NICOLAU SAIÃO & ALMEIDA E SOUSA
O desejo dança na poeira do tempo

OPERETA

(Música e concepção cénica de NS)

«Jehan Rictus disait : rêvons toujours, ça coute rien .
C'est faux : ça coute bien dur.» Marcel Delpach

Primeiro Acto
Segundo acto
Terceiro acto

SEGUNDO ACTO

Uma sala vulgar: duas cadeiras, uma mesa de castanho, um espelho redondo de meio corpo. Brunus sentado à mesa, Thiagus deambulando pela cena.( Os tambores e a trompete, que executam o seu intermezzo)

Thiagus - ( como se recitasse uma lição ) Foi tudo utilizado como meio

só como meio

para a libertação do homem

como um abismo de incertezas e porque o infinito

acabou

- é agora outra coisa:

a pobre velha gorda e depois magra que ao fim de tantos anos desapareceu

e nunca mais haverá outra como ela. O homem que dizia este é o meu testemunho

gostava que tudo ficasse dentro duma interrogação. Ombro com ombro

as letras acumulam-se e são uma realidade

duas realidades

ou mesmo três realidades. Se me permitem,

meus senhores minhas senhoras

vamos agora fazer um bocadinho de drama. Imaginem uma sala

com algumas floreiras, duas poltronas, três cadeiras

um aparador, uma mesa

e dois homens vestidos de cinzento. Mas o primeiro usa calças escuras e o segundo

veste camisa azul clara como se vê nos desenhos.( Ligeira pausa )

Brunus - Mas tem o meu amigo a certeza de que não havia ninguém no quarto?

E então como é que o assassino teria entrado? Diz você que ele tinha a cabeça aberta e

as goelas cortadas?

Thiagus - O senhor inspector vai desculpar-me, mas é mesmo assim. Aliás, àquela hora da noite o corredor estava inteiramente deserto. E a senhora estava já recolhida ao leito, no quarto que ocupava mais à frente. Ouvia-se um ruído como que de um martelo no sótão, mas vá-se lá saber...

Brunus - O que acho de mais interessante no teu discurso

é a utilização de expressões primitivas.

Thiagus - Mas não tem de que se queixar, afinal também andou na vida airada...

Brunus - É que sou de uma ilha onde o mar é mais azul

mas

emudece-me pensar assim

sempre me pareceu difícil a austeridade

quando assistindo às investigações eu mergulhava

nesta aparente calma. De aqui

resulta muitas vezes o testemunho irrefutável

da bárbara e pertinaz incultura

Com tantos antecedentes parece que o imprevisível nos leva a um resultado que não esqueceremos com facilidade

Direi mesmo cá para comigo

agora é que ela se foi

para o caraças

apraz-me pensar que está feliz

então

olho o céu e digo

chove... (pequena pausa)

Hum...hum! E quanto a impressões digitais?

Thiagus - Apenas as necessárias.( olhando em volta, com certo medo ) O martelo fez um belo trabalho. E o navalhame também não esteve nada mal. (elevando a voz) O senhor inspector deseja visitar a cave?

(Faz-se escuro a pouco e pouco . Depois, quando a cena se ilumina de novo, Thiagus reentra sózinho, esfregando as mãos e senta-se à mesa).

Thiagus - ( dirigindo-se ao público em tom coloquial ) No jardim das traseiras existem canteiros de ervas aveludadas e arbustos jovens onde vos seria grato passear. Pequenas estátuas de cupidos bicéfalos e de atletas gregos em poses diversas retratam imagens carregadas de saber universal. O silêncio pesa e os personagens imaginados, em movimento, muito lentamente, abandonam o espaço - dão lugar a um vazio imenso. Sejamos astuciosos como pássaros e cautelosos como crocodilos. O trabalho é o trabalho e quando é assim não há que hesitar. ( entra Martim ).

Martim - Ao romper o silêncio, a vida corre... corre ao encontro da morte inevitável.

A luz baixa até ao escuro total. No escuro .

1ª voz - A percepção do centro e da periferia...

2ª voz - A pele, a tua pele sedosa, desmantelava as mais belas resoluções!

1ª voz - Não há pachorra...

2ª voz - Aproximaste-te numa atitude quase doméstica. Adivinhava-te o olhar como uma flecha apontada à figura!...

1ª voz - E cresceu o desejo de sentir a impalpável presença da loucura.

2ª voz - E foi então que ao meter a mão no bolso senti o frio do metal.

A luz acende-se de repente. Um biombo cai, Margarida está de pé no centro .

Margarida - Estamos perante uma pura eficiência expressiva, sem quaisquer complacências...

Martim - Como?

Margarida - Não há prosa de menor duração que a lírica.

Martim - O que dizes é tão intenso... tão humano...

Margarida - ( abraça-o ) Todavia armado com a seriedade de uma sátira.

Martim - Pode ser...Com sete "ameixas" dentro e silenciador...

Pequena pausa .

Martim - Os teus desejos projectam-se na pessoa que eu sou. Os teus desejos aproximam-se como insectos atraídos por uma fonte de luz. Já alguma vez disparaste a curta distância, fazendo pontaria entre os olhos? Onde escondeste os remorsos?

