S. FREI GIL.....................LITERATURA EGIDIANA

A construção da imagem do Fausto,
de Cipriano de Antioquia a Fernando Pessoa
ARLINDO JOSÉ NICAU CASTANHO

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A formação da lenda de Teófilo é mais ou menos simultânea à de Cipriano (a versão apresentada por Fumagalli, por exemplo, é datável do séc. VI) e gozou de uma ampla difusão na Europa medieval: como já referi, encontramo-la, por exemplo, na Legenda aurea, nas Cantigas de Santa María de D. Afonso X, nos Milagros de Nuestra Señora de Gonzalo de Berceo e nos dramas religiosos de Rutebeuf (Le miracle de Téophile). Ao contrário de Cipriano, que era ainda um pagão quando subscreveu o pacto nefando, Teófilo era já um cristão quando se aliou com o demónio. A história desta defecção é particularmente interessante.

Teófilo era o ecónomo do bispo da Cilícia (a qual é confundida, na Legenda aurea, com a Sicília). Uma vez morto o bispo, toda a comunidade e toda a hierarquia eclesiástica local apostavam convictamente em Teófilo, como melhor candidato ao sólio episcopal vacante. Mas numa demonstração de humildade excessiva - que no fundo acabava por aflorar o extremo oposto, o do orgulho desmedido e da falsa modéstia - Teófilo recusou obstinadamente o cargo, apesar de todos os rogos e insistências de que foi alvo. Lá tiveram, pois, que nomear outro.

Ao novo bispo não agradava, porém, o modo como Teófilo levava a cabo o seu mester de ecónomo, pelo que o despromoveu, colocando-o ao serviço de um novo ecónomo de sua confiança: um dos primeiros exemplos, que eu saiba, de relatos sobre problemas, injustiças e frustrações vividos em ambiente laboral, a que nem sequer é alheio o tipo de pressão psicológica, humilhante e desmoralizadora, hoje em dia correntemente conhecida por mobbing. Com efeito, é natural que o novo bispo estivesse absolutamente cônscio de ocupar um cargo que, no fundo, Teófilo acabava de recusar: isso colocava-o, de certo modo, numa posição de inferioridade moral em relação ao seu subordinado. Não destoa deste quadro hipotético, mas verosímil, a possibilidade de que o novo bispo tenha entrevisto na recusa de Teófilo (como eu próprio acabo de fazer) uma manifestação de suma arrogância, camuflada com uma farta dose de hipocrisia - o que o terá impelido a proporcionar a Teófilo uma verdadeira ocasião para demonstrar a sua tão propalada humildade cristã...

Seja como for, o que é certo é que essa regressão profissional abalou Teófilo ao ponto de o levar, rapidamente, da desilusão e da amargura ao mais absoluto desespero e, daí, à revolta surda, mas nem por isso menos virulenta: uma revolta contra tudo e contra todos; e contra Deus, também. Tanta era a vontade de recuperar o posto perdido que Teófilo não desdenhou sequer o auxílio do diabo, ainda que à custa de um pacto escrito: um pacto caracterizado, aliás, por uma redacção arrevesada e minuciosa (onde ainda não comparece, porém, a imposição da assinatura com o próprio sangue), e que sem exageros poderemos apelidar de autêntico iter burocrático avant la lettre (e efectivamente redigido em lídimo burocratês). Graças ao pacto sacrílego Teófilo conseguiu reaver o posto, a estima do bispo e de toda a comunidade. Mas depois arrependeu-se, e só a intervenção pessoal de Nossa Senhora lhe permitiu recuperar o documento vinculativo, que o diabo se recusava a devolver-lhe. O mais interessante para nós, a este ponto, é o que sucedeu logo após a intervenção liberatória de Nossa Senhora:

«Il giorno dopo, una domenica, si recò alla chiesa cattolica e alla lettura del Vangelo cadde ai piedi del suo santo vescovo e gli raccontò meticolosamente ogni cosa (.). Grazie a Lei [i. e., graças a Nossa Senhora] affermava di avere recuperato quel contratto autenticato da un sigillo che subito consegnò nelle mani del vescovo. / Tanta fu la meraviglia e la curiosità dei chierici, dei laici e dei bambini lì presenti, che tutti chiesero che quel documento fosse letto sull'ambone, così che tutti i fedeli poterono venire a conoscenza di quanto era stato scritto in quel patto.»[12].

E é mesmo esse o ponto crucial: a vontade de passar a pente fino, em público e literalmente em frente de todos (crianças inclusas), todos os pormenores concretos, todas as etapas requeridas pela praxe do pacto diabólico, acabava por exacerbar a curiosidade de cada um e por funcionar, até, como um autêntico curso gratuito, prático e intensivo de nigromância, para os cidadãos de todas as extracções e de todas as idades.

Como já tive ocasião de relevar, do momento da formação da lenda de Cipriano em diante difunde-se cada vez mais a ideia de que o pacto com o diabo pode ser retractado a qualquer momento, para tal bastando recorrer ao sinal da cruz ou à invocação dos nomes de Cristo ou de sua Mãe. A excepção à regra é justamente representada pelo caso de Teófilo, que implicou uma intervenção directa, pessoal, de Nossa Senhora.

 
In: Artifara, n. 1, (luglio - dicembre 2002), sezione Monographica, http://www.artifara.com/rivista1/testi/Fausto.asp