AS MUSAS CEGAS Herberto Helder 29-11-2004 www.triplov.org |
AS MUSAS CEGAS VIII |
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Ignoro quem dorme, a minha boca ressoa. Às vezes na noite ainda jovem, mas que principia a engolfar-se no seu doce hermetismo - tantas vezes penso na chuva, e nos corpos, e nas pontes onde se encontra alguém com as cegas mãos escorrendo para o fundo o sangue de uma imensa inspiração. Eu sei: despedir-se dos meses é um ofício inquieto. As luzes, as mesas, as armas antigas, os jardins debruçados nas violas paradas. Não sei o que há tão veloz e tão firme na base de um homem. Às vezes vejo que é uma invencível doçura, um espanto colorido em redor de uma casa, uma raiva generosa nas mãos iluminadas. Mas no fundo, no fundo, é a boca desmanchada que sangra devagar. Ignoro quem dorme, é um ofício novo e louco, uma tarefa perene do coração sobre quanto se ignora. Minha boca ressoa. Os próprios meses ressoam com espelhos ardentes, como telhados, cúpulas, livros, como objectos ardentes. Sobre um rosto eu diria: é um rosto? Sobre uma vida eu perguntaria se era a força de uma vida. Porque os ossos e as veias vão de corpo para corpo, e despedir-se de tudo é um ofício inquieto. Tudo isto é uma musa, um poder, uma pungente sabedoria. As rosas que há nas palavras, as palavras que estão no alto como fungos luminosos, as palavras que gravitam em baixo no instável momento que avança e recua ao pé da eternidade - as mãos rodeando uma lâmpada, essas mãos docemente cobertas de sangue - tudo isso disposto para a inquietação de um ofício. Eu sei: as vigas da cabeça estremecem um pouco. Partem-se, aqui e ali, alguns arcos secundários. Uma vida pode tremer do princípio ao fim. É instantâneo, eterno. Mas é o homem que recebe a inspiração violenta. Ignore quem dorme, a minha boca está no fundo, móvel, coberta de sangue, a minha boca ressoa como as cavernas de um barco, a minha boca da minha vida é um ofício. O meu ofício de despedir-me um pouco engolfado na loucura. A minha tarefa inquieta de pôr a vida na sua oculta loucura. Tudo isto canta na galeria dos meses ornados de delgados mastros acesos. E despedir-se dia a dia desta torrente de pequenas imagens alucinadas e mansas é um mester ainda jovem, algo que se aprende lentamente com as mãos e a garganta e a testa e o marulho das águas que correm profundamente em lugares inacessíveis, sem nomes nem janelas por onde surja a cabeça coroada de violinos. É um violento ofício, e no fundo desse ofício violento e puro, a boca está coberta de um perturbado sangue masculino. |
HERBERTO HELDER in OU O POEMA CONTÍNUO, Setembro de 2004, Assírio & Alvim. |