As Nossas caravelas foram, descobriram novas terras, mas sempre retornaram a Portugal.
As intenções acobertadas pela dilatação da fé e do império sempre foram mercantis. Senhor do monopólio do transporte marítimo das especiarias do Oriente para a Europa, Portugal enriqueceu e Lisboa tornou-se a capital mais importante do comércio mundial. Mas pouco, ou nada, sobrava da riqueza. O policiamento do Oceano Índico, sem o que desapareceria o monopólio, somado ao esbanjamento, comum a todo o enriquecimento rápido e desregrado, se encarregava de aprofundar, cada vez mais, o buraco da insolvência. Mas Portugal precisava manter o fausto. Afinal, além de ter criado o hábito de gastar, era também uma corte européia. Et la noblesse oblige...
Por isso, perdidas as possessões do Oriente, imediatamente, as rotas se inverteram. E os ventos que levavam as caravelas para além do Cabo das Tormentas, passaram a empurrá-las para as costas da Terra de Santa Cruz. O que as especiarias orientais tinham feito, faziam, agora, o ouro e as pedras preciosas brasileiras. Mas, também aqui, as caravelas não fundeavam como tinha fundeado o Mayflower. Para ficar. Logo que os porões eram carregados, as velas eram içadas e a viagem de retorno começava. Foram séculos de ir e vir, até que D. João VI aportou ao Rio de Janeiro e, quinze anos depois, o Grito do Ipiranga secou, de vez, os veios auridiamantíferos.
Entretanto, apesar de simbiôntica e politicamente separados, Portugal e Brasil continuaram interligados. Na Terra de Santa Cruz vicejava, ainda, a árvore das patacas. E milhares de portugueses para la foram, na esperança de lhe colher os frutos e voltarem ricos a Portugal. Foi a fase dos brasileiros de torna-viagem, que Camilo Castelo Branco e Luís de Magalhães tão admiravelmente retrataram em romances inesquecíveis. Mas a árvore das patacas secou. E, com isso, acabaram, também, os torna-viagem. Mas a ligação continuou. Só que, agora, transformada numa afinidade muito mais sentimental do que material. Ou até cultural.
Não há como negar o afeto e o carinho com que brasileiros e portugueses (exceção feita a algumas brigas de comadres) se tratam mutuamente. Mas, por maior que seja o vínculo sentimental, essa afinidade, por si só, não é fator de integração. E, muito menos, de integração cultural, apesar do que dizem os governos, e tanto que se fala e se escreve por aí. Lá e cá. Discursos não passam de discursos. E cultura não se faz com discursos. Faz-se com povo e com artistas.
Se a palavra saudade é tão portuguesa que, diz-se, é intraduzível, ufanismo, por sua vez, é tão brasileiro que não tem similar em Portugal. E é, justamente, aí que os pratos da balança não param de balançar. Ou a saudade faz verter rios de lágrimas, ainda acompanhados ao som plangente das guitarras, ou o ufanismo diz que as novelas brasileiras mudaram até o estilo de vida de Portugal. Por isso, embora, no papel, existam projetos e mais projetos de relações culturais, a integração em si mesma, o intercâmbio do que mais representativo as duas culturas estão produzindo, em termos reais, não existe. Festejam-se datas cívicas e efemérides e trocam-se louvações e parabéns oficiais, e os projetos são, apenas, motivo para beberetes e discursos. Tudo feito, é verdade, com a maior circunspeção e galhardia. Mas feito, apenas, porque tem que ser feito. Porque faz parte de um cerimonial milimetricamente cronogramado. Não porque o resultado seja importante ou mova interesses políticos. Cultura nunca deu votos a ninguém.
E assim caminha a integração. Apesar das cerimônias e dos discursos (e das boas intenções de algum João Batista, este, como aquele, sempre prega no deserto), o que, realmente, se conhece da cultura portuguesa no Brasil e da cultura brasileira em Portugal?
