NICOLAU SAIÃO & ALMEIDA E SOUSA O desejo dança na poeira do tempo |
OPERETA |
(Música e concepção cénica de NS) |
«Jehan Rictus disait : rêvons toujours, ça coute rien . |
Primeiro Acto |
Segundo acto |
Terceiro acto |
PRIMEIRO ACTO |
(Música: Solo de flauta) Um espaço degradado. Há lixo com altura suficiente para se esconderem algumas personagens. Numa banheira está um homem, Thiagus. Parece adormecido e a sua mão segura uma garrafa. Haverá ainda alguns sacos espalhados pelo chão. Um som de voz ecoa na sala. Indistinta. Depois perceptível . ( A música cessa ) Voz - Como um coice de luz partem. A terra espera o mar ao longe a noite aproxima-se como um corpo nu contempla a poeira do tempo. Deleita-nos palavra a palavra. O caminho é penoso palavra a palavra palavra a palavra palavra a palavra. Saem, do lixo, três personagens. Movimentam-se pelo espaço. Agarram os sacos e carregam-nos às costas - vão colocá-los noutro ponto para que outra figura os possa agarrar (movimentos repetitivos; depois imobilizam-se). Thiagus leva a garrafa à boca, bebe e espreguiça-se com os ruídos habituais de arfar, roncar, pigarrear... Thiagus - Apenas imagens de portas de chaves que abrem outras imagens com praias e um carnaval distante. Portas abertas a paisagens geladas. O fumo que se ergue do chão anuncia a chegada da bela Estephania - a sacerdotisa empregada de balcão que, num ritual próximo dum bailado tântrico, nos narra com determinação: Estephania - Direi um poema sintonizando ritmos aventuras pouco ortodoxas e talvez tudo seja já a obscuridade. E entredentes devagarinho conto-te histórias de bruxas loiras ruivas morenas que sussurram e inundam de penumbra os sonhos dos poetas, dos bilheteiros das estações de combóio, dos que comem duma lata a sua merenda às quatro da tarde dos que nada têm a perder e nada tiveram a ganhar os que andam os que navegam os que voam os que param e olham em volta. (Solo de violino, a que depois se juntam as flautas) A cidade é invadida por pombas brancas e eu busco o horizonte na fuga sublime, nostálgica de um pesadelo De imagens obscenas sinistras belas com as cores de dentro e de fora com o norte e o ocidente misturados com o sul e o oriente entre os meus olhos para cima para baixo como uma criança brincando numa sala deserta. ( Param as flautas, o violino. Entram os tambores, em piano) Thiagus - (bocejando ruidosamente e espreguiçando-se ) No limiar da construção... Estephania - ( como que absorta ) Um gesto instantâneo provoca a paixão. Vivamos um acto pessoal e único. Um acto... ( Chegam um junto do outro. Abraçam-se. Depois, lentamente, rolam sobre o solo. Thiagus ergue-se de súbito). ( Os tambores cessam ) Thiagus - Que se passa? Perguntavas tu há pouco tempo por entre retratos de santos amestrados e diabos sonolentos. O bulício da cidade onde te passeavas provocante apaixonada com os cabelos esvoaçando na manhã por entre edifícios velhos casas em ruínas ferros torcidos correntes engrenagens rodas dentadas de transmissão do pensamento. Vendo-te assim desatei a rir e apesar das muitas palavras que se soltavam ainda disse A mudez dá prazer O gaguejar alegra a mente e o pensamento só ou acompanhado lhe dará o sentido Estephania - ( explicativa ) E eu desatei a rir e a chorar porque de vez em quando vislumbro deslumbrada o sorriso desse que não está em nenhum lugar O dia a noite simulada um grande espaço em branco onde coloco muitas coisas diferentes. Thiagus - (soltando uma sonora risada) Foi por ali ou talvez também por aqui que a tua figura começou a ver-se melhor. Já reparaste? A madrugada vai chegando até nós com as suas estranhezas e o seu perfume: cães que passam rente às paredes homens de grandes mãos adejando como borboletas mãos que agarram pacotes, mãos que empurram carroças, mãos que limpam o ranho do nariz ou coçam o entrepernas mãos que dão estalinhos com os dedos e levam chávenas de café à boca enfim mãos para todos os usos e costumes mãos que são gordas como cogumelos e são magras como ramos