Cadernos do ISTA . número 17
A verdade em processo

 

Aspectos da cristologia
JOÃO DUQUE

INDEX

Introdução
Percursos cristológicos
A questão da identidade
Conclusões

 

2. A questão da identidade

O que se joga nesta pluralidade de cristologias não é simplesmente um jogo de teorias teológicas, mais ou menos adequadas. Trata-se, isso sim, da questão da identidade – ou das identidades – do próprio cristianismo e, correspondentemente, do ser-cristão de cada um de nós, na diversidade dos caminhos possíveis. Assim, é importante abordar aqui a vasta questão da identidade, sempre em sintonia com a problemática das diversas cristologias. O que está em jogo é, pois, a questão da identidade de Jesus, como fonte da identidade do cristianismo, isto é, da nossa identidade. Nesse contexto, seguindo a sugestão do recém-falecido teólogo belga Adolphe Gesché, poderemos dividir a questão da identidade em identidade histórica, identidade dogmática e identidade narrativa (4).

1. A identidade histórica tem a ver com o que alguém é, enquanto pessoa que vive durante determinado número de anos, num lugar determinado, pertencendo a uma linguagem e uma cultura particulares e, por isso, pensando de determinada maneira e agindo de acordo com essas convicções.

Tendo Jesus existido historicamente, como qualquer outro ser humano, definir a sua identidade histórica é descrever o que realmente foi, durante a sua existência terrena. O relato dos seus actos e das suas palavras seria o elemento fundamental dessa descrição. E poderíamos ler os Evangelhos – os quatro canónicos, e todos os outros, ditos apócrifos – nesse sentido objectivo. Contudo, a variedade dos relatos obrigam-nos a desconfiar da total fidelidade historicista das respectivas descrições. Mas é possível, a partir doutras fontes, por enquadramento com os dados que temos sobre a cultura, a sociedade e mesmo a religiosidade envolventes, elaborar os contornos, mesmo se algo vagos, dessa figura histórica.

Uma cristologia rigorosamente «a partir de baixo», isto é, com base na descrição dessa identidade histórica, terá que se desenvolver como cristologia bíblica, mesmo que vá mais além da mera repetição dos relatos bíblicos. O enquadramento das narrativas evangélicas no mundo bíblico – e no mundo que o envolvia – permitir-nos-á ter alguma percepção da forma como os contemporâneos de Jesus o consideraram e como ele mesmo se apresentou.

Teve elementos de profeta escatológico e apocalíptico; teve elementos de reformador social e popular; teve elementos de curandeiro e sábio; teve elementos de representante do «resto» de Israel e da espiritualidade isaiana do servo sofredor; teve, certamente, muitos outros elementos. Foi, por isso, um judeu com determinadas opções e com uma mensagem relativa à vivência social e religiosa dos seus contemporâneos.

Por seu turno, a identidade histórica do cristianismo também pode ser analisada e descrita, dentro de certos limites. É evidente que nasceu a partir do anúncio de um grupo de pessoas que, por seu turno, se referiam a Jesus como seu impulsionador e modelo, no interior da tradição judaica de que, progressivamente e em parte, se foram libertando. Na sua complexa e problemática relação com o mundo hebraico e com o mundo helénico, foram descobrindo e definindo a sua identidade, quer teorica quer praticamente, sempre por referência central à figura de Jesus, agora anunciado como o Cristo.

2. Ora, é precisamente na relação da identidade cristã com a profissão de fé em Jesus como o Cristo, o Filho de Deus, salvador da humanidade, que se revela já a insuficiência da referência a Jesus apenas do ponto de vista da identidade histórica. Sem nunca a abandonar, a memória daquilo que ele disso e fez proporciona uma leitura interpretativa que conduz a uma afirmação de identidade na fé, a que poderemos denominar identidade dogmática.

