O HOMEM CALADO
Cunha de Leiradella
9-01-2005
www.triplov.org  

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SEGUNDO HOMEM
Mas de jeito nenhum. Claro que eu tive condições. O que pode ter acontecido, isso sim, é que, por um motivo ou por outro...

PRIMEIRO HOMEM
Por um motivo ou por outro. Viu como, agora, o meu amigo disse tudo? Meu caro amigo, me diga, o que é, realmente, um pormenor? Diga. Eu faço questão que o senhor diga. Diga.

SEGUNDO HOMEM
Bem...

PRIMEIRO HOMEM
Ora viu como foi fácil? A diferença entre o bem e o mal é apenas um pormenor. Um pormenor importantíssimo, mas apenas um pormenor, não concorda comigo, não?

SEGUNDO HOMEM
Bom. Se considerarmos...

PRIMEIRO HOMEM
Considerarmos? Mas considerarmos o quê? Meu caro amigo, só considera quem duvida, e eu, graças a Deus, não tenho dúvidas. Nunca tive.

SEGUNDO HOMEM
Nem eu. Eu...

PRIMEIRO HOMEM
Então o meu amigo não precisa considerar. Basta verificar. Verifique. Verifique. Verifique, e olhe, sou eu que lho digo, o meu amigo vai verificar que a importância dos pormenores é tão grande, mas tão grande, que, se não houvesse pormenores, nós não seríamos o que somos. E não seríamos só nós, não, seria tudo. Quer um exemplo? Certamente, o meu amigo sabe o que são pirâmides...

SEGUNDO HOMEM
Claro que eu sei o que são pirâmides. A energia...

PRIMEIRO HOMEM
Sem energia, meu amigo. Sem energia, que, o exemplo que eu vou lhe dar, não precisa de energia, precisa é de atenção. Pronto?

SEGUNDO HOMEM
Pronto.

PRIMEIRO HOMEM
Vamos, então, diretos à terra-mãe das pirâmides, ao Egito, para o meu amigo verificar, de uma vez por todas, a importância dos pormenores. O meu amigo está vendo aquele canteiro que tem aquelas três árvores no meio?

SEGUNDO HOMEM
Perfeitamente.

PRIMEIRO HOMEM
Ótimo. Então coloque nele, uma na frente da outra, a pirâmide de Quéope e a pirâmide de Miquerino. Colocou?

SEGUNDO HOMEM
Neste momento.

PRIMEIRO HOMEM
Muito bem. Então, agora, o meu amigo examine as pirâmides, mas examine-as com atenção. Examinou?

SEGUNDO HOMEM
Perfeitamente.

PRIMEIRO HOMEM
Muito bem. À primeira vista, vê-se o quê? Vê-se que ambas são pirâmides, estou certo? O meu amigo concorda? Ambas as pirâmides são pirâmides? Responda, ou, mesmo olhando para elas o meu amigo ainda tem dúvidas?

SEGUNDO HOMEM
Bem. Colocadas assim, uma na frente da outra, não há dúvida. Realmente, ambas são pirâmides.

PRIMEIRO HOMEM
Ambas são pirâmides, diz o meu amigo. Mas aí é que está. O meu amigo diz, mas o meu amigo ainda não sabe. E sabe por que é que o meu amigo ainda não sabe? Porque olhar, só olhar, não basta. Para que aquelas duas pirâmides sejam, realmente, pirâmides, e pirâmides que, realmente, são iguais, o meu amigo tem que analisar, e muito bem analisados, todos os pormenores, entendeu? Por isso é que eles são importantes. Sem os pormenores tudo na nossa vida seria parecido, mas nada seria igual, entende, agora, o meu amigo?

SEGUNDO HOMEM
Bem. O que eu posso dizer...

PRIMEIRO HOMEM
Não. Não. Não diga. Por enquanto é melhor não dizer nada. Analise primeiro e, depois, se, realmente, verificou todos os pormenores, então, sim, chegou a hora de dizer. Eu sei que não é fácil, mas eu lhe pergunto: está conseguindo analisar?