Margarida - E os teus?

Martim - Ainda se encontram do outro lado da porta.

Margarida - Posso abri-la se o quiseres.

Martim - Peço-te. Não o faças. Dá expressão a esse território adormecido nos meus sonhos, esse território onde me sinto cómodo, completo... ( Pequena pausa )

... Então o sábio Enoque escutou o relato e mandou o velho Matusalém de volta. Matusalém era o portador de uma notícia alarmante - o grande juízo punitivo atingira a Terra e a humanidade. Toda a "carne" iria ser aniquilada, por consabidamente ser suja e perversa.

A cena escurece até à penumbra ao som do canto de um rouxinol .

Coro - Naquele território dominado pela aparente frieza

Martim - ( coloquial) Não sei como é com vocês, mas eu tenho uma preferência especial pelo Colt 38.

Coro - Desamparadas estâncias sempre vazias emanam ideias de locais desdobrados ocupando o centro

Martim - E se o assunto demorar recorre-se à navalha de Albacete das legítimas, ao amanhecer. Fere-se de baixo para cima, com o dedo sobre a lâmina...

Coro - O mar ao longe como se fôsse o deserto, como um perfil debaixo do arco escurecendo sob o sol de maio

Martim - E para os casos espinhosos o melhor é um golpe de cima para baixo na jugular quando os gajos estão distraídos. É limpinho... (A cena ilumina-se de novo. Margarida já se foi)

Coro - Das torneiras pingam vagarosamente fios de água que o desespero parece coagular. Elas -

não as palavras

mas o resto

abraçam-se longamente

enquanto devoram o mel que escorre pela madrugada

Martim - Estão a ver o meu ponto de vista? ( Rapa de um pistolão e abate limpamente um dos membros do coro, que cai de costas desamparado ). Com gente desta todo o cuidado é pouco. Vão por mim: é fogo para cima e alma até Almeida! Se não tosquiássemos uns quantos, qualquer dia faziam-nos crescer orquídeas debaixo dos sovacos...( Sai de cena com um andar todo airoso, como se fôsse um duro de cinema ).

Entram em cena Estephania - que subiu para o carro - e Brunus. Acariciam-se, enquanto Thiagus escreve sentado à mesa.

Thiagus - ( lendo o que escreveu ) Em cada semente

que cai no tapete

eu vejo o princípio

de novos céus e nova terra. Medito

em como ganhar-te

como possuir cada parte obscena de ti

cada bocado do teu corpo. (Vira e revira a folha. Em tom coloquial, para o público) E anda um homem para aqui a ganhar a vida e a aturar estas bacoradas... Não sei porquê, mas temo que até ao fim desta merda ainda cometa alguma loucura...

Brunus - Até ao gume da mais fria espada do Senhor

os nossos corpos na espessa noite

até ao gume

até ao gume

face a face

os nossos corpos como dois arbustos

no horizonte

Estephania - Até ao princípio

os corpos nus e plenos de desejo

brilham num acto de posse

como no fim

Brunus - Na desordem deste amor

o vento devora as palavras

os pássaros do meio-dia gritam na nossa carne

profundamente

Thiagus - O teu sangue é um

signo que me devora. O teu chapéu, pelo contrário, é um pedacinho

do paraíso que pode encontrar-se à venda nas melhores casas da especialidade e se não encontrar encomende para...

Estephania - ( distraidamente ) Tás aqui tás a levar com a malinha na tromba...

Brunus - Sinto as mãos

que deslizaram suavemente pelos meus ombros nus e

sinto a voz

trémula pelo desejo

A resposta tarda

o espasmo chega mais cedo

e todo o horizonte se iluminou. Resta saber ( coloquial) se o Criador

fez chegar à criatura o seu intento, porque nestas coisas nunca é demais

exigir a garantia e se possível por cinco anos não vá o azar acabar com

as peças sobressalentes

Estephania - Na vertigem da noite

lacerada de gargalhadas o desejo dança

Brunus - Onde se cultiva o riso, por vezes

as coisas têm pesadas consequências.( pausadamente). Podia contar-vos aqui uma ou duas histórias que...não sei, mas em casas que por vezes nos parecem acima de toda a suspeita...hem, hem! Mas cala-te boca...

Estephania - No horizonte

vêem-se figuras que pouco a pouco se aproximam. Umas vêm modestamente, são pequenas e escuras, vestem mal e têm na cara leves estremecimentos. Outras são mais altas, mais fortes, mais belas, cheiram a estranhas essências, e às vezes

um vento

cheio de objectos em desordem toca-lhes no rosto carinhoso

como muitas palavras de amor.

Thiagus ( deita-se) Enquanto os outros se desenrascam deixa-me cá ir passando p'las brasas.

Estephania - O teu olhar pode trair os teus intentos, mas o teu coração permanece firme e nem a surpresa de veres que o Céu nos rejeitou te faz tremelicar como um velho baboso assistindo a um concerto num salão de nomeada. Apesar de saberes que sou uma puta, nunca te propuseste levar-me ao altar e agradeço-te por isso. Quando abandonei as minhas moradas, senti que jamais regressaria e, portanto, olhei tudo com uma dor renovada e uma atenção definitiva e letal...

