Mas como mudamos? Podemos imaginar que primeiro muda a vida e que as histórias que contamos sobre ela acompanham essa mudança, descrevendo-a. Contudo, se a vida só pode ser pensada, sentida e significada dentro das histórias, estamos presos a uma paradoxalidade. Isto é, o que seria a vida sem as histórias que dela contamos? Seria como mudar um filme sem o mudar na tela que está à nossa frente...
Assim, se a narrativa nos permite significar a vida, podemos perguntar como seria uma vida sem significado, isto é como seria a vida dissociada da narrativa. É para mim claro que uma vida sem narrativa que a enquadre é uma vida impossível de pensar, de sentir e de significar (cf. Widdershoven, 1993). Seria como ver sem olhos. É claro que o mundo continuaria lá fora mesmo que não tivéssemos olhos, mas nós certamente já não o veríamos. Poderíamos senti-lo de outro modo, mas certamente que a visão não seria a metáfora que lhe permitiria dar sentido. Julgo que esta comparação nos pode ajudar a compreender a indissociabilidade vida/narrativa. É que, como a narrativa nos permite significar, ela ocupa não só o lugar dos olhos na analogia anterior, mas o lugar de todos os outros sentidos. Isto é, se fossemos cegos poderíamos sentir o mundo através do tacto ou da audição. Mas como seria uma vida sem significado? Sem a construção de narrativas, o que nos restaria para dar sentido aos acontecimentos; como os organizaríamos? E como construiríamos uma história de vida que nos desse a possibilidade de obter um sentido de coerência?
Podemos então pensar de um modo mais criativo se imaginarmos que as nossas histórias de vida suscitam determinados desempenhos que habitualmente estão em conformidade com elas (cf. Wortham, 2001). Sarbin (1986) sugere de algum modo isto mesmo, ao propor uma re-leitura da distinção proposta por William James entre o I e o Me, no self. Para Sarbin o I narrativo é o autor na narrativa, enquanto o Me é o actor da narrativa.
Isto é, para retomar a metáfora cinematográfica, habitualmente o modo como nos comportamos como actores está do acordo com a forma como nos conceptualizamos enquanto argumentistas ou realizadores. Quando esta conformidade não ocorre, um sentimento de estranheza surge em nós e os outros até podem insinuar (com implicações positivas ou negativas) que não nos estão a reconhecer. Assim, se eu sou altruísta (isto é, se eu e os outros contam de mim histórias em que eu auxilio os outros ou me preocupo com eles) é natural (e os outros assim o esperam) que eu me comporte em situações futuras de modo a dar continuidade a esta narrativa.
A estabilidade narrativa alimentará a continuidade relacional, de forma a que, quanto mais episódios eu narro da minha vida em que sou altruísta, mais provável é que, nas minhas próximas interacções com os outros, me comporte de modo congruente com este argumento. Desenvolve-se, assim, uma recursividade entre a narração (i.e. o argumento) e o desempenho dessas narrativas (i.e. a acção). Construo um argumento de mim como altruísta para, sempre que eu surgir como actor, este argumento se validar. Por outro lado, quando eu me comporto de modo altruísta valido a minha auto-narrativa. Se eu for mesmo muito conhecido pelo meu altruísmo no grupo de pessoas que são para mim significativas (amigos, família), face a qualquer comportamento julgado por estes como egoísta, inevitavelmente irei ouvir expressões do tipo “não te estou a reconhecer”, o que, neste caso concreto, seria uma forma de dizer “por favor, comporta-te adequadamente!”. E se eu não o fizesse, provavelmente, tal comprometeria o equilíbrio das minhas relações interpessoais.
Poderíamos partir de outras auto-definições mas sistematicamente iríamos observar o mesmo processo, pelo menos para aquelas auto-narrativas mais centrais na nossa identidade.
