As relações entre a ideologia e os aparelhos repressivos da Igreja Católica, por um lado, e as crenças e práticas mágicas de raiz popular, por outro, frequentemente se saldaram numa espécie de convivência mais ou menos pacífica. O "inimigo principal a abater", aos olhos da Igreja, era a heresia: a heresia popular, como as diversas manifestações de maniqueísmo "de massa", entre as quais podemos arregimentar o catarismo, e aquelas mais propriamente elitistas, intelectuais, como as correntes gnósticas que sempre foram tentando - e continuam a tentar - minar os interstícios da ortodoxia. As superstições populares não inseríveis no âmbito da tentação herética, como a maior parte das crenças mágicas, eram mais ou menos toleradas pelos inquisidores. Aliás, voluntariamente ou não, eram frequentemente os próprios padres e frades os mais eficazes difusores de práticas sobremaneira reprováveis como o são, com efeito, a renúncia a Cristo e o pacto com o diabo.
Um claro exemplo do que acabo de referir encontra-se na relativa indiferença manifestada pelos "gendarmes da fé" - no Friuli quinhentista e seiscentista, pelo menos - seja em relação aos "magos bons", ou benandanti, seja em relação aos suspeitos de prática da magia negra (muitos destes últimos denunciados, aliás, por benandanti). Certamente existem outras razões para uma tal morosidade e ineficiência processual, nessa zona extrema das Três Venezas: razões que se prendem, sobretudo, com um multissecular conflito de competências entre a cidade de Veneza e as administrações locais, tanto civis como religiosas, teoricamente sob a dependência daquela[9]. Mas parece que o mais sólido motivo para essa manifesta falta de zelo reside na convicção das autoridades eclesiásticas de que essas manifestações de fé desviada eram, no fundo, de escassa perigosidade.
Pelo que diz respeito às práticas populares contraculturais - que vão das viagens subjectivas da alma que se podem definir como chamânicas, como as dos benandanti, até à manifesta revolta contra Deus e ao pacto com o Rebelde cósmico por excelência -, são efectivamente os casos de retractação registados no Friuli que ilustram o modo como o aparelho repressivo da Igreja contribuía, ainda que involuntariamente, à divulgação, ao encorajamento e à aprendizagem de tais práticas. Como explica Ginsburg no seu estimulante ensaio I benandanti, era habitual fazer abjurar os réus confessos de bruxaria em frente da multidão, com descrições minuciosas dos ritos que costumavam praticar: «le abiure pubbliche circostanziate e diffuse (.) contribuivano senza dubbio al propagarsi delle stesse credenze che si volevano estirpare. In questo senso il cardinale Arigoni scriveva all'inquisitore di Bologna, il 18 febbraio 1612, di badare nel formare la sentenza di non riferire i modi sortileghi e magici, abusi di sacramenti, cose sacre e sacramentali, come si contiene nei processi et confessioni loro [i. e. de dois benandanti, o Gasparutto e o Moduco], accioché quelli che saranno presenti all'abiuratione non habbiano occasione d'impararli.»[10].
Como se pode desumir do exemplo citado, alguns eclesiásticos tentavam pôr fim a estas contraproducentes confissões públicas. Mas no fundo não eram senão uma ilustre e escassíssima minoria aqueles que, entre as autoridades religiosas, se demonstravam sensíveis aos perigos que tais espectáculos mediáticos representavam para as almas cristãs, ou que, cientes de tais perigos, renunciavam às vantagens - económicas e propagandísticas - que essas manifestações de massa proporcionavam às estruturas locais da Igreja[11]. Para mais, a História da Fé já de há muito abundava em exemplos de detalhadas autodenúncias: o caso mais remoto, por quanto me é dado saber, reside justamente na já referida história de Teófilo. |