OFÍCIO DAS TREVAS /Sexta cena Maria Estela Guedes 03-12-2004 www.triplov.org |
CENA 6 |
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Preparativos para a ceia.Sylvia tira um pão do baú, Yoruba gira pela cena,tocando uma sineta.Também há tâmaras e outros frutos exóticos. |
Tenebrário - Porque dizes isso, ó passarita? Sylvia - Saber das borrachas passadas por cima. As memórias de Feijó foram atribuídas a Pusich, os desenhos de Donati foram publicados como sendo dum garoto qualquer, mal saído dos cueiros da Casa do Risco, o António José Martins, ou José António, tanto faz. Aliás, nem nunca vi escrito o apelido do rapaz, este Martins. É como se fosse o Leonardo, o Zeca Afonso, o Luís Vaz... Lucy (parte o pão no altar) - Mas o Donati, da viagem filosófica a Angola, não morreu mal desembarcou em Luanda? Sylvia - Sim, mas eles não foram logo para Luanda, eles foram para Benguela, e ali ficaram dezanove dias. Nesses dezanove dias, o Ângelo Donati, que devia ser parente daquele Vitaliano Donati que também viajou pelo Levante, e morreu num naufrágio, em pleno Mar Vermelho... O Vitaliano Donati, o autor da História Natural do Adriático... Bem, este Donati era conhecido de Lineu e Vandelli, eles falaram do seu trabalho e morte prematura... Da Arábia, ainda mandou sementes a Lineu. Lucy - O Donati, agora me lembro! Tens razão, oh! Seus companheiros, lá para os lados de Meca e de Medina, foram o Roque e o Forskhal. O João Roque, do Real Jardim Botânico da Ajuda, era quem fornecia os barris de espírito de vinho para os naturalistas conservarem os animais que remetiam de África e do Brasil. Naqueles tempos eles coleccionavam todas as espécies, não era só as naturais... Tenebrário - Pois, tudo a mesma exposição... As sagradas espécies... E as figuras também, como é de esperar... Sylvia - Com certeza, meu anjo! Vandelli tinha arte egípcia, etrusca, diamantes de Bornéu e muitas moedas romanas para cambiar. Cambiar é o termo usado pelo Bispo de Beja, que permutou com Vandelli medalhas e talismãs. Deve ter sido Vandelli quem mandou chamar o Ângelo Donati para colaborar com ele no Real Jardim Botânico da Ajuda. Lucy - Vandelli era botânico real? Sylvia - Pois era, viveu na corte de D. José e D. Maria. Pertencia a uma ilustre família de eruditos de Modena. Já o avô, também chamado Domenico Vandelli, fora geógrafo régio, ao serviço particular de Francisco III. Lucy - Por acaso conheço, hei-de ter lá dentro um mapa dele. Sabíeis que foi um dos melhores cartógrafos do seu tempo? Yoruba, não o queres ir buscar? Sylvia - Sim, e o pai, Girolamo Vandelli, foi cirurgião célebre. Bem, para voltar ao Ângelo: este Donati fez colecções de insectos e outros produtos em Benguela. Foi o Luis de Pina quem o disse... Tenebrário - Esse Luis de Pina não era aquele senhor muito simpático do cinema? Lucy - Não, esse era o filho, ela está a falar do pai. Ao que consta, cheio de espírito... Agradecemos-Te, bom Deus, esta refeição. Não há deus, a não ser um Deus único, Yoruba... Aceitas comer à nossa mesa? Yoruba (chega com o mapa enrolado, pousa-o no altar) - Por Allah, o Clemente sem Limites, há só um Deus e Muhammad é o seu Profeta, aos quais agradeço a refeição. Biçmillahhi wa ala barakatillah (aceita um prato com alimentos, oferecem-lhe um copo de vinho). Não, obrigado, vinho, não (vai-se sentar no tapete a comer, joelho direito encostado ao estômago). |
No altar, Tenebrário e Lucy comem e bebem. Durante a conversa, distribuem alimentos aos participantes do coro, que se aproximam um a um. O Tenebrário beija-os à chegada. Pouco depois, Yoruba também estará no altar. Beija o Tenebrário. Finalmente, já não haverá mais fruta para dar, Yoruba e Tenebrário irão ao coro apenas com a finalidade de beijar as pessoas. Também beijam espectadores. |