de larício ou de pinheiro mãos mãozinhas mãozecas Ó mãos, como dizia o outro, vós que tudo podeis ser excepto: ser pésser olhos ser orelhas e muitas mais coisas é claro é natural é mesmo muito provável. As três figuras que carregavam os sacos puxam agora cordas num grande esforço. Em resultado deste movimento, entra um pequeno carro (sobrado e quatro rodas) em cima do qual está Brunus. As figuras ficam paradas, pois doravante são o Coro). (Começa a ouvir-se uma trompete. Um espectador sai da assistência, entra nos bastidores e o som da trompete cessa, ouvindo-se durante uns segundos o ruído indistinto duma discussão). Brunus - Fico mudo a masturbação torna as pessoas surdas disse-me um dia o padeiro. O cura olhou-me e suspirou baixinho. Meu filho, repara pensar leva ao inferno a não ser que ponhas esta medalhinha por cima do coração. Leva a duvidar, disse o padeiro de novo enquanto metia no saco de linho meia-dúzia de carcassas. Mas o pior, disse o cura, ao mesmo tempo que tirava dum prato em cima do balcão um bolo de creme é que deixas de conhecer pai e mãe, gato e cão, sardinha e carapau. E desataram os dois a rir, e nessa altura apareceu-me uma navalha na mão e despertei coberto de suor. Estephania - ( indicando coisas imaginárias no chão ) Vês? Este aqui é um cavalinho de brincar. Isto é um apito. E este aqui é o teu tamborzinho azul e amarelo. Lembras-te quando te levavam à Feira todo vestido de novo e penteadinho como um anjo?(ri docemente) No jogo da vida e da morte é bonito usar os acidentes quando a natureza os oferece e disse cá para comigo o meu leito está cheio de gente e quando tudo faz sentido vale muito mais que um chavo. ( torna-se nostálgica ) Ali era a salinha modesta onde as tias costuravam debruçadas sobre tecidos de muitas cores .(baixa a cabeça, como que vencida e destroçada) Coro das 3 figuras - Só muito mais tarde é que iria estar frio apesar do corpo quente dela. Brunus - Não havia aquecimento. Então eu... Coro - ( num tom de cantochão ) Os curas são contagiosos Os padeiros são maviosos Os bolos são deliciosos. O céu cheira a rosas mesmo se nos peidamos. Brunus - (dirigindo-se ao público num tom coloquial )Estava frio compreendem? Eu tinha ido ao cinema nesse dia, um dramalhão de cortar à faca e foi nessa altura que comecei a pensar: se dois e dois são quatro, porquê impedir-me de sonhar com praias repletas de mortos? Estão a ver? ( num tom brejeiro ). Amandei-lhe um olhar de derreter pedras, mas...a menina fazeu-se esquiva, tás a ver? Olha lá ó minha nossa senhora do não-me-toques (era eu a jogar ó duro) afinal vamos ó na vamos, atão mas ist'é como na tropa? ( formal, com uma voz educada e culta ) Lembrei-me dos meus vinte e cinco anos. A baixela com um lindo desenho de barra azul com florzinhas amarelas A toalha a que o primo costumava limpar os dedinhos manchados de chocolate O meu tio suspirando como um fole de ferreiro de carpinteiro de ladrilhador ( com grande intimidade, fazendo um gesto cúmplice ) E foi então que eu e ela resistindo encolhíamos e quando tudo ia fazer sentido veio a guerra e puf nicles batatóides nada de nada niente não há cá rien de rien Então uma grande nuvem escureceu por cima e um anjo com uma espada de fogo apareceu à esquina. Coro -( som de música de missa ) E se for entendível. E se for perceptível. E se for razoáááável. Brunus - É outra coisa diferente Se entendo é outra coisa estou a ficar mudo e ali é o continente misterioso disse cá para comigo com esta fiquei siderado Sim entendo perfeitamente ainda não estava acabado ela deixou-me sobre um muro como um craveiro florido, um bichinho de conta, um guardanapo. Coro - ( como que explicando ) Na cama, com o frio, os pensamentos afluem mais facilmente Brunus - ( com tristeza ) Pensei muitas vezes em viajar. Ir a Londres, Paris, Viena. Mas qual quê... A camioneta parava sempre no mesmo larguinho - estão a ver, aquele com uma porta de taberna com uma placa por cima que dizia que ali se vendiam selos de correio...De modo que