FERNANDO PESSOA
Poesias Ocultistas
Organização, selecção e apresentação de João Alves das Neves. 2ª ed., São Paulo, Editora Aquariana, 1996 (extractos)

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A "Besta 666" em Lisboa: João Alves das Neves

3 POEMAS OCULTISTAS:

Meu pensamento é um rio subterrâneo
Ela ia, tranquila pastorinha
Hino a Pã, de Mestre Therion (Aleister Crowley)

A "Besta 666" em Lisboa
João Alves das Neves

Quando Fernando Pessoa publicou a tradução do "Hino a Pã", de Aleister Crowley, houve quem pensasse tratar-se de mais um heterônimo. É claro que não era. A personalidade foi ortônima e vários outros a conheceram e biografaram, cada um a seu modo, como fez Somerset Maugham, na novela O Mágico.

Cremos, porém, que o primeiro biógrafo a abordar as relações do "mágico" inglês com o poeta português foi João Gaspar Simões, que conta haver sido por causa da astrologia que Fernando Pessoa veio a conhecer "um estranho homem, verdadeiro Cagliostro dos tempos modernos, em cuja complexidade e desenvoltura se acusam os traços típicos desse misto de charlatão e de inspirado que o nosso tímido mistificador debalde procurou ser." Ao ler o horóscopo de Crowley, notou Fernando Pessoa algumas falhas e apressou-se a comunicá-las: "Tempos depois, não sem surpresa (...), recebe, de Londres, uma carta de Crowley, onde o célebre mago dava inteira razão ao astrólogo português seu confrade. Estabelece-se correspondência entre os dois; Pessoa envia a Crowley os seus English Poems, e um belo dia o mago anuncia ao seu émulo perdido nos confins ocidentais da Europa que virá a Portugal, propositadamente, para conhecer, em carne e osso, o prodígio astrológico que ele é."

Segundo o biógrafo, Fernando Pessoa ficou muito preocupado com a não esperada visita "daquele feiticeiro - cuja espantosa biografia lhe fora dado a conhecer lendo a história das suas estranhas aventuras na obra onde discernira o erro de interpretação astrológica." Crowley teria 55 anos quando, em 1930, chegou a Lisboa, onde desembarcou do navio "Alcântara" no dia 2 de Setembro: "Em terra, Fernando Pessoa, transido e tímido, vê avançar para ele um homem alto, espadaúdo, envolto numa capa negra, cujos olhos, ao mesmo tempo maliciosos e satânicos, o fitam repreensivamente, enquanto exclama: 'Então que ideia foi essa de me mandar um nevoeiro lá para cima? (O navio atrasara a partida de Vigo cerca de 24 horas, em virtude de um espesso nevoeiro que se abatera sobre o litoral português).

Semanas depois, o escritor português aceita entrar "numa cabala em que Crowley dá largas ao seu cabotinismo": o inglês sai do Hotel da Europa, em Lisboa, a 24 de Outubro, juntamente com a jovem alemã Anni L. Jaeger, sem explicações: "Certa cigarreira depositada sobre uma carta que um jornalista, "acidentalmente" de passagem, em Cascais, pela estrada da Boca do Inferno, encontra no Mata-Cães, denuncia o misterioso desaparecimento do famoso astrólogo. Crime ou suicídio?

A notícia chega aos jornais lisboetas: "O jornalista Augusto Ferreira Gomes, confrade ocultista que no Notícias Ilustrado iria contar, sob a forma de reportagem, o desaparecimento sensacional, pertence ao complot."

(A.F. Gomes foi também escritor e um dos seus livros de poemas, V Império, teve prefácio de Fernando Pessoa). O poeta foi chamado à polícia para depor e narrou em depoimento sobre "o mistério" que o Notícias Ilustrado publicou em 5 de Outubro de 1930: "Em 18 de Setembro recebi uma carta de Crowley, escrita do Hotel Miramar, no Estoril. Dizia-me que Miss Jaeger tivera, na noite de 16, um violento ataque histérico, que havia sobressaltado o Hotel Paris inteiro; que em virtude disso tinha vindo para o Hotel Miramar, mas que na manhã de 17 Miss Jaeger tinha desaparecido. (...) Eu aceitaria de bom grado a indicação da Polícia Internacional, aceitaria, de menos bom grado, a hipótese de que se tratasse de uma mistificação de Crowley, se não fosse uma circunstância, contida na carta achada na Boca do Inferno, e que me fez reverter, em certo modo, a minha impressão primeira. A carta, traduzida literalmente, diz o seguinte: "L.G.P.,/ Ano 14. Sol em Balança./ Não posso viver sem ti. 'A outra Boca do Inferno' (sic) apanhar-me-á - não será tão quente como a tua./ Hisos/ Tu Li Yu."