Sylvia - Luis de Pina fala dos desenhos feitos a bordo. Mal os naturalistas punham o pé no barco, começava a viagem filosófica, com o estudo da flora e fauna do mar alto. É por isso que no herbário brasiliense do Alexandre Rodrigues Ferreira há algas do Mar dos Sargaços. Sargaços, mais precisamente. Donati fala de desenhos, Joaquim José da Silva fala de desenhos, de desenhos fala o José António Martins. Muitos desenhos dos mesmos peixes todos fizeram na viagem para Angola! Mas nada, absolutamente nada foi ainda atribuído ao Donati. É uma tremenda injustiça, sobretudo se a sua morte não foi natural, como receio... Tenebrário - Isso é ir longe de mais! Sabes muito bem que os europeus morriam como Turdus obscurus Gmelin naquele tempo e sob aqueles climas. O que os companheiros dizem é que ele não quis tomar os remédios receitados pelo médico, por isso morreu de febre e diarreia vermelha. Sylvia - Contagiado pelo vírus Ébola? Por Julius Evola, nem penses! Donati foi assassinado, de certezinha absoluta. Já ao Feijó, também o quiseram assassinar em Cabo Verde. Até o Francisco Newton diz que o quiseram envenenar, salvo erro nos Angolares, em São Tomé... Quem queria espiões nas colónias? Estavam à espera de Feijó em Cabo Verde para o matarem, como mataram o bispo Dom Frei Francisco de S. Simão, coitado! Mas Feijó e Newton escaparam, Donati, não. E logo houve quem se aproveitasse do seu trabalho, apesar do aviso do capitão Álvaro Matoso: que mandava para Lisboa os desenhos e colecções do Donati, pois não queria que se roubasse essa glória a um homem, ainda que morto. Coro - Bonito exemplo de deontologia científica! Allahu Akbar, há só uma exposição! Sylvia - É justamente isso o que diz o Luis de Pina, pensando que o capitão não queria ficar com a glória para si mesmo. Mas outro sentido havia na mensagem... Há uma carta do Donati tão comprometedora para terceiros, e por isso tão desacautelada, que bem se pode dizer que estava mesmo a pedir que o crucificassem... Nessa carta diz que vai mandar um relatório completo para Lisboa sobre o escândalo que fora a viagem... Sacrifício maior que a morte não se pode pedir a um homem... Coro - Glória a Deus, tudo em honra de Nosso Senhor... Tudo é a mesma exposição, louvado seja o Nosso Senhor! Sylvia - Nosso Senhor, o príncipe D. José, e morto este ficou D. João, que depois de voltar do Brasil foi assassinado.... E também se diz que D. José foi assassinado por ter ligações com os maçons. É provável... Mas há mais, muito mais falsas autorias. Umas cartas secretas, por isso não assinadas, do Bispo de Beja, D. Frei Manuel do Cenáculo, foram consideradas cartas anónimas escritas por Vandelli, a vingar-se de umas patifarias de Brotero. Pelo contrário, desenhos, produtos naturais que andam pela Europa, ditos provenientes das Expedições Régias, são de certeza de Vandelli, pois Vandelli esteve no Brasil e decerto com Donati, uns vinte anos antes das Expedições Régias! Tenebrário - Olaré! Pois se ele tinha dois museus que depois foram comprados para a Universidade de Coimbra! Vinte e oito armários cheiinhos de espécies! E até havia catálogo, pois ele sempre estudou os exemplares, não se limitava a coleccionar. Lembro-me bem, é o Conspectus Musei Dominici Vandelli! Três mil moedas romanas, ou mais!, ou mais!, que hoje estão na biblioteca da Universidade, eram das colecções de Vandelli! Sylvia - Colecções pessoais, particulares, que tinha levado com ele de Pádua, caso de uns grandes lagartos... Coro - (risinhos). Sylvia - Lagartos grandes é o que está escrito, sim! E Lacerta stincus do Egipto. Podem muito bem ser os célebres lagartos de Cabo Verde, afins de uma tal