NICOLAU SAIÃO
Eu era só p'ra dizer
Tempos atrás, João Garção enviou-me um texto (1) - depois dado a lume em diversos lugares - que suscitou em mim diversas congeminações. Boas, mázinhas? Positivas, erguendo-se nas pontas das unhas numa negação intempestiva?

Nem isso. Como vivo em geral afastado dos grandes meios de comunicação e todo enfronhado em coisas dispensáveis e sinistras que vão desde a feitura de quadros (de fabricação própria) à leitura de policiais nos intervalos de leituras menos sérias (literatura geral, digo eu com maldade…), senti apenas admiração: uma entidade bancária dera-se à propensão de criar um gabinete, secretaria, departamento ou chame-se o que mais quadrar, para tornar o surrealismo uma coisa entendível!

Senti um frémito, a que não pus nome especial.

Depois o tempo foi passando.

As águas, como na estória clássica, iam passando sob as pontes.

Pensei muitas coisas, escrevi outras, tratei de meus importantes assuntos, ri-me um bocado por coisas engraçadas e entristeci-me a valer por causa de coisas sórdidas. Em suma, fui evoluindo como um europeu de segunda ou, se não quisermos ser cruéis, como um alentejano típico.

Até que hoje pela manhã fui sacudido do meu torpor filosófico por um texto, enviado através de esse aparelhómetro mágico chamado Internet, em que Floriano Martins, acreditando na minha curiosidade intelectual e na minha disponibilidade portalegrense, me mostrava que as coisas, parecendo ser o que são, nem sempre são o que parecem (2).

Ou seja, mandou-me cópia do textinho que ali ficou em cima, inteiramente da pena do meu mais preferido cidadão de Fortaleza.

E, lendo com aprumo e desvelo o que nele se espraia, eu fiquei como que a sonhar…

Sem ter acho eu nenhuma ligação com o facto, ideias esfuziantes, ternas por um lado, algo desapiedadas por outro, passaram-me em revoada p’lo bestunto.

Generosamente, vou partilhá-las convosco, para me libertar também das comichões que me deixaram na alma. E vêm a ser:

1. Que o surrealismo, por vezes, pode ou deve ser uma coutada particular.

2. Que parece haver surrealistas aristocratas (que vão sempre para as frisas enquanto outros vão para a geral) e surrealistas empregados de mesa (servem para levar as travessas dos outros, os que jantam com o príncipe).

3. Que há gente nos periódicos que gosta disso, que epigrafa isso, que festeja isso e nem por isso leva nas narinas com um chouriço (de sangue).

4. Que há surrealistas que não existem a não ser em silhueta porque a miopia é um posto na tropa.

5. Que isso acontece para dar descanso aos apanhadores de papéis.

6. Que António Maria Lisboa tinha muitíssima razão quando dizia que o bom mesmo é não se querer séquito mas sim companhia (de preferência escorreita).

7. Que certos assuntos é bom que se encarem com um sorriso, para não se encararem com um choro desgarrador. Ou, ainda e talvez mais ajustado, com um franzir de nariz onde se nota, pesado como trinta diabos, um certo ricto, um certo repúdio, um certo ar de fábula com que se relanceiam determinados bueiros conceptuais.

Que decerto só pertencem ao mundo dos sonhos, oniricamente falando.

 

(1) João Garção, "Surrealismo e liberdade"

(2) Carta de Floriano Martins a Perfecto Cuadrado