AS MUSAS CEGAS Herberto Helder 29-11-2004 www.triplov.org |
AS MUSAS CEGAS VII |
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Bate-me à porta, em mim, primeiro devagar. Sempre devagar, desde o começo, mas ressoando depois, ressoando violentamente pelos corredores e paredes e pátios desta própria casa que eu sou. Que eu serei até não sei quando. É uma doce pancada à porta, alguma coisa que desfaz e refaz um homem. Uma pancada breve, breve - e eu estremeço como um archote. Eu diria que cantam, depois de baterem, que a noite se move um pouco para a frente, para a eternidade. Eu diria que sangra um ponto secreto do meu corpo, e a noite estala imperceptivelmente ou se queima como uma face. Escuta: que a noite vagarosamente se queima como a minha face.
Essa criança tem boca, há tantas finas raízes que sobem do meu sangue. Um novo instrumento, uma taça situou-se na terra, e há tantas finas raízes que sobem do meu sangue. E uma candeia, uma flor, uma pequena lira, podem erguer-se de um rio de sangue, sobre o mundo - um novo instrumento rodeado de campânulas inclinadas, por ligeiras pedras húmidas, pelos animais que movem no seu calmo halo de fogo as grandes cabeças sonhadoras.
Essa criança dorme sobre os meus lagos de treva. Pensei algumas palavras para oferecer-lhe. Esqueço-me tantas vezes dos mistérios dessa porta. Porque então é muito estreita com os seus espelhos detrás, com o vestíbulo frio. Mas é tão belo uma criança ainda enevoada, uma criança que ascende com uma grande música desta rede de ossos, deste espinho de sexo, da confusa pungência, escuta: da pungente confusão de um homem restrito com a sua vida tão lenta.
Essa criança é uma coisa que está nos meus dedos; às vezes debruço-me sobre as cisternas, e as vertigens, e as virilhas em chama. É a minha vida. Mas essa criança é tão brusca, tão brusca, ela destrói e aumenta o meu coração. No outono eu olhava as águas lentas, ou as pistas deixadas na neve de fevereiro, ou a cor feroz, ou a arcada do céu com um silêncio completo. Misturava-se o vinho dentro de mim, misturava-se a ciência da minha carne atónita. Escuta: cada vez a minha vida é mais hermética. Essa criança tem os pés na minha boca dolorosa.
Se ela um dia adormecer com cerejas junto à respiração pequena, e sonhar estes imensos arcos que os séculos vão colocando sob os astros - e se de tudo a sua cabeça estremecer como numa loucura, com altos picos em volta, com enormes faróis acendendo e apagando - escuta: se essa criança imaginar, e todas as cordas se juntarem tensamente para que ela invente o seu próprio rio sem nome - será ainda que do meu sangue se erguem finas raízes, e o tenebroso tumulto das minhas sombras está no fundo, no fundo da sua ingénua vida, da sua terrível vida sem remédio. Se ela morrer, escuta, será que a minha boca diz lá em baixo essas majestosas e violentas palavras dos poemas.
Essa criança que aperta as veias que iluminam a minha garganta. Ela dorme. Escuta: a sua vida estala como uma brasa, a sua vida deslumbrante estala e aumenta. Se um dia os archotes incendiarem essa boca, e as faúlhas cercarem o silêncio tremendo dessa pequena boca, escuta:
a minha boca, lá em baixo, está coberta de fogo. |