O HOMEM CALADO
Cunha de Leiradella
9-01-2005
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O Homem Calado entra pela esquerda, carregando mais sarrafos. Coloca-os ao lado dos outros e sai.

VOZ DO SEGUNDO HOMEM
Isso é o que o senhor pensa.

VOZ DO PRIMEIRO HOMEM
Meu amigo, por favor, eu não penso. Eu raciocino.

VOZ DO SEGUNDO HOMEM
Ah, pensa. Se eu penso...

VOZ DO PRIMEIRO HOMEM
O senhor pensa, exatamente, porque se deixa levar pelas primeiras impressões. Por isso é que o senhor pensa.

VOZ DO SEGUNDO HOMEM
Eu? Mas de jeito nenhum, meu amigo. Eu penso porque...

VOZ DO PRIMEIRO HOMEM
Porque as primeiras impressões são fundamentais, absolutamente fundamentais, e o meu amigo sempre pensa nelas. Se não pensasse, não estava aqui agora, ou estava?

VOZ DO SEGUNDO HOMEM
Bom. Encarando as primeiras impressões por esse prisma, realmente, isso é verdade.

O Homem Calado entra pela esquerda, carregando uma caixa de ferramentas. Coloca-a ao lado dos sarrafos e sai.

VOZ DO PRIMEIRO HOMEM
Mas claro que é verdade. A verdade, meu amigo, embora muitas vezes não pareça, é sempre a verdade. O senhor lembra dos tribunais: jura dizer a verdade, nada mais do que a verdade? Só por aí o senhor já pode fazer uma idéia. Se não fosse a verdade o que seria dos tribunais, concorda comigo?

VOZ DO SEGUNDO HOMEM
Bom…

VOZ DO PRIMEIRO HOMEM
Se concorda, então o meu amigo há de concordar também que, quando eu falei das línguas, eu apenas disse que o meu amigo tinha sido muito peremptório.

VOZ DO SEGUNDO HOMEM
Mas eu fui peremptório porque...

VOZ DO PRIMEIRO HOMEM
Eu sei. Então eu não sei por que é que o meu amigo foi peremptório?

VOZ DO SEGUNDO HOMEM
Eu fui…

VOZ DO PRIMEIRO HOMEM
Não. Não. Não. Deixe, que eu mesmo respondo, porque eu sei a resposta. O meu amigo foi peremptório porque, sendo peremptório, poderia demonstrar o seu caráter. Foi ou não foi?

VOZ DO SEGUNDO HOMEM
Eu…

VOZ DO PRIMEIRO HOMEM
Eu sabia que tinha sido. Mas, deixe-me que lhe diga, o fato de ser ou não ser, neste momento não importa. O que, realmente, importa, e isso eu faço questão de deixar bem claro, meu amigo, é que, hoje em dia, são raros, são raríssimos os homens peremptórios. E são muito mais raros ainda aqueles que são peremptórios e, ao mesmo tempo, demonstram o seu caráter, compreende o meu amigo?

VOZ DO SEGUNDO HOMEM
Muito obrigado. O senhor, realmente, sabe conhecer as pessoas.

Os dois homens entram pela direita e param.

PRIMEIRO HOMEM
O senhor vai por lá?

SEGUNDO HOMEM
Não. Eu vou...

PRIMEIRO HOMEM
Já vi que moramos em bairros diferentes. Mas isso, para o nosso caso, não tem a menor importância. O importante é que, como o meu amigo muito bem disse, realmente, eu sei conhecer as pessoas.

SEGUNDO HOMEM
Eu...

PRIMEIRO HOMEM
Não. Não. Não agradeça. Lembre-se dos tribunais: a verdade, só a verdade... E, sinceramente, lhe digo: é, justamente, por causa da verdade que lhe vou dizer o que penso. Eu só discordei do meu amigo, porque o meu amigo não deu valor ao pormenor. Claro que eu sei que, na hora de raciocinar, o raciocínio, às vezes, fica difícil. E, talvez por isso, o meu amigo, como dizer?, talvez por isso o meu amigo não tivesse condições, estou certo?

O Homem Calado entra pela esquerda, carregando uma tabuleta de madeira e coloca-a atrás do monte de sarrafos. Olha os dois homens, arregaça as mangas da camisa, cospe nas mãos e esfrega-as com força. Olha outra vez os dois homens, abre a caixa de ferramentas e começa construindo uma cerca na frente do terreno. O trabalho só terminará no fim da peça e a cerca, à medida que vai sendo construída, forçará o Primeiro Homem e o Segundo Homem a deslocarem-se, cada vez mais, para a esquerda. A cerca, depois de construída, ocupará todo o palco, no sentido transversal.