NICOLAU SAIÃO...

EVOCAÇÕES ESPANHOLAS

2. Em louvor dos palhaços

 Não por simbolismo mais ou menos evidente, não por se estar em tempo de clowns, de malabaristas, de hipnotizadores e de ilusionistas – mas sim por no fim do inverno a memória parecer mais nostálgica, intercedendo pelos tempos de grandes alegrias, de viagens interiores, de meandros que se acariciam com a palavra, com a recordação. Um mundo juvenil de circo, fremente e encantado.

Charlie Rivel, que vi ao vivo em Madrid numa tarde de surpresas, no decorrer duma matinée inesquecível, com o seu lentíssimo andar, com as suas pequenas frases entrecortadas, com o seu huuuuuu! de rosto rodando para o céu, esse som surpreendente pontuando as estórinhas comoventes, terríveis e poéticas daquele que foi considerado o melhor palhaço do mundo.

E os Irmãos Campos, portugueses retintos num elenco circense todo composto por húngaros de Linda-a-Pastora, por franceses do Cadaval, por italianos da Madragoa? E Oscarito, o palhaço bailarino com as pernas de arame que todo se desconjuntava quando Simeão, o palhaço-rico, o submetia a rudes diálogos de que aliás saía mal-ferido? E que com o seu serrote-violino, com a sua trompete destravada, com o seu saxofone bicéfalo nos levava por todos os lugares onde o sonho podia acontecer?

E – posto que agora por fora – as distintas partenaires que eram jovens em início de carreira ou madames a finalizá-la, mas inteiramente frequentáveis para olhos adolescentes (um toquezinho de inusitado que ainda lhes conferia mais sedução…)?

Deixem que me lembre desses anos de vinho e rosas… Em Portalegre por todo o Rossio, em frente do antigo campo da bola, por detrás da belíssima cascata do jardim barroco infelizmente passado à estória da História, quando ainda lá havia uma esplanada de Café sob um cedro do Líbano, onde pelas tardes a rapaziada hoje madura ia deslumbrar-se nos serões de província…

Deixem que me recorde - como se, com vossa licença, tasquinhasse expeditamente um pacote de amendoins, antes de entrarem os trapezistas, os domadores, os hipnotizadores e outros acrobatas.

in “As Vozes ausentes - crónicas e apontamentos”

Nota: Aos interessados, sugerimos as biografias:

- António Burgos,“Mi España querida”, introdução de Juan Manuel Serrat, (“La esfera de los libros”)

- Sebastià Gasch, “Charlie Rivel, pallasso català “ , (Ed.Alcides, Barcelona)

Nicolau Saião – Monforte do Alentejo (Portalegre) 1946. É poeta, publicista, actor-declamador e artista plástico.

Participou em mostras de Arte Postal em países como Espanha, França, Itália, Polónia, Brasil, Canadá, Estados Unidos e Austrália, além de ter exposto individual e colectivamente em lugares como Lisboa, Paris, Porto, Badajoz, Cáceres, Estremoz, Figueira da Foz, Almada, Tiblissi, Sevilha, etc. 

Em 1992 a Associação Portuguesa de Escritores atribuiu o prémio Revelação/Poesia ao seu livro “Os objectos inquietantes”. Autor ainda de “Assembleia geral” (1990), “Passagem de nível”, teatro (1992), “Flauta de Pan” (1998), “Os olhares perdidos” (2001), “O desejo dança na poeira do tempo”, “Escrita e o seu contrário” (a sair).  

No Brasil foi editada em finais de 2006 uma antologia da sua obra poética e plástica (“Olhares perdidos”) organizada por Floriano Martins para a Ed. Escrituras. Pela mão de António Cabrita saiu em Moçambique (2008), “O armário de Midas”, estando para sair “Poemas dos quatro cantos”(antologia).     

Fez para a “Black Sun Editores” a primeira tradução mundial integral de “Os fungos de Yuggoth” de H.P.Lovecraft (2002), que anotou, prefaciou e ilustrou, o mesmo se dando com o livro do poeta brasileiro Renato Suttana “Bichos” (2005).

Organizou, coordenou e prefaciou a antologia internacional “Poetas na surrealidade em Estremoz” (2007) e co-organizou/prefaciou ”Na Liberdade – poemas sobre o 25 de Abril”.

Tem colaborado em  espaços culturais de vários países: “DiVersos” (Bruxelas/Porto), “Albatroz” (Paris), “Os arquivos de Renato Suttana”, “Agulha”, Cronópios, “Jornal de Poesia”, “António Miranda” (Brasil), Mele (Honolulu), “Bicicleta”, “Espacio/Espaço Escrito (Badajoz),  “Bíblia”, “Saudade”, “Callipolle”, “La Lupe”(Argentina) “A cidade”, “Petrínea”, “Sílex”, “Colóquio Letras”, “Velocipédica Fundação”, “Jornal de Poetas e Trovadores”, “A Xanela” (Betanzos), “Revista 365”, “Laboratório de poéticas”(Brasil)...

Prefaciou os livros “Fora de portas” de Carlos Garcia de Castro, “Mansões abandonadas” de José do Carmo Francisco (Editorial Escrituras) e “Estravagários” de Nuno Rebocho (Apenas Livros Editora).

Nos anos 90 orientou e dirigiu o suplemento literário “Miradouro”, saído no “Notícias de Elvas”. Com João Garção e Ruy Ventura coordenou “Fanal”, suplemento cultural publicado mensalmente no semanário alentejano ”O Distrito de Portalegre”, de Março de 2000 a Julho de 2003.

Organizou, com Mário Cesariny e C. Martins, a exposição “O Fantástico e o Maravilhoso” (1984) e, com João Garção, a mostra de mail art “O futebol” (1995).

Concebeu, realizou e apresentou o programa radiofónico “Mapa de Viagens”, na Rádio Portalegre (36 emissões) e está representado em antologias de poesia e pintura. O cantor espanhol Miguel Naharro incluiu-o no álbum “Canciones lusitanas”.

Até se aposentar em 2005, foi durante 14 anos o responsável pelo Centro de Estudos José Régio, na dependência do município de Portalegre.

É membro honorário da Confraria dos Vinhos de Felgueiras. Em 1992 o município da sua terra natal atribuiu-lhe o galardão de Cidadão Honorário e, em 2001, a cidade de Portalegre comemorou os seus 30 anos de actividade cívica e cultural outorgando-lhe a medalha de prata de Mérito Municipal.