O que acontece quando sustentamos definições de nós próprios, ou auto-narrativas, que são problemáticas nas nossas vidas e nas relações que temos com os outros? Nestas situações invariavelmente uma auto-definição fixa é dominante, difícil de modificar e habitualmente esta excluiu outras auto-narrativas positivas (cf. Hermans & M. Gonçalves, 2000; M. Gonçalves & Norris, 1996). Ou seja, nas nossas auto-definições não problemáticas (e.g., altruísta, trabalhador, simpático), que correspondem a formas de ser cultural e socialmente valorizadas, tipicamente somos muitas coisas ao mesmo tempo – altruístas, trabalhadores, divertidos, etc.. Pelo contrário, nas narrativas disfuncionais tendemos a perceber-nos e a ser percebidos somente como uma única coisa, que frequentemente é desvalorizada pelo meio social – “deprimidos”, “ansiosos”, “agressivos”, “egoístas”, etc..
Este carácter redundante torna a auto-narrativa particularmente monótona, sendo esta monotonia conseguida à custa da exclusão de detalhes que não se integram facilmente na história oficial. Assim, se nos habituamos a olhar para nós próprios como deprimidos, torna-se difícil estar atento, ou dar sentido, aos momentos em que sofremos menos, ou em que, eventualmente, até nos divertimos. Estes momentos não são significados (são ignorados, desvalorizados, ou distorcidos), em favor da leitura dominante de nós enquanto deprimidos. Os outros à nossa volta começam a ajustar-se a esta definição de nós próprios e há pouco espaço para surpresas. Isto acontece um pouco em todos os quadros que poderíamos designar por psicopatológicos.
E, se eu me comportar de um modo feliz, as pessoas podem interrogar-se se será para durar ou se, finalmente, os antidepressivos estão a fazer efeito. Diga-se de passagem que nenhuma destas interpretações é particularmente animadora e que nenhuma escapa à definição inicial que de nós foi feita...
De novo, a auto-narrativa, tal como os olhos, permite ver, mas cega-nos a alternativas. Quando uma auto-narrativa se estabiliza de modo problemático outras auto-narrativas potenciais sofrem um constrangimento que as debilita e as torna invisíveis (de Shazer, 1991; White, 1998).
Curiosamente, é também quando isto acontece que perdemos a noção de que somos realizadores das nossas narrativas e as sentimos como impostas do exterior. Sentimo-nos como actores impotentes para modificar o guião em que nos encontramos envolvidos. Como me dizia há algum tempo uma cliente com que trabalhava: “este não é, definitivamente, o meu filme”.
O que acabamos de sugerir relativamente às narrativas pessoais é também válido para as narrativas relacionais (e.g., uma narrativa de um casamento ou de uma relação amorosa). A história do casal em que um dos parceiros acorda de manhã e quando o outro diz “bom dia”, o primeiro pergunta “já te estás a meter comigo?” é um exemplo anedótico deste tipo de processos. Ou seja, o casal construiu de si uma narrativa em que as interacções sistematicamente ocorrem para “ver quem ganha” e onde o entendimento não tem lugar. Assim, mesmo quando alguém procura ser simpático, como tal não tem lugar na narrativa do casal, ou é ignorado ou a incongruência é interpretada dentro do paradigma anterior. E só quando se consegue sair fora deste enquadramento inicial é que a “distorção” se torna visível.
