BUDISMO E IDENTIDADE PESSOAL
Paulo A. E. Borges

IN: IDENTIDADE PESSOAL:
Caminhos e Perspectivas
Francisco Teixeira (coordenação)
Coimbra, Editora Quarteto, 2004

1. Temas
2. Textos da tradição do Buda
3. Alguns textos do Mahayana
4. Natureza da avidya

2. Textos da tradição do Buda

Mas percorramos alguns textos fundamentais da tradição do Buda, seleccionados dos seus três ciclos de Ensinamento e dos três Veículos aí expostos em função das qualidades e potencialidades dos seus destinatários, pequenas, médias e superiores: o Hinayana, ou Pequeno Veículo (hoje também designado como “veículo de base”), o Mahayana, ou Grande Veículo, e o Vajrayana, ou Veículo de Diamante. Neles destacaremos apenas as passagens que permitam elucidar mais directamente a questão da identidade pessoal.

No primeiro discurso proferido, quarenta e nove dias após a Iluminação, dito de Benares, em pali o Dhammacakkapavattanasutta, o Sutra da Roda da Lei, verdadeiro coração do Dharma, o Buda enuncia a primeira das quatro nobres verdades, sobre a omnipresença de dukkha na existência e experiência condicionada de todos os seres (1). Dukkha, que, inicial e habitualmente traduzido por “sofrimento” ou “dor”, é um termo que na verdade não tem equivalente nas línguas ocidentais, implicando noções mais vastas e profundas como as de insatisfação, mal-estar, frustração, imperfeição, impermanência, conflito, vazio e não substancialidade (2). Se dukkha está presente no nascimento, na doença, na velhice e na morte, no “estar unido ao de que não se gosta”, no “estar separado do que se gosta” e no “não ter o que se deseja”, tudo se resume em que “os cinco agregados de apego são dukkha”(3). Os cinco agregados, ou skandhas, em sânscrito (4), designam as energias psicofísicas em constante mudança e interdependência cuja associação provisória compõe aquilo que na experiência não iluminada, condicionada por estes mesmos agregados, surge como um “ser”, um “indivíduo” ou um “eu”. A sua aparente unidade simples é assim um composto de vários elementos que só existem na sua interacção e não de modo autónomo. Se os apresentamos aqui pela ordem tradicional, convém ter presente que a sua manifestação é simultânea e que a presença de um implica a de todos os outros: 1 - formas (rupa), físicas e mentais, exteriores e interiores, incluindo os seis objectos dos órgãos dos sentidos físicos e mental e estes mesmos órgãos; 2 - sensações (vedana) físicas e mentais dessas formas, agradáveis, desagradáveis ou neutras; 3 - percepções (sanna), que reconhecem, discernem e identificam os objectos da experiência física e mental; 4 - formações mentais, kármicas ou volicionais (samskara), que determinam a actividade positiva, negativa ou neutra da mente e elaboram assim a visão/experiência individual do mundo, sendo a cada instante o efeito das volições e acções passadas e a causa das presentes, cujo efeito é por sua vez causa das futuras; é por estas formações que desde sempre é construído, consciente ou inconscientemente, o modo agradável, desagradável ou neutro de manifestação dos objectos-formas na sensação, na percepção e na consciência; as referidas formações compreendem assim “todos os automatismos habituais de pensamento, sentimento, percepção e acção”; 5 - consciências, em número de seis, conforme os seis órgãos e objectos dos sentidos físicos e mental, unificadas na consciência (vijnana), instância não autónoma que apenas efectua a síntese da experiência dos demais agregados em termos da dualidade que a instaura como um sujeito conhecedor de um objecto (5). Aqui concorre e daqui decorre a ideia, adventícia e falsa, da existência de um “eu”, ou de uma entidade intrínseca, naquilo que não é senão a associação provisória, interdependente e em mutação constante de cinco forças e funções psicofísicas. Na verdade, a ideia de “eu” não é senão uma das cinquenta e duas formações mentais elaboradas pelo quarto agregado (6), efeito e causa da projecção da mente, da palavra e do corpo no domínio da causalidade kármica, ou seja, no domínio da acção dualista, condicionada por e condicionadora de experiências, externas e internas, de separação e relação entre sujeito e objecto.