Brunus - E as orações chegavam até nós como sopros de um esquisito vento matinal. Íamo-nos afastando de terra com um aperto no coração. Um de nós - creio que fui eu - ajeitou a pistola para a ter mais à mão.

Estephania - Morrer é uma escolha que não se pode impor. Morrer mata-nos e, por vezes, somos mais que anjos, temos no rosto canções mais chatas que as daquele poeta que também é ministro ou coisa assim.

Thiagus ergue-se num salto .

Thiagus - Perdi o rasto do meu futuro

perdi a esperança de morrer em paz com a minha morte

os meus sonhos trocaram-me

por corpos que se desenham nas paredes

no espírito

Estephania - Numa pincelada rápida e pastosa

desenha-se

um rosto

de olhos profundos

Brunus - Ao longe alvejam igrejas abobadadas

tão antigas como a vertigem. Em volta

um silêncio devastador .(Saem os três)

Entram figuras que desenham com os corpos movimentos pouco ortodoxos. Sentam-se depois no chão.

Primeira Figura - Encontrei os olhos

deste olhar que me devora

Tornei-me na máquina infernal em que se acham os medos

E os meus pensamentos morrem aos milhares. Tenho por dentro

muitos países desconhecidos

Segunda Figura - Cabelos de ouro cruzando o ar

bordam as órbitas dos planetas futuros. Outros lugares comuns, pelo contrário,

cheiram a terra molhada, a sopa de feijão, a animais mortos

Primeira Figura - Há manhãs em que a luz se veste de lavado

como um guarda-nocturno aos domingos. Há mãos que percorrem manhãs inteiras

escondidas num bolso

e corpos que se comem como se fossem amendoins

Segunda Figura - Sinto-me hoje mais negro

que uma manhã de Verão.

A minha vida está cheia

de pequenas loucuras variáveis

de cheiros e de olhares suspeitos

Primeira Figura - Olha o outro lado

Sente-o e imagina-te

numa torre de paredes revestidas de retratos

ali onde as pedras têm nomes

inscritos pelos amantes

Tal como entraram, vão saindo agora - muito suavemente. (saem, a cena fica deserta).

Estephania - (entrando cheia de ritmo, vestida de sevilhana e acompanhada pela música de um pasodoble que cessa assim que ela começa a falar com muito siso )

Vão-me desculpar, mas tenho de desfazer um engano: aquele rapaz que anda por aqui juro-vos que não o conheço de parte nenhuma. Um belo dia apareceu-me à porta do emprego e disse-me sem mais nem menos: não fui eu que o matei, nem sequer o conhecia. Fiquei parva! Nem lhe respondi e o gajo, zás: quando te vi pela primeira vez, senti que a minha vida tinha mudado. E desanda-me sem mais nem menos, ora toma, fiquei p'ráli especada, chiça, o tipinho deve ser mono, ou coisa assim. Nessa altura andava eu com um rapaz da polícia, o Tony, aquele vocês sabem, do bigode, um gajo porreiro, ainda lhe disse: ó Tony, e tal e coisa, chapei-lhe tudo. E o Tony: anda, minha parva, não penses mais nisso, com voz de galo assim pró rouco, grrrrr! Já viram a estrila?

Brunus - (entrando, vestido de toureiro) O comportamento das raízes na terra pode ser o diabo! ( dirigindo-se ao público ) Ora vivam lá, seus marotos. ( retomando o fio à meada ) E então fui para casa, acendi a luz da sala e fiquei a olhar para o espelho: abandonaste-me, disse ela censurando-me. Não, respondi eu; tu é que me abandonaste, eu limitei-me a ir-me embora. ( com um gesto cúmplice de mãos ) Tu é que, etc. Tão a ver a coisa, hem?

( mudando de tom e dirigindo-se a Estephania ) A senhora não se importava de me aconselhar aqui numa coisa? Ora bem: tá a ver estes dois dedos? Suponha agora que eu os mergulhava...em sangue e lhe fazia...uma cruz na testa, hem?

Estephania - Tudo é solidão

Apenas espero

a confirmação dum beijo pesado e secreto

Em cada gota de sangue

o sangue de todos

contém sementes do meu corpo

um certo sabor

um certo momento tranquilo em redor

de tudo o que corre, esvoaça ou flutua

O escuro faz-se sentir na terra, chovem papéis brancos

com a intensidade possível. Poderíamos, entrementes, ouvir

um som de jazz. Tudo foi concretizado a partir das origens

há uma utilização de suportes imprevisíveis e

agora

por exemplo

a voz torna-se sumida. Pensei amar-te

e afinal era apenas sono tava cá c'uma soneira qu'até as unhas dos dedos dos pés se m'encarquilhavam, carago Vai-s'a ver e na' se tem nada no bolso nem no d'reito nem no 'squerdo, foda-se! ( chega ao pé de Brunus e acaricia-lhe a face ) E o menino dond'é? Está aqui há muito tempo? (A cena vai escurecendo até mergulhar na escuridão ).

( Fim do Segundo Acto)

 
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