Mabuya, que não é mais que um microcisco, a partir da qual se teriam evolutivamente agigantado... Diz-se que Feijó os descobriu em Cabo Verde e mandou quatro para Lisboa. Ora pelo menos em 1772, onze anos antes de partirem para o Brasil e África os filósofos naturais, já Vandelli tinha no seu museu scincos do Egipto e aves de S. Tomé e da Amazónia! Sylvia - Vandelli, quando se associou à fábrica de porcelana de Gaia, foi fornecendo as suas receitas e segredos. Tudo era secreto, as receitas dos remédios e venenos, também. E reuniam-se para discutir política e ciência em sociedades secretas. A nomenclatura das plantas e animais também encerra significados secretos. Yoruba - Al-hamdo Li-láhi!, com tanta Academia dos Ocultos, com tanto Colégio dos Invisíveis, Grande Oriente, criptónimos e afins, não admira nada que agora seja fácil misturar tudo. Coro - Por exemplo, por exemplo? Sylvia - Por exemplo, os taxa Bragantia e Lafoensia, homenagem a D. João Carlos de Bragança, duque de Lafões. O duque de Lafões era o presidente da Academia Real das Ciências... Aquele que na guerra das laranjas nos fez perder Olivença. Tinha oitenta e tal anos nessa altura, e morreu com quase cem. Casou só aos sessenta. Viajou pelo Levante, foi a Constantinopla, como o seu Pai, Christian Rosenkreutz... Coro - Phoenix reclinata, Phoenicopterus ruber roseus, Rosa alba, Rosa spinosissima, Rosa mística, Rosa-Cruz... Viva a criação! Sylvia - Vandelli conhecia o sogro do duque de Lafões, dedicou-lhe a Marialva. A Mella, tal como a Pombalia ipecacuanha, é homenagem a Sebastião José de Carvalho e Melo, que o chamou de Itália para colaborar na reconstrução de Lisboa, destruída no terramoto. Vandelli estudou as águas livres do Aqueduto e aformoseou a cidade com inúmeras árvores exóticas. Tenebrário - Pois, ouvi contar. Credo!, parece que se excedeu na Dracaena draco e até o acusaram de introduzir em Lisboa uma epidemia de dragoeiros... Yoruba - Ó Reverendíssimo, tudo é um thesaurus da Magna Mater farmacêutica, ou semiótica, ou pelo menos nutre, ou ornamenta, não é verdade? Mactub, é tudo a mesma exposição! Sylvia - Como a Arachis hypogaea, mancarra ou mandubi, que tem fruto subterrâneo, e se come sob a denominação de alcagoita e amendoim. E a Geoffroya spinosa, que já me caía no olvido, homenagem a Geoffroy Saint-Hilaire! Yoruba - Essa é de mais! Não posso acreditar nos meus ouvidos! Pois esse que andou pelo Egipto a roubar obeliscos, e quis assaltar o Real Museu da Ajuda, sendo Vandelli director, esse era um amigo? Esse que causou a prisão de Vandelli era seu conhecido? Subhanallah!, não acredito. Sylvia - Orate, frades! Eram todos irmãos, só falavam de filia, conheciam-se uns aos outros como fiéis do amor e palmas da mão. É como te digo. Por sinal, Geoffroy era naturalista insigne. Descreveu um scinco gigante do Egipto, Anolis gigantesque, afim de Lacerta scincoides de Shaw, do Levante, que depois transmutaram em endemismo de Cabo Verde, isto se os três não forem o mesmíssimo... Yoruba - Bissmilahir Rhamanir Rahim! Tudo é a mesma exposição! Quer dizer que vais a Lisboa fazer uma conferência sobre esse lagarto? Sylvia - Oh, não! Convidaram-me para reconstituir uma técnica de tinturaria... Lucy - Giríssimo!... A urzela, o anil, a púrpura... Qual delas escolheste? Sylvia - Numa exposição como a Expo Matéria Espiritual, e com toda a minha inclinação pelo Levante, é claro que só podia escolher a tintura universal... Lucy - A tintura e ponto final. Óptima ideia! Sabes, por essas e por outras é que eu queria ir à Pérsia... O scinco gigante, dizem que é igualzinho a um outro que ainda existe nessa zona que dá até ao Índico... Sylvia - Eu desconfio que esses bichos eram teratologias e