Um outro exemplo menos anedótico é o da família em que um dos filhos está convencido (não importa exactamente porquê) de que é preterido em relação ao seu irmão. Esta profecia pode auto-cumprir-se se o filho se esforçar convenientemente para verificar a sua veracidade. Só tem mesmo é que desafiar os seus pais e provocar o seu irmão, para ver como reagem os pais, isto é, se de facto tomam o seu partido ou não. Face a este comportamento, os pais, se não forem muito sensíveis ao seu significado, podem começar a discriminá-lo de facto, tratando-o como um espécie de “ovelha negra” da família. Desta forma, a crença de que se partiu vê-se tragicamente confirmada. Watzlawick, Bavelas & Jackson (1967) chamam a isto um jogo sem fim, em que quanto mais uma das partes do sistema familiar age para se defender (os pais protegendo-se do filho desafiador), mais a outra parte se legitima no seu ataque (o filho continua a desafiar, com a crença de que é preterido), criando-se um ciclo vicioso difícil de interromper. A única forma de parar um ciclo desta natureza é uma ou ambas as partes reagir às provocações da outra de modo surpreendente. Por exemplo, uma das partes tornar-se extremamente afectuosa, sem dar qualquer hipótese a que a outra interprete este seu comportamento como uma ironia ou uma provocação. Ou ainda, reagir completamente fora da lógica do afecto/rejeição. Imaginem um pai criativo que sempre que é provocado faz o pino... O que poderia acontecer?
Um exemplo final sobre a agressividade (1). Imaginem que uma criança diz ao pai, quando este a castiga: “Odeio-te, a mãe nunca faria isto”. Se quiserem complicar um pouco este cenário, imaginem ainda que os pais estão divorciados e não se falam. Face a um comportamento desta natureza, o pai pode sentir-se ameaçado pela agressividade do filho e contra-atacar. Aliás, como todos sabemos, a forma mais simples de reagir a uma agressão é através de uma nova agressão.
Se tal acontecer, várias possibilidades futuras, muito pouco agradáveis, poderão seguir-se. Primeiro, se o contra-ataque for muito eficaz é possível que gradualmente a criança se convença de que de facto odeia o pai, o que levará aquele a contra-atacar mais vezes, criando um ciclo vicioso de difícil saída. Segundo, um episódio ocasional transforma-se num padrão, que quanto mais se repete, mais evidente se revela. Terceiro, à medida que o tempo passa, cada elemento desta família vai construindo narrativas familiares mais restritivas, isto é, que admitem pouca variabilidade. Assim, por exemplo, é provável que a mãe se torne uma poderosa aliada do filho contra o pai. Este possivelmente vai sentir que a mãe está a instrumentalizar a criança, sendo que nesta altura todos conseguimos sem grande esforço imaginar o resto deste “filme”...
Agora imaginem que o pai percebe o “odeio-te” como uma recusa do castigo e não como uma rejeição pessoal. Este pai percebe ainda que as crianças não têm que se comportar como adultos e que, portanto, o filho não é uma espécie de amigo com poder igual ao seu. Se o pai conseguir fazer isto, está a invalidar a agressividade contida no “odeio-te”. Dito de outro modo, para alguém odiar é necessário haver dois a fazer este jogo: um que odeia e outro que faz um papel odioso. Para o jogo não ter fim, é preciso que os actores vão trocando de papéis...
Gergen (1996) refere-se a este fenómeno como um processo de suplementação. Assim, nenhuma acção por si só pode ter um significado definido, independente do sentido que lhe é atribuído pelos interlocutores. Esta é também uma ilustração de construção relacional do significado. Se o pai, subtilmente, recusar o significado do “odeio-te”, em breve ele se dissolverá. Se o pai disser, por exemplo, “eu percebo que tu não gostas nada deste castigo” e ignorar o “odeio-te” é provável que este não tenha impacto na relação de ambos.
Podemos, obviamente, complicar este cenário imaginado, antecipando que talvez esta criança seja teimosa e recorra mais vezes a estas estratégias, de formas criativamente diferentes. O que é que o pai pode fazer? Pode continuar a não aceitar esta suplementação do ódio, por exemplo, mostrando-se curioso em relação aos sentimentos do filho. Várias possibilidades podem decorrer daqui. Primeiro, o filho acaba por perceber que o “odeio-te” não vai mesmo funcionar como uma estratégia de poder e que não lhe vai permitir evitar os castigos; segundo, aprende que é possível falar com o pai dos seus sentimentos; terceiro, pode integrar a irritação contra o pai numa relação saudável com este, e por aí adiante.
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