S. FREI GIL.....................LITERATURA EGIDIANA

A construção da imagem do Fausto,
de Cipriano de Antioquia a Fernando Pessoa
ARLINDO JOSÉ NICAU CASTANHO

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O Fausto de Pessoa, por seu lado, não demanda nem saber nem poder: é um intelecto sensível quase no estado puro, capaz de intuir o profundo Horror que está no âmago do mundo (e, sob este aspecto, pode o nosso autor ser tido como um "parente refinado" de certos escritores fantásticos como H. P. Lovecraft ou Arthur Machen). Para fugir a esse Horror essencial e indescritível, almeja alcançar - sem sucesso, por causa da sua incapacidade de deixar de pensar - uma espécie de anestesia, de álgido nirvana, de estase ataráxica. Ao contrário do Fausto solar de Goethe, que ousa manipular o joanino «No princípio era o logos» até o transformar, bastante arbitrariamente, em «Im Anfang war die Tat!» (Faust, v. 1237), o Fausto lunar de Pessoa, a anos-luz do primeiro, exclama: «Ah, o horror metafísico da Acção!»[30].

Muitos outros aspectos correlatos mereceriam a nossa atenção, todos eles decorrentes deste processo pessoano de sistemática subversão do Faust de Goethe; mas aquele que certamente não posso deixar passar em claro, mesmo num trabalho de tão modestas proporções quanto este, é o que tem que ver com o tratamento reservado pelo poeta de «Orpheu» à fatídica frase «Zum Augenblicke dürft' ich sagen:/Verweile doch, du bist so schön!» (Goethe, Faust, vv. 11581-2). É por demais sabido que o Fausto de Goethe pronuncia tais palavras no âmbito de uma sua visão prospectiva, em que antegoza o sucesso dos seus planos reformísticos de ordem económica e social. É também pouco mais do que um lugar-comum o considerar que ele pronuncia essas palavras, que se comprometera a nunca proferir aquando do seu pacto-aposta com Mefistófeles, porque quer morrer e jogar a sua última, desesperada possibilidade de subtrair-se à eterna companhia do demónio (e não entro no mérito, porque são contos largos, das intenções subjacentes à sua estratégia de construir a frase no condicional). O Fausto de Pessoa, pelo contrário, pronuncia algo de muito semelhante, «Que o tempo cesse!/Que pare e fique sempre este momento![31]», mas dentro de um contexto situacional e intencional completamente diverso: o que ele não quer é morrer - pelo menos, nessa "fase intermédia" (segundo a reconstrução de Teresa Sobral Cunha) do drama[32] -, preferindo a esse comum destino uma espécie, não menos inquietante, de criogenização ou cristalização do eu.

Pessoa está bem longe, ainda, de compartilhar a imagem que Goethe dá do diabo no seu Fausto, como parece confirmar este passo do conto A Hora do Diabo: «[fala o diabo:] Não sou, como disse Goethe, o espírito que nega[33] mas o espírito que contraria»[34]. E contraria - não nega - porque contrapõe sempre a um dado modo de ver um segundo, inteiramente diverso mas tão pertinente quanto o primeiro. É a mesma atitude que se evidencia, aliás, nas manifestações de experimentalismo sensacionista do próprio Pessoa: experimentalismo sensacionista claramente cultivado em textos ortónimos e heteronímicos e de que cito, como exemplo, as famosas aspirações (absolutamente programáticas) «Sentir tudo de todas as maneiras,/Ter todas as opiniões,/Ser sincero contradizendo-me a cada minuto (...)»[35]. E esse modo de contradizer, experimentando tudo de todas as maneiras, ainda mais evidente se torna quando se contrapõe o que diz o seu Fausto ao que diz o heterónimo Alberto Caeiro:

O único mistério no universo

É haver um mistério do universo.

Sim, este sol que sem querer ilumina

A terra e as árvores, e as estações todas;

As pedras em que eu piso, as casas brancas,

Os homens, o convívio humano, a história,

O que se passa - tradição ou fala -

Entre alma e alma - as vozes, as cidades -

Tudo nem traz consigo a explicação

De existir, nem tem boca com que fale.

Por que razão não raia o sol dizendo

O que é? Por que motivo sossegado

Existem pedras sob os meus passos, e ar

Que eu respiro, e eu preciso respirar?

Tudo é uma máquina monstruosa e absurda.

Com todo o corpo e o ver [?], terra da alma,

Ignoramos.[36]

 

O único mistério das cousas? Sei lá o que é mistério!