pensei cá para comigo: e se eu transformasse isto tudo numa reflexão que nos servisse a todos de emenda? Ou de soneto, porque tudo vai e vem quando menos se espera. E de repente... Estephania - E de repente... Thiagus - Nos hipódromos as coisas começaram a correr mal. Os cavalos paravam de súbito, com os olhos no ar, como se procurassem qualquer coisa. E os jóqueis começavam a chorar, como se por fim tivessem compreendido tudo...Brunus - À entrada de um café, dois indivíduos mutuamente desconhecidos desataram à chapada. Estephania - Mas o mais engraçado de tudo foi que num salão nobre durante uma cerimónia oficial o presidente da Câmara borrou-se nas calças ante o horror e o espanto das entidades oficiais! Coro - Aquilo é que foram uns tempos! Duas freiras, num jardim público, começaram a ler Shakespeare com mútuo proveito. Brunus - E um general comprou um giz branco num estaminé e riscou o uniforme de alto a baixo. Não sei se estão a ver: riscadinho, como um quadro-negro ou a face dum guerreiro apache! Coro - ( cantando com ternura ) ChoveCai a águinha A águinha do céu Do céu dos pardaisE nas ruas dlin dlon As pessoas passam atarefadas nos seus jogos sérios e melancólicos e uma brisa vinda dum poema muito poema muito homenzinho transforma-se num pequeno animalzinho peludo que foge e se esconde sob uma cadeira. Dlon dlon, dlem dlem A mosquinha voa bem Dlem dlem, dlon dlon Esvoaça sobre o som Que faz saber o que é bom A um povo sempre mudo Sem rei nem roque nem dom De saber transformar tudo. No Entrudo! Estephania - Ai sim, ai sopas, quem vier atrás que feche a porta. Lembras-te do primeiro dia de escola? Brunus - Eu disse mais coisas, entre as quais esta: porque é que os políticos, em parte, são ladrões e trapaceiros? E mais: porque é que a natação põe as pessoas mudas e a leitura de jornais provoca doenças de fígado e a ida aos grandes rios que correm pelas florestas sombrias nos deixa na alma uma sensação de desespero? Thiagus - Foda-se! E ela? Brunus - Respondeu-me em espanhol: me cago en tu leche . Sem tirar nem pôr...E quando lhe peguei na mão olhou-me com infinita tristeza, como se eu lhe tivesse tirado qualquer coisa muito preciosa. Tinha as faces excessivamente rosadas, tal qual como se tivesse tido... Thiagus - Um pensamento estranho ou um...Brunus - Sim. E note que trabalhava num laboratório, acho que era qualquer coisa assim como ver se as comidas estavam passáveis... (Música de flauta em surdina ) Thiagus - ( com um ar preocupado, mudando o tom de voz) Assim não pode ser, senhor Saraiva. Você tem a certeza de que ele destruiu os papéis?Brunus - Tenho, senhor director. Infelizmente tenho...E dei com os dois, ele e o juiz, numa conversa muito íntima. Quando viram que eu me aproximava, calaram-se. Acha que é caso para comunicarmos superiormente? Thiagus - Acho que sim... Diria que é mesmo imprescindível! Mas... se a coisa vai aos ouvidos de... Brunus - É o diabo, senhor director! E não há possibilidade de ser nomeado outro juiz, um que não seja corrupto? Thiagus - Cale-se, Saraiva, por amor de Deus! Não fale em corrupção, que as paredes têm ouvidos. A possibilidade é apenas conseguirmos chegar ao primeiro-minis... Brunus - (interrompendo-o firmemente ) Shiiiiiu lhe digo eu agora, senhor director! Não fale com ninguém... ou estamos fritos! Eles têm assassinos a soldo, homem! Pela saúde dos meus filhos, temos de nos calar bem caladinhos... Thiagus - Mas não seria má idéia fazermos chegar os papéis que não conseguiram destruir a alguém da Oposição... Brunus - Não seja ingénuo, por amor de quem lá tem! Vamos mas é calar-nos que nem ratos. Aparentar descontracção. E, se possível, metermos a reforma mais cedo...e irmos para o estrangeiro... Thiagus - A vida é uma porra, Saraiva.. Brunus - A quem o diz, senhor director! A quem o diz! ( Entram violinos, por uns segundos) Estephania - (muito terna, para o público) Foi então que eu percebi que por ali não ia a lado nenhum. A questão do cura, a questão do padeiro panasca que