O governo de Portugal aprovou em 6 de março a proposta do segundo protocolo modificativo do acordo ortográfico da língua portuguesa. Mas a transição para a nova grafia só ocorrerá daqui a seis anos por lá, segundo comunicado do Conselho de Ministros português. Ou seja, a Copa do Mundo de Futebol sediada no Brasil deverá, na prática, marcar oficialmente a adoção internacional da nova grafia do português no mundo lusófono.
Até lá, o Brasil adotará a mudança já em 2010, quando os didáticos inscritos no Programa Nacional do Livro Didático terão de estar em conformidade com o novo acordo ortográfico. Agora, começam as negociações com editoras e instituições que não estão nesse programa, além da burocracia jurídica, que o MEC prevê tomar mais cinco anos. Na prática, a transição por aqui deve durar também até a Copa de 2014.
Segundo a agência internacional de notícias Lusa, a decisão portuguesa ainda está sujeita à apreciação do parlamento português e do presidente Cavaco Silva. A ratificação seria de praxe no caso de acordos internacionais.
Em novembro, a ministra portuguesa da Cultura, Isabel Pires de Lima, anunciou que Portugal pediria moratória de dez anos para a entrada em vigor do acordo. A reviravolta ocorreu há três semanas, com o novo ministro da pasta. José António Pinto Ribeiro defendeu que deve ser o mercado - e não uma moratória - quem deve resolver a aplicação do acordo em território português.
O MEC daqui admitiu que, enquanto Portugal não assinasse o acordo, dificilmente o Brasil daria início à reforma, prevista inicialmente para 2009. O país não havia demonstrado interesse de adotar a medida sem a companhia de Portugal.
Experiência ortográfica
A hesitação portuguesa é compreensível e pode ser verificada empiricamente. Quando viajo a negócio ou a passeio, saio dos sebos de diferentes cidades, muitas vezes, com preciosidades. Numa tarde de pechinchas, comprei Tá no Brasil: Anecdotas (com c) Colhidas, Escolhidas, Catadas e Adoptadas (com p) - Variedades e Curiosidades (Companhia Editora Nacional, São Paulo, 1935), de Cornélio Pires. Outra boa aquisição foi Novellas de Minha Terra, de autoria de Camillo Castello Branco (dois eles, mesmo!).
Ao ler as obras, fiquei surpreso com a grafia, em comparação com o sistema vigente hoje. Vejamos a pequena anecdota "Explicação", de Pires (sublinhei as grafias que me surpreenderam):
"Uma revista abriu um concurso interessante em que pedia explicação: 'Por que os tigres são listados'. Dentre milhares das respostas recebeu a seguinte:
O tigre é listado para comodidade dos directores de circos. Se um tigre fugir será mais facil de ser encontrado, o que não se daria se não fossem as listas. Elle não irá longe sem que alguem perceba, graças ás listas. Todos verão que não se trata de um cachorro, nem de um cavallo e então procurarão o director do circo e lhe mostrarão que, por sorte, não perdeu seu tigre" (p. 81).
Onde estão os acentos?
No texto, os vocábulos "facil" e "alguem" não levam acento agudo. A letra c em "director" não me surpreendeu, pois nos romances de José Saramago, hoje em dia, a letra está presente. Com respeito à presença de consoantes duplas em "elle" e "cavallo", sei que alguns idiomas as mantêm e outros, não. O que me surpreendeu em Cornélio Pires é a orientação do sinal de crase. Em vez de acento grave, temos um agudo. Qual foi o critério para "o pulo" de orientação dessa marca diacrítica? Faz diferença com respeito à crase o tipo de acento?
Em Castello Branco, a palavra "irônico" (p. 64) não tem sinal diacrítico - o acento agudo (numa reforma subseqüente em Portugal, o vocábulo recebeu a marca, ao passo que no Brasil foi introduzido anos depois o circunflexo, devido à diferença de pronúncia nos países). O substantivo "lérias" não apresenta agudo na época de Castello Branco: "Conte-me lerias, Sr. Abbade - retorquiu outro com sarcastica brutalidade" (p. 65). Mesmo sem acento, acredito que seria difícil um dado usuário confundir o substantivo com o verbo "ler" na segunda pessoa do pretérito (leria, lerias, leria, leríamos).
Com respeito à ausência de acentos, alguns têm a impressão de que Monteiro Lobato detestava acentos e por este motivo ele os evitava. O autor de O Picapau Amarelo (sem hífen à época) simplesmente obedecia ao código em vigor em 1944.