O único mistério é haver quem pense no mistério.

Quem está ao sol e fecha os olhos,

Começa a não saber o que é o sol

E a pensar muitas cousas cheias de calor.

Mas abre os olhos e vê o sol,

E já não pode pensar em nada,

Porque a luz do sol vale mais que os pensamentos

De todos os filósofos e todos os poetas.

A luz do sol não sabe o que faz

E por isso não erra e é comum e é boa.

Metafísica? Que metafísica têm aquelas árvores?

A de serem verdes e copadas e de terem ramos

E a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz pensar,

A nós, que não sabemos dar por elas.

Mas que melhor metafísica que a delas,

Que é a de não saber para que vivem

Nem saber que o não sabem?

"Constituição íntima das cousas"...

"Sentido íntimo do universo"...

Tudo isto é falso, tudo isto não quer dizer nada.

É incrível que se possa pensar em cousas dessas.

É como pensar em razões e fins

Quando o começo da manhã está raiando, e pelos lados das árvores

Um vago ouro lustroso vai perdendo a escuridão.

Pensar no sentido íntimo das cousas

É acrescentado, como pensar na saúde

Ou levar um copo à água das fontes.

O único sentido íntimo das cousas

É elas não terem sentido íntimo nenhum.[37]

E ainda:

Por mim, escrevo a prosa dos meus versos

E fico contente,

Porque sei que compreendo a Natureza por fora;

E não a compreendo por dentro

Porque a Natureza não tem dentro;

Senão não era Natureza.[38]

A maneira de encarar o mundo própria do heterónimo Caeiro, a que não será descabido atribuir uma certa parentela com a mentalidade característica do Budismo Zen, está manifestamente nos antípodas daquela que informa a citação precedente do Fausto do ortónimo Pessoa; mas ambas se integram complementarmente num plano mais vasto, o do experimentalismo sensacionista, programa genuinamente proteico já atrás ilustrado com um significativo passo de Álvaro de Campos (sendo este heterónimo - pelo menos deste ponto de vista - muito mais "mestre dos restantes" do que o próprio Caeiro, a quem Pessoa atribuía explicitamente, pelo contrário, tal primazia).

O anjo danado da pessoana Hora do Diabo não está pelos ajustes, como já vimos, com a definição que dele dá Goethe. E ainda menos lhe agrada o papel que o mesmo lhe atribuiu no Faust: «um alemão chamado Goethe (...) deu-me um papel de alcoviteiro numa tragédia de aldeia»[39]. E que papel lhe atribui Pessoa, por sua vez, no seu Fausto? Aparentemente, nenhum - uma vez que aí não comparece como personagem e nem sequer é nomeado, com a excepção de uma fala que Pessoa hesitava quanto a atribuí-la a Fausto ou a Lúcifer[40]. Mas, na verdade, Lúcifer encontra-se sempre lá, em cada fragmento, em cada momento, praticamente monopolizando a cena: e isto porque o Fausto de Pessoa com ele se identifica, pelo menos parcialmente («Eu sou o inferno. Sou o Cristo negro/Pregado na cruz ígnea de mim mesmo»[41]). É um seu emissário, uma sua hipóstase, e não destoa reconhecer neste Fausto o filho esperado por uma certa Maria (Maria como a Mãe de Cristo, Maria como a personagem feminina do Fausto pessoano), quando esta manteve com o anjo rebelde o interessantíssimo diálogo transcrito na Hora do Diabo. Parece-me lícito encarar o Fausto de Pessoa como a chegada ao estado adulto do ser em gestação a quem o diabo inoculou algo de si próprio, antes de se despedir de Maria, a futura mãe sua interlocutora na Hora do Diabo - deixando-nos, aliás, a dúvida de que ele próprio pudesse ter sido o responsável (indirecto, pelo menos) pela geração do nascituro. Eis porque o diabo só de esguelha se entrevê entre as personagens do drama pessoano (e mesmo assim, como acabámos de ver, numa fala cuja atribuição ao "príncipe das trevas" se revela sumamente problemática), eis porque todo e qualquer aceno a um eventual pacto diabólico lhe é completamente alheio.

O tema promete, creio, e é muito o que fica por dizer. Este artigo não pretende ser senão um modesto primeiro passo numa rota que, ainda que já bem delineada e sobremodo estimulante, permanece quase toda por desbravar.

 
In: Artifara, n. 1, (luglio - dicembre 2002), sezione Monographica, http://www.artifara.com/rivista1/testi/Fausto.asp