Essa identidade é que permite ler a história de Jesus como história de Deus com o ser humano e história de Deus feito humano. É aí que se inicia a cristologia propriamente dita, que pretende dizer a verdadeira identidade de Jesus, sem esquecer a sua história. Como vimos, nem sempre isso foi fácil, pois esse esquecimento foi uma tentação constante. Mas não é possível, por isso, eliminar a pertinência central, incontornável, da referência à identidade dogmática de Jesus para a correcta compreensão da sua pessoa. Assim, um «cristologia a parir de baixo» só é verdadeira cristologia quando se realiza também como «cristologia a partir de cima», isto é, tematizando a identidade divina do Jesus histórico.

A identidade do cristianismo e de cada cristão possui, por isso, também uma dimensão dogmática, na medida em que não se reduz à identificação pela pertença a um grupo humano, a um clube particular, entre muitos outros possíveis. É claro que essa pertença particular, no contexto das pertenças plurais que marcam a sociedade actual, é algo que nos salta à vista, numa primeira abordagem. Mas o cristão é aquele que, inserindo-se em Cristo, por acção do Espírito, deixa que Deus actue na sua existência, para salvação pessoal e para salvação de toda a humanidade. Essa seria a consequência da identidade dogmática de Jesus para a percepção da identidade do cristianismo, enquanto intervenção histórica de uma Igreja que pretende ser sacramento da própria acção de Deus.

3. Mas – podemos perguntar-nos – como temos nós, actualmente (assim como em gerações passadas) acesso a essas identidades, histórica e dogmática, seja do próprio Jesus, seja do cristianismo? Em realidade, através de uma dinâmica de transmissão ou tradição. Não no sentido da transmissão de um conteúdo morto, depositado no fundo dos séculos, simplesmente a conhecer ou aprender, mas no sentido de uma dinamismo vivo, em que o cristianismo, na sua identidade histórica e dogmática, por referência a essas dimensões identitárias do próprio Jesus Cristo, se «reinventa» constantemente.

Ora, o processo fundamental da tradição é a narração – escrita ou oral. Contar o que sucedeu, contar a interpretação do que sucedeu, contando aquilo que sucede na relação com o sucedido – é esse o processo da narração, que coloca cada um, cada geração, em contacto com as dimensões identitárias fundamentais.

Nesse processo constrói-se aquilo a que se chama, frequentemente, identidade narrativa. Assim, podemos falar de uma identidade narrativa de Jesus. Por um lado, porque ele mesmo, seja na sua identidade histórica seja na dogmática, já se inseriu num contexto narrativo que serviu de mediação a essa formas de identificação. Assim, podemos dizer que foi quem foi, historicamente, e teve o significado que teve, dogmaticamente, por relação a uma narrativa de contextualização (o Antigo Testamento, genericamente considerado).

Por outro lado, porque o acesso ao «Jesus histórico», assim como ao «Cristo da fé», é uma acesso já mediatizado no anúncio, que contou ambas as realidades, sendo progressivamente transformado em texto. Esse texto é que passou a constituir – no contexto vivo de uma transmissão mais vasta, oral e pragmática – o ponto de referência fundamental para a constituição da identidade narrativa do cristianismo, por correspondência à identidade narrativa de Jesus.

Na narrativa, perante a qual somos colocados e em relação à qual se desenrola o processo histórico de formação da nossa identidade de cristãos, conjugam-se os elementos das outras formas de identidade, numa elaboração cristológica propriamente dita. Assim, na narrativa que origina identidade, conjugam-se ser (dogmático) e história, salvação eterna e realização temporal, redenção definitiva e libertação concreta, escatologia e acontecimento particular, reino de Deus e contexto da sua actualização histórica.

De tudo o que ficou dito e na confluência de um texto que articula um logos sobre Jesus como o Cristo (cristo-logia), poderemos retirar algumas conclusões, que possam servir de marcos para cristologias do presente e do futuro – como já serviram para muitas cristologias do passado.

 

(4) Cf.: A. Gesché, Jesucristo, Salamanca: Sígueme, 2002, esp. 59-136; J. Duque, O excesso do dom, esp. Intr.; Id., Dizer Deus na pós-modernidade, Lisboa: Alcalá, 2003, esp. cap. VII.

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