A partir de Quinhentos, se não antes[13], começa a circular em Portugal um autêntico grimoire, O Livro de S. Cipriano, que ainda hoje é um best seller[14]; será até, muito provavelmente, o livro mais difuso no âmbito da cultura popular, em renhida concorrência com o que podemos considerar como o seu exacto contrário - isto é, com a Bíblia. A popularidade de S. Cipriano é já atestada, por exemplo, na Tragicomédia da Exortação da Guerra de Gil Vicente (1514?) - onde, aliás, o seu nome é invocado por um clérigo nigromante, parente próximo de outros que mais adiante se hão-de referir[15]. Além das mais variadas receitas de bruxaria - algumas delas viciosas, ou repugnantes, ou até francamente sádicas -, cada uma das versões do Livro de S. Cipriano que tive ocasião de consultar, velhas de alguns séculos ou recentíssimas que fossem, contém, sem qualquer excepção, o resumo da história do controverso santo que do livro é o autor putativo. Se não antes, pelo menos as versões setecentistas do livro, e todas as que se lhes seguem, incorporam outra história que ilustra igualmente a possibilidade de instrumentalizar o diabo, aceitando o pacto com ele e retractando-o logo após se ter obtido quanto se pretendia: é a história do agricultor francês Victor Siderol, que aqui não exponho por obedecer ao modelo que neste momento já nos é por demais conhecido[16].
Não parece que Fernando Pessoa tivesse algo que ver com este particular tipo de faustismo, desde sempre presente na cultura popular portuguesa. Mesmo as mágicas manigâncias do Mefistófeles de Goethe o deveriam deixar de todo indiferente ou fazer sorrir, se tanto: «Não poder oração de arte negra/(Puerilidades não! para quê citá-las?)/Provocar a verdade a que se mostre...»[17]. É, pois, natural que pouco lhe interessassem as diversas tradições em torno a Cipriano, a Teófilo ou a S. Frei Gil de Santarém, de que a literatura nacional de outras eras nos não deixou de legar conspícuos exemplos. Aliás, só em relação a S. Frei Gil - a quem se atribuía uma velha profecia, particularmente sugestiva para quem, como Pessoa, tanto se interessava pelas elucubrações sebastianistas em torno à utopia do Quinto Império[18] - o poeta de Mensagem viria a manifestar algum interesse, se bem que de modo inconcludente[19]. As preferências de Pessoa iam, no âmbito esotérico, sobretudo para os domínios - ainda mais inquietantes, para as diversas doxai de cariz cristão - da Gnose, os quais se distinguem pelo seu carácter eminentemente intelectualista. A magia era por ele encarada, em geral, com uma ponta de suspeição - se não mesmo de desprezo -, na medida em que lhe parecia um modelo de experiência esotérica particularmente perigoso, funcionando frequentemente como uma lâmina de dois gumes. Por outro lado, Fernando Pessoa detectava, no que ele definia como a via mágica para a iniciação, uma perigosa propensão para a queda nos mais pesados erros de percurso, por parte do iniciado: é fácil enganar-se, é fácil deixar-se desviar do bom caminho e acabar subjugado por potentes miragens, num lugar bem diverso e muito menos desejável do que aquele a que se julga ter finalmente arribado.
Partindo do pressuposto de que existem três vias iniciáticas fundamentais - a gnóstica, a mística e a mágica -, Pessoa avisa-nos de que cada uma delas é atreita a diversos erros e perigos:
«There are Errors of the Path, Errors of the Inn and Errors of the Cave. Those are errors of the path where the path itself is taken for its purpose. Those are errors of the Inn where half-way is taken for all the way. Those are errors of the Cave where the cave, which is at the base of the Castle, is taken for the Castle itself (is taken for the Hall of the Castle).»
«These errors are common to all paths, and that of Gnosis is no more free from them than the mystical and the magical paths.»[20]
Mas, ainda que estes erros sejam «common to all paths», duas dessas três vias parecem a Pessoa mais propensas ao erro: a mística e, sobretudo, a mágica:
«The paths of Mysticism and of Magic are often paths of delusion and of error. Mysticism means essentially trust in intuition; Magic means essentially trust in power. Intuition is an operation of the mind by which the results of intelligence are obtained without the use of intelligence. Power, in the sense of magical power, is an operation of the mind by which the results of continuous effort are obtained without the use of continuous effort. Both, however long they may take to operate, are short cuts to knowledge.
