AS MUSAS CEGAS
Herberto Helder
29-11-2004
www.triplov.org

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AS MUSAS CEGAS VI
 
É preciso falar baixo no sítio da primavera, junto

à terra nocturna. Junto à terra transfigurada.

Tudo ouve as minhas palavras talvez irremediáveis..

Infatigável perfume se acrescenta nos jacintos, fogo

sem fim circunda suas raízes leves.

É preciso não acordar do seu ofício a luz que inclina

os meus espinhos frios, a lua que inclina

meu sangue ligado e o sangue da terra nocturna. 

 

Agora a primavera trabalha nas galerias mais antigas,

bate os seus martelos contra um milhão de estrelas.

É uma coisa estupenda a primavera que trabalha

nas caveiras dos cavalos enterrados.

E os cavalos ressuscitam pela noite adiante.

Inspiro-me na primavera com suas grutas de água

atenta, e amo a loucura -

a cabeça gelada sobre a corrente pura do terror. 

 

Tenho medo de erguer a voz mais alto

que o meu coração, onde uma candeia

concentra um grande silêncio.

A primavera é algo prodigioso para o meu desbarato.

Que a tristeza me ajude, que me ajudem

os dentes da minha boca, os dedos das minhas mãos,

todos os mortos, todos os que amam

entre sangue no mundo, entre as águas das noites eternas. 

 

Sinto os ossos ascenderem às cobras da cabeça -

e a obra está nas mãos.

Terra, terra preenchida. Enquanto os outros dormem,

fundo-me no verbo interior da primavera

como o vermelho se funde na flor futura.

Tu cantavas, sangue, a torrente translúcida da morte.

Cantavas o que já se não quebra com o uso

das vozes. Porque tu eras a minha

água salgada.

 

Fecho os olhos para ver como as acácias se iluminam

e a rutilação ascende pelas veias.

Tomo entre meus dedos a soturna amplidão dos mortos.

Primavera, como cresces.

 

Desespero ou alegria, como correm

nos membros reaparecidos.

Dizer devagar na humidade da carne, evocar

tuas colinas de sal, mistério.

Tudo em volta da primavera e da noite

com uma porta no coração para passar

num tremendo silêncio. 

 

Ressuscitar uma vez com a cara extrema

junto a líquenes inocentes.

Entre os meses saber de um só que pede

a mudez aterradora.

A primavera cresce num núcleo de ideias, as cabras

evaporam-se, reaparecem em espírito

mastigando giestas. Primavera é uma palavra

numa língua demasiado estrangeira.

Uma coisa enorme, sem música. 

 

Falo tão devagar que mal distingo

a noite sobre a terra

da minha garganta onde os animais passam

lentamente inspirados.

Só encosto a testa ao oculto fogo dos nomes,

e o sangue alimenta a loucura

devagar, devagar - como quem ressuscita.