Desde muito cedo, damos significado às nossas experiências de vida através da narração, para nós próprios e para os outros, de histórias. De facto, torna-se difícil organizar o passado, pensar no presente ou antecipar o futuro sem recorrer à construção de histórias. Poderíamos mesmo dizer que é impossível pensar sobre a nossa experiência ou sobre a dos outros sem recorrer à montagem, mais ou menos cinematográfica, de narrativas (Bruner, 1986; Gergen & Gergen, 1988; Hermans & Kempen, 1993; M. Gonçalves & O. Gonçalves, 2001; McAdams, 1993; O. Gonçalves, 2000; Sarbin, 1986).
Como sugerem ironicamente Efran, Lukens e Lukens (1990), os seres humanos são os únicos “objectos” que, ao caírem de uma janela se deslocam de acordo com as leis da gravidade, acelerados – como aprendemos na escola – a 9,8 metros por segundo quadrado, mas que ao mesmo tempo perguntam, ainda que silenciosamente, “porquê eu?” e assim, acrescento eu, procuram construir uma história (ainda que, no caso concreto, possam não ter tempo de a finalizar...).
Ou como terá dito Albert Einstein “Gravity can’t be blamed for people falling in love”. As leis da física e da ciência parecem ter as suas limitações quando pensamos sobre a forma como os seres humanos significam a experiência – seja a queda de uma janela ou a “queda” no amor...
Somos, pois, simultaneamente, produtores, realizadores, argumentistas e actores dos nossos “filmes”, das nossas narrativas. Curiosamente, quando nos vemos como actores nestas narrativas, imaginamo-nos de um ponto de vista externo (ou seja, do ponto de vista do realizador, do produtor, do argumentista ou das audiências): isto é, não nos limitamos a ver o que os nossos olhos viram, mas imaginamos o nosso corpo do ponto de vista de um espectador. Juntamos, assim, duas perspectivas nas nossas recordações. Esta é, aliás, uma boa ilustração de como a memória é um processo de re-construção: recordamos o passado, não só da forma como o vimos na realidade, mas também do ponto de vista de um observador externo (Efran, Lukens & Lukens, 1990).
Independentemente do tempo para onde olhemos, do contexto que recordemos ou das pessoas que através da nossa memória tornemos presentes, nunca escapamos a este modo narrativo de pensar. Como diz Rosa Montero (1998), no seu romance “A filha do Canibal”:
“Há quem julgue que a música é a arte mais básica, e que, desde o começo dos tempos e da primeira cova habitada pelo ser humano, houve uma criatura que bateu palmas ou fez estalar duas pedras para produzir ritmo. Mas eu estou convencida de que a arte primordial é a narrativa, porque, para poderem ser, os seres humanos têm de começar por contar. A identidade não é mais do que o relato que de nós próprios fazemos” (p. 17),
e que os outros também fazem ou fizeram connosco, acrescentaria eu.
Se vivemos narrando, também quando transformamos a nossa vida, inevitavelmente, mudamos a nossa história. Ou seja, mudar de auto-narrativa implica abrir outras possibilidades de vida.
As nossas histórias de vida estão repletas destes pontos de mudança em que, mais ou menos subitamente, de uma forma mais ou menos previsível, a nossa vida mudou de modo irreversível (como todas as mudanças, dado que o tempo insiste, teimosamente, em deslocar-se num único sentido).
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