porém
perigosa, pois nos coloca em situação acrítica, acéfala.
Muitos exemplos poderiam aqui ser citados, mas antes gostaria de
falar sobre o abismo que se formou entre a tecnologia e a arte, esta
seqüestrada por aquela, nos mais diversos campos de nossa atividade.
Certo cliente, com muita propriedade, me revelou certo dia sua
preocupação com os filhos e com as mudanças genéticas das futuras
gerações que, segundo ele, estariam já começando como uma síndrome
de adaptação aos novos tempos e novos costumes. O que ele dizia
estava, aparentemente, muito próximo de uma ficção científica, mas
interpretando depois as colocações feitas naquele dia, tive algum
arrepio, pois ao acreditarmos em mudanças genéticas evolutivas
(Darwin), não achei fora de propósito o que ele temia, como a idéia
de que futuras gerações teriam dedos pontiagudos, próprios para
digitações e inábeis para a arte de escrever. |
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É
fato que a tecnologia chegou para ficar e, hoje, nem sonhamos viver
sem ela, tal a facilidade que ela nos proporciona, como no momento
em que digito esse texto. Isto não me preocupa. O que me leva a
pensar de maneira mais profunda sobre o tema, tem outro viés: a
tecnologia matará a arte, ou ambas poderão conviver em harmonia,
cada qual ocupando seu devido espaço? Filmes de arte sobreviverão
ante o impacto cada vez maior dos chamados efeitos especiais, ou o
futuro nos reserva somente histórias robotizadas pela mecânica
tecnicista?
Sei lá, sei apenas que estamos seduzidos por tantas novidades
objetais, que o conteúdo de tais objetos andam nos escapando pelos
desvãos da indiferença e, sobre isso, tenho minha opinião: há falta
de sentido naquilo que andamos fazendo. Sempre penso que seria
bastante interessante, a cada ação efetuada, perguntarmos pelo
sentido. Muitos me perguntam, por exemplo, porque não tenho ainda
uma TV da tecnologia LCD, de imagem ultra-definida, clara,
cristalina e muito mais. E respondo que isto é bom, mas seria além
de bom, ótimo, se os programas da TV não continuassem na mesma
mediocridade com que acontecem em nosso dia a dia. Afinal de contas,
teria uma imagem de alta definição para enxergar as mesmas
pasmaceiras de sempre? Tô fora, porque não vejo sentido nessa
aquisição.
Pense em um carro cada vez mais sofisticado, última geração, de
múltiplos botões que tornam o veículo totalmente digitalizado: não
seria bom ter um carro assim? Claro que sim, mas se você pensar no
trânsito caótico que enfrentamos dia a dia, qual o sentido de um
carro de última geração? Não vejo nenhum, mas talvez qualquer dia,
eu mesmo caia na armadilha da sedução e mando às favas o sentido: o
ser humano é muito contraditório.
Dediquei esta crônica ao Dr. Afiz Nassif, por razões óbvias contidas
nesse texto: não seria por causa de um AVC que ele deixaria de
exercitar sua tão amada arte da pintura.
Tal exercício, para ele, naturalmente tem um sentido bastante
profundo na convivência com aquilo que ama.
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