"(...) Sobre o fato de Crowley assinar a carta, não com o próprio nome, nem com nenhum dos seus nomes ocultos ou maçónicos, mas com o nome representativo do que considera a sua primeira encarnação representativa, ou seja o primeiro 'ser essencial', também haveria algumas observações a fazer, e de algum modo viriam para o caso. O que aí está, porém, já basta."

O mistério da Boca do Inferno nunca foi desvendado pela Polícia Internacional. Para onde foi Aleister Crowley, não se sabe, mas apenas de onde veio e como é que chegou a Lisboa: nascido em Leamington no dia 12 de Outubro de 1875, o seu nome verdadeiro era Edward Alexander Crowley. O pai, Edward Crowley, fez fortuna como cervejeiro e, ao aposentar-se, dedicou-se à teosofia. Durante a Guerra de 1914/18, viveu nos Estados Unidos, onde prosseguiu seus programas ocultistas, vindo a escrever o Hino a Pã (que Fernando Pessoa traduziu para a Língua Portuguesa), mas morou também na Itália e noutros países. Publicou vários livros, incluindo poemas, além de um Diário do viciado em drogas e As Confissões de Aleister Crowley: o seu diabolismo explicava-o como "revolta contra a religião da infância". Associava o sexo ao pecado: "A minha vida sexual era muito intensa. (...) O amor era um desafio ao cristianismo. Era degradação e condenação." Fundou a Ordem da Aurora Dourada, cujos participantes foram assim definidos pelo mágico: "Eles não eram protagonistas na luta espiritual contra as restrições, contra os opressores da alma humana, os blasfemadores que negavam a supremacia da vontade do homem."

Esclarece Crowley que sua mãe admitiu que ele, por suas inclinações para a magia, pois nunca hesitava na realização até de violências e experiências indescritíveis, era a Besta do Apocalipse, cujo número é 666. "Mestre Therion" foi outro título que o mágico inglês ostentou. Denunciado pela imprensa, Aleister Crowley declarou num tribunal, ao ser interrogado, a propósito dos vários nomes que usava:

"— A Besta 666 é uma designação que significa apenas 'luz do Sol'. Assim, os senhores podem chamar-me 'Pequena Luz Solar'."

O mágico que amedrontou Fernando Pessoa morreu em 1/12/1947 em Brighton: enquanto o cremavam, alguns dos seus discípulos cantaram o Hino a Pã.

Em Janeiro de 1931, o poeta escrevia ao seu futuro biógrafo, João Gaspar Simões, dizendo ironicamente: "O Crowley, que, depois de se suicidar, passou a residir na Alemanha, escreveu-me há dias e perguntou-me pela publicação da tradução. Tinha-lhe eu escrito, aqui há meses, que ela viria publicada na Presença em breve. V. é que me fez entalar-me com essa declaração. Veja lá, agora: não me deixe mal com o Mago! Mas, a sério, se há qualquer razão para aquilo não ser publicado, v. diga francamente."

O Hino a Pã de Mestre Therion (Aleister Crowley) foi realmente divulgado na Presença (n° 33, de Julho/Out. 1933), revista que se publicou em Coimbra, sob a direção de José Régio, Gaspar Simões e outros e que alguns críticos consideraram a mais representativa do "2° modernismo" português.

Foi com base nas aventuras, nem sempre agradáveis de Aleister Crowley, que Somerset Maugham publicou em 1908 The Magician (O Mágico foi editado em 1962 pela editora Globo, de Porto Alegre, com o subtítulo de "Os horrores da magia negra medieval revivem nesta novela do século XX"). O escritor inglês afirma ter conhecido o seu compatriota em Paris. Fazia e publicava versos em edições luxuosas que ele próprio custeava: "Quando o conheci, andava metido com o satanismo, a magia e o ocultismo. Isso era então uma espécie de moda em Paris, nascida, sem dúvida, do interesse que ainda despertava o livro de Huysmans, Là-Bas."

Adianta Somerset Maugham que escreveu a novela em 1907 e não se lembrava como surgira a ideia de fazer de Aleister o romanceado Oliver: "Embora, como disse, Aleister Crowley tenha servido de modelo para Oliver Haddo, este não é em absoluto um retraio dele. (...) Crowley, no entanto, reconheceu-se na criatura de minha invenção - pois não era outra coisa - e escreveu uma crítica da novela que ocupou uma página inteira da revista Vanity Fair, assinando-se Oliver Haddo"...

(Juqueí, 30 de abril de 1995)

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