Cena III

Mesmo ambiente da Cena I. O canhão foi colocado na mesma posição. Os homens estão caídos no chão, mortos, e os pedestais das estátuas estão cobertos de papéis. Sentado num banco, o Compositor escreve, absorto.

NARRADOR

Agora, é assim esta cidade, senhores. Casas e casas sem ninguém, e ruas e praças também silenciosas e desertas. Agora, senhores, só os grifos das igrejas de pedra antiga ainda vigiam e os morcegos dos becos sem saída ainda voam sobre estas casas e estas ruas e estas praças, vermelhas, cobertas de sangue apodrecido. É, ainda, uma cidade esta cidade, senhores. Mas ainda é uma cidade apenas porque já foi uma cidade. Agora, que o presente morreu, não existe mais futuro. Não há mais crianças nas escolas, fumando cigarros às escondidas, nem vidros nas janelas, nem pombos, nem pardais, nem telhas nos telhados das casas sem gente e sem mobília. Ainda é uma cidade esta cidade, senhores. Mas é uma cidade que morreu. Ninguém mais senta nestes bancos, nem os namorados se beijam e desfolham, abraçados, as flores dos jardins. Agora, senhores, abanando ao vento como os lenços brancos das despedidas sem retorno, só os papéis dos editais permanecem nos pedestais das estátuas. Ainda é uma cidade esta cidade, senhores. Mas é uma cidade apodrecida. Deitados de borco ou de costas, cobertos de pus e de moscas, os cadáveres apodrecem devagar. Nas ruas, nas praças, nos hospitais e nos cafés, nas igrejas e nas escolas. Em todos os lugares apodrecem cadáveres, senhores. Até nos cemitérios. Agora, é assim esta cidade, senhores: casas e casas sem ninguém, e ruas e praças também silenciosas e desertas, e cadáveres apodrecendo, devagar, em toda a parte. E papéis esvoaçando, abanando ao vento como os lenços brancos das despedidas sem retorno. À meia noite, senhores, só os fantasmas ainda aparecem nas esquinas assombradas e os morcegos saem dos becos sem saída. Vêm beber o sangue dos esgotos, como as ciganas velhas de Madrid bebiam o sangue dos matadouros. Agora, senhores, são apenas as botas cardadas dos que vieram, sujas de lama e de sangue, que pisam a terra calcinada dos canteiros dos jardins. E transportam os donos, que violaram as casas e as mulheres, como violaram as ruas e as praças, e colaram os papéis dos editais nos pedestais das estátuas. E, à sombra dos heróis, abateram os homens a tiros de espingarda.

O Compositor levanta-se, aproxima-se do Narrador e mostra-lhe o que terminou de escrever.

COMPOSITOR

Foi assim que eu também compus a minha sinfonia.

NARRADOR (Apontando os cadáveres)

Todos amigos dele. E tão amigos, que nenhum pediu flores, nem discursos.

COMPOSITOR (Aos cadáveres, mostrando os papéis)

Eis a nossa sinfonia, meus irmãos! Só lhe falta um acorde, mas eu o comporei, eu vos prometo! (Ao Narrador.) Não será de louvação. Eu não sei louvar ninguém.

NARRADOR

Eles estão mortos.

COMPOSITOR (Ao mesmo tempo, aos cadáveres)

Agora, sou eu só, meus irmãos! Mas toda a vossa vida está comigo. Eles vos prenderam e vos mataram. Mas não conseguiram destruir-vos. Ninguém destrui um homem a não ser que ele se destrua a si mesmo. E vós não vos destruístes. (Agita os papéis com força.) Eu terminarei a nossa sinfonia, meus irmãos, eu vos prometo!

Escuta-se o ruído de homens marchando.

NARRADOR

Silenciosos e serenos, os mortos estão mortos, senhores. E apodrecem, agora, à sombra dos heróis.

O ruído aumenta num crescendo.

NARRADOR (Quase gritando)

Agora, os que marcham, só entram nas casas vazias das mulheres...

O ruído abafa a voz do Narrador.

NARRADOR (Gritando)

...à procura de mulheres!

COMPOSITOR (Ao mesmo tempo, gritando também)

Eu terminarei a nossa sinfonia, meus irmãos!

Homens Vestidos de Marinho entram, correndo, e arrastam o Narrador e o Compositor para fora da cena

 

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