SEGUNDO HOMEM
Sem a menor dúvida.

PRIMEIRO HOMEM
Ótimo. Ótimo. Sinal de que o meu amigo sabe, realmente, fazer considerandos. E, agora, que já analisou, diga-me, mas diga-me com absoluta sinceridade e absoluta certeza. Aquelas duas pirâmides são ou não são pirâmides, e, o que é mais importante ainda, pirâmides que, realmente, são iguais?

SEGUNDO HOMEM
Bem. No meu entender...

PRIMEIRO HOMEM
Já que o meu amigo entendeu, e entendeu muito bem, eu gostaria de lhe fazer uma pergunta antes da resposta. Posso?

SEGUNDO HOMEM
Mas é claro. Eu estou aqui para...

PRIMEIRO HOMEM
Eu sei que o meu amigo está aqui para responder, mas a minha pergunta nada tem a ver com a resposta. O que eu queria, realmente, saber, é se a linha do meu raciocínio ficou clara ou estas duas pirâmides ainda não foram suficientes.

SEGUNDO HOMEM
Meu caro amigo, não só estas duas pirâmides foram suficientes, como, também, a linha do seu raciocínio não é só clara, é claríssima. De uma perfeição absoluta.

PRIMEIRO HOMEM
Perfeição absoluta, diz o meu amigo. Mas aí é que está. Como eu sempre digo, cuidado com as perfeições absolutas. Deus é absolutamente perfeito e não existe absolutamente, só na fé. E sabe o meu amigo por quê? Porque não tem pormenores e são os pormenores que tudo determinam. Quer ver? Veja este exemplo, absolutamente oposto ao que lhe dei, e que prova, exatamente, a mesma coisa. Por que é que uma máquina de costura não é igual a uma máquina de escrever, se ambas são máquinas e ambas são feitas e usadas pelo homem?

SEGUNDO HOMEM
Ora, mas é lógico. Porque uma máquina de costura serve...

PRIMEIRO HOMEM
Sem serventias, meu amigo. Sem serventias, que os pormenores não precisam de serventias. Repare. Eu disse, ambas são máquinas e ambas são feitas e usadas pelo homem.

SEGUNDO HOMEM
Bom. Em primeiro lugar, o senhor tem que entender que nem todo mundo...

PRIMEIRO HOMEM
Tem uma máquina de costura e uma máquina de escrever. O mais comum é ter-se uma máquina de costura ou uma máquina de escrever, é isso?

SEGUNDO HOMEM
Não era bem isso, mas serve. O fato de ter...

PRIMEIRO HOMEM
Ah, mas aí é que está. Ter ou não ter é como ser ou não ser. É uma questão, não é um pormenor. Se fosse um pormenor, talvez a serventia pudesse ser usada e todo mundo tivesse uma máquina de costura e uma máquina de escrever. Por isso, vamos aos fatos. Tire o meu amigo as duas pirâmides do canteiro e coloque no lugar delas a máquina de costura e a máquina de escrever. Colocou?

SEGUNDO HOMEM
Neste justo momento.

PRIMEIRO HOMEM
Ótimo. Ótimo. Agora, examine-as, como, há pouco, examinou as pirâmides. Examinou? Analisou bem os pormenores?

SEGUNDO HOMEM
Perfeitamente.

PRIMEIRO HOMEM
Ótimo. Ótimo. Então, agora, é fácil, e eu deixo até que o meu amigo conclua por si mesmo. Conclua, vamos. Uma máquina…

SEGUNDO HOMEM
Uma máquina…

PRIMEIRO HOMEM
Uma máquina de costura não é igual a uma máquina de escrever porque os seus pormenores não são iguais.

SEGUNDO HOMEM
Uma máquina de costura não é igual a uma máquina de escrever porque os seus pormenores não são iguais.

PRIMEIRO HOMEM
Perfeito. Viu como o meu amigo concluiu? Hem?

SEGUNDO HOMEM
Realmente, essa facilidade...

