JOÃO GARÇÃO..

SURREALISMO E LIBERDADE

“A palavra Liberdade é tudo o que ainda me entusiasma”
André Breton

A Fundação Cupertino de Miranda e a Câmara Municipal de Famalicão organizaram um "Museu do Surrealismo" - ou, como prefere Bernardo Pinto de Almeida, o assessor artístico daquela Fundação, um "Centro de Documentação" sobre o Surrealismo.

Tal facto não deixa de ser curioso, visto que a presença surrealista tem sido, no nosso país, constantemente abafada e/ou deturpada. Na verdade, sempre que determinados acontecimentos da vida quotidiana são considerados anómalos, logo aparecem adjectivados de "surrealistas", com um intuito que se pretende depreciativo.

Quem assim o faz, fá-lo por profunda ignorância (na melhor das hipóteses…), pois o Surrealismo, ao contrário daquilo que por vezes se transmite, não é uma escola artística e literária que se expressa através de pinturas ou poesias onde predomina o absurdo. Pelo contrário, é uma posição existencial, uma forma de estar na vida que contesta tanto o racionalismo pedante quanto o espiritualismo dogmático, contrapondo-lhes a liberdade criadora do ser humano. Neste sentido, combate todos os constrangimentos que reprimam o espírito livre do Homem, sendo, assim, tanto uma aventura ética quanto artística e intelectual.

Ora, por contraporem a Imaginação, a Sensibilidade e a Liberdade ao acinzentado quotidiano que é imposto aos indivíduos, os surrealistas têm sido, desde sempre, alvo de perseguições por parte dos diversos poderes instituídos, pouco interessados na divulgação destas propostas de Liberdade que pretendem reconciliar o Homem com a Vida - "os regimes fascistas e sociais-fascistas prendem as ideias e as pessoas, não porque acreditem que elas na cadeia sejam menos ideias e pessoas mas por terem medo pânico delas", escreveu justamente Mário Cesariny.

Daqui, a estranheza que exprimi no início deste artigo ao verificar que uma Fundação e uma Câmara Municipal minhotas se irmanam para abrirem um "Museu do Surrealismo". Permitam-me, por conseguinte, se não alguma desconfiança, pelo menos uma certa reserva em relação a tal iniciativa. É que reunir documentos e obras de alguns surrealistas já falecidos, sem simultaneamente acompanhar e divulgar aquilo que ainda hoje os surrealistas fazem (casos de Nicolau Saião ou Carlos Martins, por exemplo; ou de companheiros de estrada, como Ruy Ventura), é acabar por "mumificar" a actividade surrealista em Portugal. Na realidade, acabam por eleger uns quantos elementos mais publicitados, que são desta forma dotados de "respeitabilidade artística" mas transformados em mero "testemunho histórico", já que a actividade surrealista portuguesa aparece amputada na medida em que apenas é apresentado um segmento temporal da mesma. Esses autores, assim "depositados" em Museu, acabam por ser vistos como uma "curiosidade histórica", ao jeito dos fenómenos de feira. Querendo (se é isso que querem) divulgar o Surrealismo e os seus intervenientes, acabam por os deturpar, já que o Surrealismo não pode ser limitado a um mero momento histórico (não esqueçamos, a propósito, as palavras de André Breton: "A ideia de surrealismo (…) não corre nenhum risco de acabar enquanto o homem conseguir distinguir um animal de uma chama ou de uma pedra."). E, na verdade, não acabou…

Que fazer então?

Parece-me mais avisada a proposta do assessor artístico da Fundação, rejeitando a designação de "Museu” (tem outra projecção…). Contudo, julgo que se deveria ir mais longe, não fazendo desse sítio somente um receptáculo passivo de obras e de documentos, mas sim um espaço dinâmico e interventivo, um pólo de Imaginação, de Poesia e de Maravilhoso, permanentemente actualizado e com a constante presença de autores que, combatendo os dogmatismos e a intolerância, nos forneçam enriquecedoras visões do Mundo e da Existência Humana. Dessa forma, a Fundação Cupertino de Miranda, Famalicão, a região e o país sairiam dignificados.

Nesse caso, serei o primeiro a abandonar a reserva que aqui expressei. Em minha opinião, no entanto tudo o que fique aquém desse desiderato, em função das características da temática onde querem intervir, será fragmentário e redutor.

Logo, inapropriado.