In a certain sense both Mysticism and Magic are confessions of impotence. The Mystic is a man who feels he has not the strenght of thinking in him to get the truth by thinking. The Magician is a man who feels he has not the strength of will in him to get to truth (or to power) by strength of will. The idle girl who guesses things, or guesses at things, is a mystic within her shallow province; she is too lazy to try to know. The peasant woman who tries to keep her husband's love by charms and potions is a magician within her garret-frontiers; she is too ignorant and too weak to strive to do so by direct charm, by persistent seduction. In both cases there is an evasion.
This does not mean - or, at least, it needs not mean - that the results of Mysticism or of Magic are necessarily wrong. It does mean, however, that there is no criterion by which we can distinguish a wrong from a right result in one path or the other. In the Gnosis, where we employ intellect, we have at least the ballast of reasoning; we can at least compare one <result> with another, examine whether they be contradictory either each within itself, or one in respect of the other. We may not reason well, but we do reason. If we go wrong it is because we go wrong and not because we are wrong, as in the other two paths.»[21]
Ainda que a falta de interesse de Pessoa pelas crenças populares resulte bastante evidente das citações que acabo de reproduzir, o poeta sempre acabou por absorver alguns elementos da cultura mágico-religiosa do povo português; por exemplo, no que diz respeito à preconização de uma espécie de compromisso simultâneo do indivíduo com Deus e com o diabo. Esta relação ambígua é emblematicamente sintetizada pelo ditado de ampla circulação europeia «O diabo não é tão feio como o pintam»[22], e ainda mais pelo ditado - este, ao que parece, mais especificamente nacional - «Deus é bom, mas o diabo também não é mau»[23].
As preferências de Pessoa vão, porém, para o diabo, e não para o Deus judaico-cristão: o diabo de Pessoa assume aspectos positivos, na qualidade de "amigo dos homens" que os procura imunizar contra as leis comportamentais de fundo religioso - não porque escarneça os postulados da lei moral, mas por não aceitar que estes se baseiem nalguma forma de terror. Este diabo pessoano parece parente próximo quer do daimon de Sócrates, quer daquele "bom diabo" do anónimo tardo-seiscentista ou setecentista O Fradinho (ou Diabinho) da Mão Furada[24], na medida em que também ele se revela um estrénuo defensor das mais nobres virtudes: amor pela verdade, elogio da razão, paixão pela vida e - last but not least - absoluto respeito pelos mais íntimos sonhos e pela autonomia moral do indivíduo.
Este último e fundamental aspecto encontra a sua mais expressiva ilustração no enigmático pacto que o próprio Pessoa assinou, ainda que sob o disfarce heteronímico de Alexander Search, com o próprio diabo, aí identificado como Jacob Satan, em Outubro de 1907; quando ao poeta pouco faltava para a comemoração do seu décimo-nono aniversário, portanto, e provavelmente cerca de um ano antes que começasse a escrever os primeiros fragmentos do Fausto:
«Bond entered into by Alexander Search, of Hell, Nowhere, with Jacob Satan, master, though, non king, of the same place:
1. Never to fall off or shrink from the purpose of doing good to mankind.
2. Never to write things, sensual or otherwise evil, which may be to the detriment and harm of those that read.
3. Never to forget, when attacking religion in the name of truth, that religion can ill be substituted and that poor man is weeping in the dark.
Never to forget men's suffering and men's ill.
+ Satan.
his mark.»[25]
O segundo ponto deste peculiaríssimo pacto confirma o particular respeito do poeta pelas mais íntimas aspirações e pela autonomia moral do indivíduo; princípio que se reflecte e amplifica, nos projectos literários de Pessoa, na sua categórica recusa de um certo tipo bastante corrente de uso mágico da literatura. Pode-se falar, com efeito, de poderes mágicos da literatura, uma vez que esta é capaz de alterar estados de consciência, de excitar os sentidos e acicatar paixões (pense-se, por exemplo, no livro que estimulou a queda no adultério de Paolo e Francesca[26] - a insinuante Storia di Lancillotto del Lago, em tudo equivalente, do ponto de vista funcional, ao filtro mágico que desencadeou a insana paixão entre Tristão e Isolda).