Insegurança
Graças a uma visita ao sebo, fiz uma série de perguntas ortográficas. Será que a falta de acento em "sarcástico", "fácil" e "leria" no tempo de Castello Branco e Cornélio Pires dificultava a pronúncia por parte de crianças e jovens na hora de lerem seus textos? O italiano tem palavras equivalentes ao português, como "política", "magnífico" e "propósito", todas desprovidas de acento. Sua falta nunca impediu que as crianças de lá aprendessem a falar e escrever italiano. Mas o que mais intriga é:
como os professores daqueles tempos conseguiram fazer com que seus pupilos aprendessem as regras da nova reforma e desaprendessem o sistema antigo?
As diferentes reformas ao longo do tempo contribuíram para a dança dos acentos e das letras. O acento, cujo "pé" apontava para esquerda, de repente "virou" à direita. O substantivo "amizade" é grafado com z, mas, na época de Castello Branco, era com s: "amisade" (p. 65).
Toda reforma ortográfica provoca insegurança em quem repentinamente tem de lidar com outro conjunto de regras. Era comum uma pessoa nascida em 1910, por exemplo, alfabetizada quando criança numa ortografia, quando na vigência da reforma seguinte, ainda escrever "possue" e "quasi" e ter dúvida se o vocábulo "ontem" era ou não escrito "hontem" e se "jeito" era escrito "geito".
O risco pedagógico das reformas é que sempre deixam "seqüelas". Porque nem todos os usuários se esquecem completamente do sistema antigo e nem sempre internalizam integralmente o novo. O resultado é a existência de um número de usuários inseguros.
Toda reforma ortográfica, no entanto, é a evidência de que o que é visto como "correto" varia ao longo da passagem do tempo. Toda reforma tem sua parcela de arbitrariedade porque existem várias maneiras de grafar os diferentes vocábulos para representar a pronúncia deles.
Seqüelas
Na verdade, não há nada "sagrado" nas grafias. São meras convenções. Compare as diferenças ortográfico-fonológicas entre o português e o italiano: eccezionale / "excepcional", ebreo / "hebreu", essatamente / "exatamente", sigaro / "cigarro". O que é considerado "correto" varia de acordo com a época. Num dado momento (Guilherme de Almeida, Encantamento. Livraria do Globo, 1925), várias palavras do português foram soletradas assim: "céo", "véo", "vae", "taes", "paizagens" (céu, véu, vai, tais, paisagens).
Subjacente à proposta de reforma ortográfica, há a vontade ou desejo, nem sempre consciente, de tornar a língua(gem) homogênea. A dificuldade é que a própria linguagem e os diferentes idiomas são "rebeldes" e resistem à uniformização. A rebeldia da linguagem se vê na existência de pronúncias alternativas e de duas grafias que coexistem pacificamente.
José Alves Fernandes, no excelente Dicionário de Formas e Construções Opcionais (Universidade Federal de Ceará, 2000), registra uma variedade de formas opcionais no português: "abdome" e "abdômen" (aspecto gráfico), "boemia" e "boêmia" (aspecto prosódico), "cuité" (substantivo masculino) e "cuité" (substantivo feminino), opcional quanto ao gênero e singular ou plural (palavras chave ou palavras-chave).
Computador
Alves Fernandes acerta ao transcrever no prefácio ao Dicionário as palavras de Celso Cunha e Luis F. Lindley Cintra, em Nova Gramática do Português Contemporâneo (Nova Fronteira, 1984):
"Se uma língua pode abarcar vários sistemas, ou seja, as formas ideais de sua realização, a sua dinamicidade, o seu modo de fazer-se, pode também admitir várias normas, que representam modelos, escolhas que se consagraram dentro das possibilidades de realizações de um sistema lingüístico".
Acredito que, nestes tempos pós-modernos, poucos fazem uso de lápis e caneta. Graças aos simpáticos ícones "cortar", "copiar" e "colar" dos processadores de palavras, o ato de redigir textos ao computador tornou mais fácil a redação de textos. Quanto à grafia, todos podemos errar. Há gente que titubeia ao soletrar "exceção". Soletrar bem uma língua não é marca de inteligência, mas de boa memória visual. Com o advento do computador e o corretor ortográfico, não há desculpas para cochilos com as letras e os acentos.
Penso que não precisaríamos de reforma ortográfica neste momento. O computador permite usar a ortografia do inglês britânico ou do australiano e do português europeu ou brasileiro. Temos condições de respeitar as diferenças lingüísticas e culturais de outros povos. O computador nos libera de grande preocupação com a mecânica das línguas (os hífens, os acentos, as letras e as marcas de pontuação) para pensar na construção de nossas idéias e no planejamento estilístico de nossos textos. Mas, o que está feito, está feito.
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