O ufanismo nos diz que, além das novelas da televisão, muitos cantores brasileiros fazem sucesso em Portugal. Assim como nos diz, também, que filmes como A Dama do Lotação e Eu te Amo lotaram os cinemas portugueses. Mas as novelas mexicanas também fazem sucesso no Brasil, Júlio Iglésias também vende toneladas de discos e CDs, e a série Mad Max também lotou os cinemas brasileiros. E nem por isso os promotores dos beberetes e dos discursos falam de integração cultural com o México, com a Espanha ou com a Austrália. Mas, mesmo concedendo que a música popular brasileira faz (algum) sucesso em Portugal, por onde anda a música popular portuguesa no Brasil? Lamentavelmente, só a saudade diz que nunca houve cantores como a Amália Rodrigues e o Francisco José. Os mais intelectualizados falarão, certamente, em Eugénia Mello e Castro e os mais politizados dirão, com o maior orgulho, que jamais esqueceram Grândola, Vila Morena. Mas, Grândola, Vila Morena, ficou conhecida no mundo inteiro por ter servido de senha para a Revolução dos Cravos, no dia 25 de abril de 1974. Agora, as outras músicas de Zeca Afonso, quem as conhece no Brasil?
Pedro Álvares Cabral saiu de Lisboa com treze caravelas. Uma voltou ao reino, dando notícia da descoberta do Brasil, sete afundaram numa tempestade e o resto da frota seguiu para a Índia. A ver pelo resultado, só pode ter sido na caravela que voltou ao reino que o cinema português desembarcou no Brasil, tão rarrissimamente é visto em circuitos comerciais. Filmes como A Severa, A Canção de Lisboa ou As Pupilas do Senhor Reitor foram os últimos passageiros da caravela da saudade e só os mais saudosistas (ou mais velhos) se lembram deles. Porque os filmes de Manuel de Oliveira, João César Monteiro, José Fonseca e Costa, Rui Simões, Joaquim Sapinho e tantos outros, quem viu? Quem conhece?
Mas, se dermos o devido desconto ao ufanismo, a recíproca também é verdadeira. O que os portugueses conhecem do cinema brasileiro? Sabem, porque assim o disseram as revistas cor-de-rosa, que Fernanda Torres fez um filme com José Fonseca e Costa, que Geraldo Del Rey também filmou com Paulo Rocha, e que Lima Duarte andou por aí mostrando que nem só de Zeca Diabo vive a sua fama. Ou, então, que Jom Tob Azulay e Walter Salles Júnior vieram filmar em Portugal e que o grande Glauber Rocha adoeceu em Lisboa e voltou ao Brasil para morrer. Mas Joaquim Pedro de Andrade, Cacá Diegues, Nelson Pereira dos Santos, Tata Amaral, Paulo Augusto Gomes, Hugo Carvana, Milton Alencar ou Geraldo Veloso, e tantos outros, lotam, por acaso, os cinemas portugueses?
Desde que morreu João Villaret e Beatriz Costa voltou a Portugal, não se vê mais teatro português no Brasil. Nenhuma companhia brasileira monta textos de autores portugueses. Nem sequer de Gil Vicente. Bernardo Santareno, Carlos Coutinho, Jaime Salazar Sampaio, Luís Francisco Rebello, Jaime Gralheiro ou Fonseca Lobo são nomes totalmente desconhecidos da cena brasileira. Mas, e o que é que acontece com o teatro brasileiro? Será que é montado em Portugal? Será que os portugueses também conhecem Nelson Rodrigues, Dias Gomes, Oduvaldo Vianna Filho, Jorge Andrade, Gianfrancesco Guarnieri, Alcione Araújo, Consuelo de Castro ou Plínio Marcos? Pelo que lemos nas agendas culturais, o empate contenta gregos e troianos. Zero a zero e não se fala mais nisso.