um dia lhe quisera abafar o pirilau...creio que me faço entender. No dia seguinte, quando descia a escada, ouvi um grande barulho e dois tipos aos tiros abateram uma vizinha que por azar se metera no meio. Negócios de vigaristas que se tinham desentendido e tudo acabou em mal. Coro - ( cantando em estilo de zarzuela, a que a música, mudando, dá o arrimo ) Os curas e os padeiros são como vírus Contagiosos e muito puros simpáticos uns companheirões sempre prontos prá folia ervas crescem-lhes no lado norte têm um miradouro no centro uma fonte perto das escadas Os curas são pau p'ra toda a obra São amigos do seu amigo trazem blusas de linho cobrindo-lhes os seios Os padeiros são fenomenais são bons remadores rosas os coroam pela tardinha e dão um porco a quem lhes dá uma sardinha. Brunus - Bom, bom, deixe lá os detalhes. O que eu queria saber é porque é que o meu amigo não arranjou emprego por exemplo numa empresa de arquitectura, ou meteu os papéis para o funcionalismo público. ( A música cessa ) Coro - ( em voz normal ) Isto é o êxtasetodos procuramos o êxtase e quando se experimenta uma vez sempre se procura a exaltação essa que te faz levantar correr sem destino ser um gato pequenino e ter o mar na mão Brunus - Eu disse o meu leito está cheio de gente não havia aquecimento ela perguntou que te parece eu ri porque estava mudo ela fugiu com o padeiro o cura e dois oficiais de finanças e eu chorei. Valeu bem a pena tinha cá um parzinho de pernas queria passar à eliminatória seguinte ainda podia ser campeã de voleibol basquetebol mas o destino não quis e ficou sempre a ver navios duma pérgola junto à praia enquanto os aviões sulcavam mansamente o firmamento sobre a serra lá onde os fantasmas se acocoram para melhor verem o paraíso. Apraz-me pensar que ela fugiu quando o céu lá fora caía apodrecido e eu gritava gosto do cheiro dos castanheiros disse-lhe eu e quando o assassino arremeteu contra mim com o facalhão em riste perguntei a mim próprio enquanto lhe metia um balázio na pinha porque teremos nós de guardar as recordações fechadas a sete chaves num pequeno baú escondido debaixo da cama. Coro - Para os curas isso é muito agradááááável! Brunus - Chiça! Lá vem ele outra vez com a merda dos curas. Será um anticlericalismo primário? Duma vez por todas: eles são animistas, têm uma relação muito forte com a terra e o brilho da Lua. Eles são amáveis e puros como os lobinhos aos dois meses. Eles têm em volta do corpo grandes extensões de pomar com laranjas e maçãs reinetas. Coro - Eles fazem sexo virtual com as auroras e os dias bissextos. E não me venha com mais histórias desse jaez. Entendeu? Thiagus - Mas poderia ter dito gosto muito mais de ti que de castanhas. O amor não deve dispensar a fantasia. Quando tudo nos foge sigamos em frente ou na retaguarda como os animais e os condenados pois é essa a nossa força para a imortalidade. O amor o escrever é como um tacho de sopa nem mais um tacho de sopa de grão com os paladares todos no sítio ou então um pulo na direcção da sombra numa tarde de Sábado quando o vento sopra mansamente na Gardunha. Estephania - (irónica) O discurso que improvisei era uma relação com a vida mas podia ser qualquer outra coisa seduz-me pensar com a pele a febre o cheiro o sabor isso tudo e quando o meu leito está cheio de gente é que eu vejo como os minutos são como aparas de madeira pedaços de papel pintado velhos tecidos amarfanhados. (para um dos do coro) Já agora, pá dás-me aí um cigarrinho? Thiagus - É uma contadora de histórias efémeras e todavia actuais! Brunus - Ora vai cagar. A honradez não te diz nada e então ultrapassas a questão com um abismo de incertezas. Em volta, gente passava, infeliz como sempre, com um sorriso ameno que cada vez é mais breve. Estephania - Acontece antes de dormir quando faz frio lá fora quando chove ou faz um calor infernal e então apraz-me pensar que afinal, quando passeávamos pela rua era tudo verdade. (Música: o solo de flauta. Lírica, a seguir agitada. Vai escurecendo) |