É neste sentido que, regressando ao Sutra da Roda da Lei, “os cinco agregados de apego são dukkha” (7). Dukkha, em primeiro lugar, na acepção, mais profunda, de que são vazios de existência própria, de que são insubstanciais, não existindo em si e por si, como uma entidade sólida e permanente, mas antes como um fluxo contínuo e sempre diverso de experiências psicofísicas, sendo uma delas, que se torna habitual e predominante entre muitas possíveis, a de haver um seu sujeito, que fosse o seu suporte único e imutável ou que de algum modo lhes conferisse uma unidade permanente, sem que isso corresponda a mais do que a uma volição/noção inadequada à realidade, se bem que, segundo os contextos histórico-culturais, adequada ao mundo convencional da linguagem, das representações e das práticas humanas. Em segundo lugar, os cinco agregados são dukkha na medida em que, havendo “apego” a eles, ou seja, havendo adesão à ideia da sua existência em si e por si, o suposto sujeito que resulta dessa adesão, isto é, a experiência de haver sujeito que daí resulta, não pode ser senão uma experiência infeliz, com a insatisfação, o mal-estar, a frustração e o conflito inerentes a supor-se algo de permanente e idêntico, independente e substancial, onde não há senão impermanência e mutação, interdependência e vacuidade-insubstancialidade. Havendo adesão e apego à existência em si e por si das formas-objectos, das sensações, das percepções, das formações mentais e da consciência, a experiência psicosensorial do mundo, nas suas modalidades agradável, desagradável e neutra, tende a esquecer-se como algo que é construído na construção da própria ideia/experiência de haver sujeito e tende assim a solidificar-se, a reificar-se, como se fosse algo de objectivo, real e permanente. O positivo, o negativo e o neutro surgem como qualidades objectivamente inerentes aos objectos da percepção quando na verdade são a projecção da mente que, não o reconhecendo, deseja, rejeita ou deixa na penumbra da desatenção as suas próprias ilusões. Pelo apego aos cinco agregados e à ideia de constituírem um sujeito independente reforçam-se assim as três emoções de base da mente não iluminada – desejo possessivo, aversão e indiferença - que, como veremos, originam as acções e reacções estruturadoras de todos os estados condicionados e dolorosos do ciclo das existências ou samsara.

Se questionássemos, neste momento, quem se ilude e apega aos agregados e à ideia/experiência de haver um sujeito independente que seja o protagonista e proprietário da experiência de si e do mundo, a resposta do Buda, dos Budas, não dogmática mas movida pelo pragmatismo da compaixão, pois sempre em função das capacidades de entendimento de quem põe a pergunta e do que lhe for mais benéfico ouvir nesse preciso instante, pode ser vária, incluindo o silêncio radical (8). Pela nossa parte, diríamos que esta questão está condicionada pela mesma ilusão e apego ao pressuposto de haver um sujeito dos actos e das experiências, ou seja, neste caso, um sujeito do próprio apego à ideia de haver um sujeito, um sujeito da própria ilusão de haver sujeito. Ilusão inerente a esse senso comum arraigado no pensamento, sobretudo ocidental, enquanto crença e juízo ingénuos de que a existência de pensamento e actividade implica a de um pensador e agente, humano ou divino, ou de que ser seja ex-istir e ser sujeito. Ilusão que, pretendida verdade filosófica nas tão vulgares certezas de Santo Agostinho e Descartes, fundadas na suposta auto-evidência do cogito (9), persiste no transcendentalismo de Kant e Husserl, que não ousa estender a epoché ao próprio sujeito transcendental (10). Aqui, de facto, o pensamento budista pratica desde o início uma fenomenologia sem qualquer pressuposto transcendental. Como diz Buddhaghosa: “Só o sofrimento existe, mas não se encontra nenhum sofredor; / Os actos são, mas não se encontra actor”(11). Ou ainda o monge Walpola Rahula: “Não há motor imóvel por detrás do movimento. (...) Não há pensador por detrás do pensamento. O pensamento é ele próprio o pensador. Não podemos deixar aqui de notar como esta ideia budista se opõe diametralmente ao “cogito ergo sum” cartesiano: “Eu penso, logo existo” (12).

Na verdade, regressando ao Sutra da Roda da Lei, a segunda Nobre Verdade indica que a causa dessa dukkha, agora apenas no seu aspecto de sofrimento, inerente aos “cinco agregados de apego”, é a “sede” (tanha, em pali, trshna, em sânscrito). “Sede” no sentido de um desejo ávido e insaciável que assume três aspectos: sede dos prazeres sensoriais; sede da existência e do devir; sede da não-existência ou auto-aniquilação (13). “Sede” que assim, em qualquer dos casos, supõe a ideia/experiência de haver sujeito, indissociável do desejo ávido da sua gratificação positiva, da sua persistência ou da sua gratificação negativa, na medida em que o desejo de não ser é ainda um desejo egocêntrico de não sofrer, que denuncia o apego à ideia de existência própria. Mas como surge essa ideia/experiência de haver sujeito, ou, afinal, o desejo de o haver ? Se no Sutra da Roda da Lei se põe a tónica nesta “sede” como causa de dukkha, outros textos onde se fixou o ensinamento do Buda, como aqueles relativos aos doze elos da produção condicionada, ou interdependente, atribuem a origem da existência condicionada à “ignorância” (avidya) (14). É pela “ignorância” que se produzem as “formações kármicas”, as tendências inconscientes ou semi-conscientes que dão forma à percepção global do mundo e impulsionam a agir de modo positivo, negativo ou neutro, e é por elas que se produz a “consciência” dualista, propulsionada de experiência em experiência e de existência em existência. A “consciência” condiciona o “nome e forma”, ou os cinco agregados, que condicionam as “fontes dos sentidos”, que condicionam o “contacto”, que condiciona a “sensação ou sentimento”, que condiciona a “sede ou desejo”, que condiciona a “preensão ou apego”, que condiciona o “devir ou existência”, que condiciona o “nascimento ou renascimento”, que condiciona a “velhice e morte”. Cessando a “ignorância” cessam as “formações kármicas”, cessando estas cessa a “consciência” dualista, e assim sucessivamente, até à cessação do nascimento”/”renascimento” e portanto da “velhice e morte”(15). Como se constata, a “consciência” dualista, imediata condicionante dos cinco agregados da suposta individualidade, é por sua vez condicionada por essas tendências obscuras, no limiar entre a inconsciência e a consciência, que são as “formações kármicas”, como estas o são pela “ignorância”. A ideia/experiência/desejo de existir tem assim uma proto-história que progressivamente se afunda no irracional e no desconhecido, primeiro na penumbra das pulsões e depois na treva da cegueira (cf. a sugestão etimológica de avidya, a não visão, termo sânscrito traduzido por “ignorância”).