PRIMEIRO HOMEM
Facilidade? O meu amigo diz facilidade? Veja este exemplo, totalmente oposto ao da máquina de costura e da máquina de escrever, mas que prova também, e prova exatamente, a mesma coisa, e, depois me diga o meu amigo o que é facilidade. Por que é que um relógio suíço é igual a um relógio japonês? Porque ambos são relógios ou porque ambos se parecem?

SEGUNDO HOMEM
Porque ambos são relógios, é lógico.

PRIMEIRO HOMEM
Porque ambos são relógios, é lógico, diz o meu amigo. Mas que diria o meu amigo se eu lhe dissesse: se um relógio suíço é igual a um relógio japonês, só porque ambos são relógios, não seria lógico que o preto fosse igual ao branco, se ambos também são cores? Que me diria o meu amigo, hem?

SEGUNDO HOMEM
Não diria nada.

PRIMEIRO HOMEM
Não diria nada? Como não diria nada? O meu amigo tem relógio, eu também tenho, a minha gravata é preta e a sua camisa é branca, e o meu amigo não diria nada?

SEGUNDO HOMEM
Não diria. E não diria, porque o senhor me convenceu. Se os pormenores das cores não fossem diferentes, todas as cores seriam da mesma cor e todos os relógios marcariam a mesma hora. Ou não marcariam?

PRIMEIRO HOMEM
Quer dizer, então, que o meu amigo concorda que eu tive mais do que razão em discordar das suas afirmações.

SEGUNDO HOMEM
Teve. Realmente, meu caro amigo, o senhor teve mais do que razão. Só que eu não afirmei.

PRIMEIRO HOMEM
Não afirmou, mas discordou.

SEGUNDO HOMEM
Não senhor. O meu amigo me desculpe, mas eu não afirmei, nem discordei. Apenas não concordei.

PRIMEIRO HOMEM
Como não concordou? Quem não concorda, discorda, meu amigo. Quando eu disse: será que nós, os homens de hoje, chamaríamos girassol ao girassol, se antes de nós, os gregos não lhe tivessem chamado heliantos, o senhor não discordou? Claro que discordou. E discordou tanto, que foi até peremptório.

SEGUNDO HOMEM
Mas de jeito nenhum, meu caro amigo. Talvez eu até fosse peremptório, isso concordo, mas não fui peremptório na discordância, não, senhor. Eu discordei não foi do senhor, eu discordei foi dos gregos. Mão lembra que até lhe perguntei: e se não tivesse havido gregos, por acaso, não haveria girassóis?

PRIMEIRO HOMEM
E eu respondi o quê?

SEGUNDO HOMEM
Que os egípcios também cultivavam girassóis.

PRIMEIRO HOMEM
Então, já vê o meu amigo...

SEGUNDO HOMEM
Mas nós não falávamos dos egípcios. Falávamos dos gregos.

PRIMEIRO HOMEM
Que aprenderam muito com os egípcios, concorda?

SEGUNDO HOMEM
Bem...

PRIMEIRO HOMEM
Lembre-se do bem e do mal, meu amigo. Do pormenor da diferença. Se ambos estamos certos, por quê negar a lógica das certezas, hem? Veja. Todas as coisas certas estão certas, nós só dizemos coisas certas, logo, nós estamos sempre certos. (Estende a mão ao Segundo Homem.) Sem seqüelas?

SEGUNDO HOMEM
Sem seqüelas. (Aperta, calorosamente, a mão do Primeiro Homem.) Meu amigo, o senhor é um mágico. Um mágico de verdade. Com um simples silogismo quase me faz chorar.

PRIMEIRO HOMEM
Os que semeiam em lágrimas segarão com alegria. Salmos, 126.5

SEGUNDO HOMEM
Mesmo assim, meu amigo. Mesmo assim. Só o fato de ser sem seqüelas... Se me permite. (Aperta, calorosamente, a mão do Primeiro Homem.) Meus parabéns. Meus sinceros parabéns.

PRIMEIRO HOMEM
Muito obrigado. Muito obrigado, meu amigo. Vê-se que o senhor é um homem de grandes convicções.