Esta responsabilidade tomada por Pessoa, esta sua dedicação absoluta a um projecto literário segundo o qual a "magia da literatura" nunca deverá ser senão uma "magia branca", pode no entanto ser classificada como satânica ou, melhor ainda, luciferina (tendo em conta os valores positivos que um certo livre-pensamento, primeiramente iluminista, depois romântico e por último decadentista, atribuiu ao termo); mas seguramente nada há, nela, de propriamente diabólico. Neste juramento, que Fernando Pessoa não assinou com o seu próprio nome e no entanto haveria de respeitar ao longo de toda a vida[27], o poeta indica claramente que não ambiciona nem o poder nem o prazer, mas antes a potenciação de todas as suas energias postas ao serviço da elevação imaginativa, intelectual e estética. Aí formula, portanto, a sua decidida recusa de utilizar as suas capacidades artísticas para estimular sensualmente e/ou passionalmente os seus eventuais leitores. Esta preocupação moral, com o seu quê de calvinista, tem sido aliás compartilhada - pelo menos no que respeita à quase total ausência de erotismo na escrita - por muitos escritores contemporâneos italianos, entre os quais figuram em posição de destaque os sicilianos, em geral, e Leonardo Sciascia, em particular[28].
A este ponto, após se ter precisado que tipo de diabo é o concebido por Pessoa, resta averiguar que Fausto é o seu - isto é, que relações se podem descortinar entre o seu e os outros Faustos, e muito particularmente o de Goethe; e ainda, no que concerne especificamente à sofrida versão pessoana do mito de Fausto, que relação aí se estabelece entre Fausto e o diabo. Julgo conveniente começar por tentar delinear uma ampla panorâmica da valência de Fausto no imaginário do homem ocidental contemporâneo - imaginário que se alimenta sobretudo de lugares-comuns, de vulgarizações e de alusões mediáticas, no lugar do directo conhecimento das obras literárias de temática faustiana.
Tome-se em consideração, como exemplo do que acabo de afirmar, um artigo de Luca Fontana publicado no «Diario della settimana» de 24/11/2000, em parte dedicado às mais recentes fobias alimentares dos europeus - especificamente, à doença das vacas loucas -, não por acaso intitulado Addio, mito del Faust, que o jornalista começa assim: «Che dire del mito del Faust, mito umanistico per eccellenza che identifica sapere e potere, oggi che scienza, etica, politica ed economia parlano lingue separate e specializzate?» (sublinhados meus). Para começar, a frase citada contribui para a divulgação de uma imagem errada do mito de Fausto, tal como este se apresenta hoje radicado na nossa cultura - isto é, fundamentalmente graças à universal assimilação da versão transmitida por Goethe: bem ao contrário do que o jornalista sugere, o Fausto de Goethe inicia o seu percurso de danação precisamente quando se dá definitivamente conta de que a ciência, em geral, e a sua ciência, em particular - na medida em que ele representa ainda o modelo renascentista do homem de ciência -, nada mais são que uma manifestação da vanitas deprecada no Eclesiastes. O mito da ciência omnipotente, a que se refere o jornalista, talvez tenha mais que ver com o Fausto pré-goethiano - e, mesmo assim, só se aceitarmos por boa uma (discutível) identificação de fundo entre ciência e magia. A propalada «identificação entre saber e poder» seria mais razoavelmente ilustrada com o mito do Golem, tal como este nos foi sendo transmitido desde as tradições cabalísticas medievais até ao Frankenstein de Mary Shelley (1818), ou então através do soberbo guião de Hampton Fancher e David Peoples para o filme Blade Runner de Ridley Scott (1982)[29]; mas mesmo nestes dois casos tal identificação é-nos apresentada como um sonho blasfemo da razão, e o temerário que se abalança à concretização de tais delírios acaba sempre por sofrer um castigo exemplar. O Fausto de Goethe é, bem pelo contrário, o homem de ciência que troca o saber humano - que ele reputa completamente inútil, no fundo - pelo poder: um poder ilícito, inatural, blasfemo, de que só poderá dispor graças à ajuda do diabo; e mesmo esse poder, assim obtido, manifesta-se no Faust de Goethe como fundamentalmente ilusório. |