 

(1) Cf. Dhammacakkapavattanasutta, Samyutta-nikaya, Sacca-samyutta, II, I, in Walpola Rahula, L’enseignement du Bouddha d’après les textes les plus anciens. Étude suivie d’un choix de textes, Éditions du Seuil, 1978, pp.122-124, p.123. Cf. Carlos João Correia, “O Sermão de Benares”, Communio, nº3, Ano XVII (Lisboa, Maio-Junho de 2000), pp.266-276.

(2) Cf. Walpola Rahula, L’enseignement du Bouddha d’après les textes les plus anciens. Étude suivie d’un choix de textes, pp.36-37.

(3) Cf. Dhammacakkapavattanasutta, Samyutta-nikaya, Sacca-samyutta, II, I, in Walpola Rahula, L’enseignement du Bouddha d’après les textes les plus anciens. Étude suivie d’un choix de textes, pp.122-124, p.123.

(4) Salvo indicação em contrário, transcreveremos os principais termos budistas na fonética do sânscrito, língua na qual são mais conhecidos.

(5) Cf. Walpola Rahula, L’enseignement du Bouddha d’après les textes les plus anciens. Étude suivie d’un choix de textes, pp.40-45; Philippe Cornu, “agrégats (cinq)”, Dictionnaire Encyclopédique du Bouddhisme, p.36.

(6) Cf. Walpola Rahula, L’enseignement du Bouddha d’après les textes les plus anciens. Étude suivie d’un choix de textes, pp.45-46.

(7) Cf. Dhammacakkapavattanasutta, Samyutta-nikaya, Sacca-samyutta, II, I, in Walpola Rahula, L’enseignement du Bouddha d’après les textes les plus anciens. Étude suivie d’un choix de textes, pp.122-124, p.123.

(8) É o caso do silêncio em que o Buda se manteve perante as questões de Vacchagotta, que lhe perguntou primeiro se há um “Atman” e, depois, se não há um “Atman”. Depois de o seu interlocutor partir, o Buda explicou a Ananda que, além de outras razões, o seu silêncio visou evitar que assumisse quer uma posição e teoria eternalista, quer uma posição e teoria niilista. Na verdade, como explicou noutra ocasião ao mesmo Vacchagotta, o Buda “não tinha teoria porque tinha visto a natureza das coisas” - Walpola Rahula, L’enseignement du Bouddha d’après les textes les plus anciens. Étude suivie d’un choix de textes, pp.88-89.

(9) Cf. Santo Agostinho, De libero arbitrio, II, III, 7; De civitate Dei, XI, 26; De Trinitate, X, 10, 14; Descartes, Discours de la Méthode, VI, 32; Principia philosophiae, VII, 17; Meditationes de prima philosophia, II, 3.

(10) Já o mesmo não acontece, note-se, em algum pensamento português, onde a dúvida do sujeito a respeito da sua própria existência é um tema prefigurado em Antero, implícito em José Marinho e explícito em Teixeira de Pascoaes, Fernando Pessoa e Agostinho da Silva. Veja-se, por exemplo, quando este escreve, numa das suas quadras filosóficas: “Primeiro há um pensamento / que pensa sem pensador / e logo pensa quem pensa / que pensa tudo ao redor” - Agostinho da Silva, Quadras Inéditas, s.l., Ulmeiro, 1990, p.102.

(11) Buddhaghosa, Visuddhimagga, Londres, Pali Text Society, p.513 .

(12) Walpola Rahula, L’enseignement du Bouddha d’après les textes les plus anciens, pp.46-47.

(13) Cf. Dhammacakkapavattanasutta, Samyutta-nikaya, Sacca-samyutta, II, I, cit. in Walpola Rahula, L’enseignement du Bouddha d’après les textes les plus anciens. Étude suivie d’un choix de textes, pp.122-124, p.123.

(14) Cf., por exemplo, Vinayapitaka e Majjhima-nikaya. Cf. André Bareau, O Buda. Vida e Ensinamentos, tradução de Maria Bragança, posfácio de Vítor Pomar, Lisboa, Editorial Presença, 2000, pp.62-70.

(15) Cf. Philippe Cornu, “interdépendance (origines interdépendantes, production conditionnée)”, Dictionnaire Encyclopédique du Bouddhisme, pp.258-261.