debate sobre o
ACORDO ORTOGRÁFICO
da Língua Portuguesa — 1990
(Nota do TriploV em Abril de 2008: Ainda não foi aprovado)

CARLOS M. ACABADO

Por princípio, sou contra a sobrevalorização e o uso (mesmo apenas remotamente...) excessivo da 'normalização' e da 'normatividade'.

É uma questão pessoal mas não o é arbitrariamente: é, sobretudo, uma posição lógica, ideo-lógica, e até abertamente política.

Em linguística, como nas restantes áreas do pensar e do (com) viver.

Claro que uma língua é básica (embora, em caso algum, primariamente...) um instrumento de (suposta?) comunicação - e que, por isso, as respectivas "chaves" devem sempre (poder?) constituir um património estavelmente comum (uma... 'comum-idade') genericamente reconhecível de todos os pontos e lugares desse mesmo "Comum", se assim me posso exprimir. 

Entendo, porém, que a época das demasiado rígidas formas de 'centralização' e 'normatividade' linguística (correspondente esta última, nessa forma ou com esse estatuto, a um período cultu(r)al e especificamente político abstractamente definível pela persistência duradoura de um "estado sólido" ou mesmo de uma "coagulação epistemológica"---absolutos e totais senão mesmo totalitários---generalizados); pessoalmente entendo, dizia, que a rígida 'normatividade' não se compagina com o tempo "genericamente demomórfico" ("democracy" "is a word I rarely use without thinking", como dizia o Donovan a propósito da palavra "liberdade"...) que vivemos. 

Ora, é a partir deste princípio básico que abordo, aqui como em todos os lugares e casos, a "questão" do 'Acordo'.

Não propriamente a do Acordo-em-si mas a da questão teórica prévia de um "acordo" nesta matéria.

A ideia de que a comunicação melhora drasticamente se começarmos por considerar para um 'projecto comum de falar' a uniformização de um conjunto de formas puramente exteriorese inorgânicas, i.e. não-estruturais, do aparelho comunicacional em si parece-me, devo confessar, uma ideia falível, inútil e des/estruturalmente muito redutora.

Os universos linguísticos configuram ecossistemas autónomos que "respondem" directamente perante o respectivo enquadramento físico e mental, objectivo/subjectivo, próprio e é exactamente essa interactividade contínua com o meio que determina o perfil natural e necessário (permitam-me o neologismo: "necessitário") de qualquer "boa" "evolução" mental e, obviamente, linguística.

Fixar na periferia do essencial (e à periferia do essencial!) da "idiomaticidade" as bases da "correcção" e da "in-correcção", ou seja, do "Bem" e do "Mal" em linguística parece-me um mau princípio que tem "tudo a ver" com aquela ideia básica da língua como simples forma ou "formaticidade funcionante" (e, pior ainda: como entidade autonomamente determinante!) e não como parte integrante e essencial de um pensar (que é aquilo que, a meu ver, ela deve, em todos os casos, permanecer). 

Pessoalmente, sempre defendi, por exemplo, que, ao lado (ou por cima: acima) de um sistema meramente formal ou insubstantivamente 'técnico' de "correcções" e "in-correcções" da língua, deve considerar-se, sim, na base de tudo, a prevalência de um outro, estrutural, de "correcção funcional", determinado pela necessidade de "significar o real" assim como as nossas imagens comuns dele---um critério e uma atitude que ignoram a tal normatividade que comecei por pôr em causa. 

Por muito heterodoxo que possa parecer à primeira vista (para mais em alguém que fez e faz do ensino de algumas línguas vivas, entre as quais a sua própria---aquela que está, de momento, a ser... "acordada") a verdade parece-me, com efeito, ser que, a partir de uma base operante ou operativa estável dada (que já está, há muito, aliás, encontrada: é o português ou são os diversos portugueses, seja lá o que for que isso signifique...) a noção de "evolução" deve ser sempre basicamente abordada daquela perspectiva "funcional" que foi, por exemplo, "politicamente roubada" durante décadas ao idioma basco pelo franquismo assim como, pelo salazarismo, ao português, através do recurso a uma concepção absurdamente "moral" do uso e da própria... propriedade das respectivas línguas). 

Tomando como referência básica o português ou portugueses já existentes (eu diria: funcionalmente 'consagrados') está "certo" (e/ou é "Bom") aquilo que contribuir para a extensão ("furthering") e para o enriquecimento da capacidadede a língua não se significar mas de ela significar 'tout court'.

Aquilo que faz, em termos básicos, do português, genericamente considerado, uma idiomaticidade globalmente única e una não são as ferramentas incidentais avulsas, i.e. a "alfaia instrumental" (as palavras enquanto formas passivas e inertes, anteriores e exteriores ao respectivo funcionamento efectivo no contexto de um todo que por completo as transcende e lhes confere o sopro da 'vida conceptual e linguística') mas o modo como a própria língua respira autonomamente por elas, os paradigmas de expressivicidade que com elas se vão formando: as "figuras", as metáforas, as construções, o sistema. 

Ora, essas não podem ser "acordadas" senão na relação com o meio.

Aí, não há "acordo" que opere---a menos que, por "acordo" se considere (quanto mais não seja de forma implícita...) uma prisão (talvez domiciliária...) para a língua mas, sobretudo, para o pensamento que com ela (nesse caso limite, não) se pode com ela fazer. 