Jorge Amado e Paulo Coelho são escritores que têm público em Portugal. E João Ubaldo Ribeiro, de quem um ou outro amigo lisboeta ainda recorda a preferência dele pelo vinho tinto Periquita. Também, academicamente, se estudam alguns: Machado de Assis, Carlos Drummond de Andrade, Graciliano Ramos ou Guimarães Rosa. Mas Oswaldo França Júnior, João Antônio, Luiz Vilela, Ignácio Loyola Brandão, Rubem Fonseca, Murilo Rubião, Antônio Torres, Roberto Drummond, Sérgio Sant’Anna, Lygia Fagundes Telles ou Dalton Trevisan representam o quê para o grande público português? Certamente, nomes que podem constar de uma lista telefônica. Se constarem.
E os portugueses? Que escritores portugueses têm público no Brasil além de Fernando Pessoa, Eça de Queirós, José Saramago e, agora, António Lobo Antunes? Também se estudam alguns: Camilo Castelo Branco, Luís Vaz de Camões ou Florbela Espanca. A maioria dos outros, se, às vezes, consegue atravessar, a salvo, o Atlântico, morre encalhada em terra firme. José Cardoso Pires encalhou com O Delfim, Augusto Abelaira com A Cidade das Flores, Virgílio Ferreira com Para Sempre, Almeida Faria com Cavaleiro Andante, Jorge Reis com Matai-vos Uns aos Outros, Agustina Bessa-Luís com A Sibila ou Fernando Namora com Domingo à Tarde. Todos publicados, mas desconhecidos. E desconhecidos porque não venderam. Clara Pinto Correia e Inês Pedrosa, que estiveram em Bienais do Rio de Janeiro, quem as leu, passada a euforia do passeio e dos sorrisos? E Lídia Jorge, Fernanda Botelho, Hélia Correia, Maria Judite de Carvalho ou Maria Gabriela Llansol?
Na verdade, Portugal e Brasil são, ainda, países de pompa e circunstância. Sempre que se fala em cultura, se ninguém puxa o revólver, também ninguém se sente incriminado. Antes pelo contrário, promovem-se solenidades, e discursos ainda mais solenes, e todos se sentem realizados. Gorgolejados os adjetivos e emborcados os coquetéis ou Portos de Honra, nada mais há para fazer, a não ser aplaudir. A função está cumprida. Em terreno tão bem adubado de intenções, como não hão de germinar as sementes da cultura?
O Prêmio Camões, que tanta celeuma já causou, que o diga. Não somos contra o Prêmio Camões. Antes pelo contrário, achamos que deva existir não um, mas cem Prêmios Camões. Contudo, reconheçamos, em termos de integração cultural, muito melhor do que cem Prêmios Camões, seria a edição e distribuição das obras de cem autores portugueses no Brasil, e de cem autores brasileiros em Portugal. Mas, se não houver Prêmios Camões, como se pode falar de cultura? Quem escutará os discursos e beberá os coquetéis e os Portos de Honra? E aplaudirá os oradores?
E esse é o grande problema. Oficialmente, sem solenidades, a cultura não existe. Fala-se, e muito, na lusofonia como solução de todos os mal-entendidos da comunicação. Unificar a língua é mais urgente e importante do que erradicar a seca no Nordeste ou duplicar a produção de cortiça no Alentejo. Mas, se entre Portugal e Brasil nada se unifica (apesar de todos se entenderem) o que se poderá unificar nos outros componentes da Comunidade da Língua Portuguesa: Angola, Moçambique, Guiné, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e Timor? Os acordos oficiais ou a cultura?
Talvez os livros de Paulina Chiziane, Filomena Embaló, Pepetela, José Craveirinha, Ungulani Ba Ka Khosa, Germano Almeida, Mia Couto ou Luandino Vieira possam dizer alguma coisa. Se forem lidos.
Razão tinha (e quanta!) José Saramago quando, ao receber o Prêmio Cidade de Lisboa, concedido ao seu romance Levantado do Chão, assim se expressou, falando por todos nós: Fala-se, interminavelmente, de cultura, mas não se vive a cultura.
Cunha de Leiradella
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