"Normalizar" a idiomaticidade a partir da forma avulsa é como tentar "endireitar" a sombra da vara famosa do não menos célebre lugar-comum. 

É, como titulava um Autor clássico alemão, "escrever na água" 

Porque em "inglês" se escreve "colour" e em... "americano" "color", há crise no universo linguístico anglo-saxónico? 

Porque "realize" e "energize" também podem escrever-se "realise" e "energise", morre alguém linguisticamente por isso? 

Rompe-se a unidade do universo linguístico e/ou cultu(r)al anglo-saxónico?... 

Eu iria mesmo ao ponto de recusar por completo que haja "certo" e "errado" em língua e em linguística.

Que em qualquer delas exista um verdadeiro "certo" e um estrutural "errado".

Há sim, um "funcionante" e um "não-funcionante". Há, sim, "paradigmas de sucesso representativo" ou "representacional" e paradigmas ('naturalmente caducáveis') de in-sucesso.

São, aliás, aqueles, os "de sucesso", que vão, nas línguas como na Natureza, fixando autonóma e estruturalmente às diversas línguas a ilusão operativa, ou a 'ficção funcionante', de "certo" e "errado". 

Ou seja: a transcendência em linguística pura e simplesmente não existe e não pode, por conseguinte, possuir (nem no plano técnico nem, a montante, no epistemológico) qualquer modo de expressão determinacional, directa ou indirecta.

Ah e as línguas também não "evoluem": "voluem".

Sofrem "mutações".

Mas essas "mutações", insisto, são naturalmente determinadas e ditadas, volto a dizer, pela necessidade ecológica intrínseca, não por imperativos de ordem... "moral" exógena, digamos assim. 

Durante décadas, a linguística portuguesa (Cândido de Figueiredo será o paradigma "simbólico" ou "simbológico" máximo do processo) foi um "arianismo idiomático disfarçado" que se auto-mutilou e auto-sacrificou consustentemente a um "ideal de pureza" que a castrou e esterilizou. Que bloqueou a bio-diversidade linguística e, mais grave ainda, conceptiva ou conceptual. 

Conceptuante.

Cognitiva.

Procurava-se, era evidente, que (também!) a "propriedade da língua" permanecesse fora do alcance do cidadão (ou do súbdito?...) médio. 

Visava-se que este a "usasse" mas sempre sob a tutela rígida do poder disfarçado de... linguista. 

Ora, a língua (como Laing e Reich diziam e faziam para a Psiquiatria) deve ser feita e des-feita por todos. 

Sem normas?

Não, claro. Mas com aquelas que o próprio uso consciente e "educado" de si determina de modo natural e necessário.

É um processo estrutural/estruturante completamente distinto, em si mesmo, do "acordar politicamente" "segmentos inertes da própria idiomaticidade como tal".

Enquanto professor, sempre parti da ideia de que é essencial conhecer as regras mas para des-construí-las autonomamente como parte integrante do processo intelectual nobre global de continuar a tarefa cultu(r)al de construí-las a partir da própria experiência ou experienciaçãodo real. 

"Igualizar" meia dúzia de "fórmulas" é apenas uma ínfima e, no fundo, in-significante parte do processo.

"Reforme-se" ou "acorde-se!" a língua sim mas a partir da sua essência, não da sua pura ou impura circunstãncia formal. 

Nesta pode, ocasionalmente, "dar-se um jeito" no sentido da aproximação incidental.

Não virá daí mal ao mundo, suponho.

Mas não se espere em boa verdade que venha "salvação", "non plus"... 

I — DO ALFABETO E DOS NOMES PRÓPRIOS ESTRANGEIROS E SEUS DERIVADOS

II — DO H INICIAL E FINAL

III — DA HOMOFONIA DE CERTOS GRAFEMAS CONSONÂNTICOS

IV — DAS SEQUÊNCIAS CONSONÂNTICAS

V — DAS VOGAIS ÁTONAS

VI — DAS VOGAIS NASAIS

VII — DOS DITONGOS

VIII — DA ACENTUAÇÃO GRÁFICA DAS PALAVRAS OXÍTONAS

IX — DA ACENTUAÇÃO GRÁFICA DAS PALAVRAS PAROXÍTONAS

X — DA ACENTUAÇÃO DAS VOGAIS TÓNICAS/TÔNICAS GRAFADAS — I E U DAS PALAVRAS OXÍTONAS E PAROXÍTONAS

XI — DA ACENTUAÇÃO GRÁFICA DAS PALAVRAS PROPAROXÍTONAS

XII — DO EMPREGO DO ACENTO GRAVE

XIII — DA SUPRESSÃO DOS ACENTOS EM PALAVRAS DERIVADAS

XIV — DO TREMA

XV — DO HÍFEN EM COMPOSTOS, LOCUÇÕES E ENCADEAMENTOS VOCABULARES

XVI — DO HÍFEN NAS FORMAÇÕES POR PREFIXAÇÃO, RECOMPOSIÇÃO E SUFIXAÇÃO

XVII — DO HÍFEN NA ÊNCLISE, NA TMESE E COM O VERBO HAVER

XVIII — DO APÓSTROFO

XIX — DAS MINÚSCULAS E MAIÚSCULAS

XX — DA DIVISÃO SILÁBICA

XXI — DAS ASSINATURAS E FIRMA

PROTOCOLO MODIFICATIVO AO ACORDO ORTOGRÁFICO DA LÍNGUA PORTUGUESA