foram inventados por Gray... Oh, um exemplar que foi para o Museu de Paris, levado por Geoffroy, e gerou depois tanta curiosidade que não havia jardim zoológico que os não tivesse em exposição, devia ser um dos lagartos grandes que estavam ao pé do Lacerta stincus no Museu Domenico Vandelli, isto pelo menos em 1772, e isto se grandes lagartos, Lacerta scincus, stincus, mais a Tiliqua scincoides da Austrália, não forem o mesmíssimo! Coro - Tudo é só uma exposição! (risinhos). Yoruba - Al-Hâmdo Li-Lláhi!, são os crocodilos terrestres, animais mágicos... Quem também andou pelo Egipto e descreveu Lacertus Cyprius scincoides, igual a Lacerta scincoides, foi Aldrovandi, no séc. XVI. Sylvia - Estes nomes referem-se todos ao mesmo animal, cosmopolita, porque levado para todo o lado como as tartarugas terrestres e dulciaquícolas. Animais comestíveis... Lucy - Não não foi por serem comestíveis que os levaram, foi por as suas cinzas serem afrodisíacas... Dangbé - Mella legit furtim scincus, pellitá venenum, Pabula dat veneri luxuriosa fallax, já lá dizia Ulisses Aldrovandi... Tenebrário - E por isso se extinguiu, como o rinoceronte está em vias de extinção, por o seu corno também ser afrodisíaco, segundo consta. Que eu ignoro em absoluto, nunca experimentei... Credo!, nunca precisei de poções mágicas para me inflamar o desejo de espírito. Sou pobre, mais do que S. Francisco. Mas como é isso do Geoffroy Saint-Hilaire? Pelo teu Nosso!, disseste que o Geoffroy levou do Museu da Ajuda um lagarto igual ao que ele tinha descrito quando integrou a comissão científica de Napoleão ao Egipto? Na altura em que Champollion descobriu a pedra roseta? Coro - Phoenix reclinata, Phoenicopterus ruber roseus, Rosa alba, Rosa spinosissima, Rosa mística, Rosa-Cruz, Pedra Roseta... Tudo é só uma exposição! Sylvia - Levou, em Paris estriparam-no. Ossos para um lado, pele para outro, a sistematicazinha! Mas ah, o Geoffroy!, isto tem pilhas de graça, seriamente! Sabeis porque é que Vandelli foi acusado de pactuar com o exército de Napoleão? Lucy - Pela Urraca!, não faço a mais testuda ideia... Sylvia - Altas horas, em certa noite de setembro de 1808, Geoffroy foi visto a sair da casa de Vandelli... Tenebrário - Pois, tu o disseste há bocadinho: pertenciam todos à mesma confraria, andanças nocturnas são de suspeitar... Bem vejo, revoluções, conjuras... Sylvia - Revoluções, sim; conjuras, não. Que conjuras, Reverendíssimo Tenebrário?! O Geoffroy tinha ido jantar a casa de Vandelli porque era da família! Eles não eram só amigos, eles eram parentes! Geoffroy era primo da mulher de Vandelli, a D. Feliciana Izabella Bon! Coro - Pelo terceiro anel de Saturno, como este mundo é pequeno! Quereis mais exposição ainda? Numa planta medicinal, cabe este mundo e o outro! Lucy (lê os Florae) - Allium, diaforético... Epidendrum vanilla, a baunilha, cura a melancolia... E o invisível passageiro, é quase madrugada e ainda não veio, que agonia! Pinus pinea, afrodisíaca... Cannabis sativa, tónica, narcótica, fantástica... Yoruba - Atenção, Lucy, essa é a marijuana... Coro - Não precisamos. Somos pobres quantum satis. Não precisamos. Lucy - Byssus flos aquae, Byssus phosphorea, Byssus candelaris et Byssus lactea super flumina semina disseminant, ou sôbolos rios que vão, Jerusalém celeste acharás, descrita no papiro que estas plantas dão. Ó inferno!, quanto trabalho para os pós-lineanos lhe passarem uma borracha por cima! Yoruba - Passaram-lhe uma borracha por cima porque a sistemática é ilusionista. Por Muhammad (que Deus o cubra de glória!). Até em urdo, árabe e fula, temos de saber a nomenclatura em latim! Tenebrário - Que tens contra a taxonomia, ó cavalheiro? As espécies precisam de ser classificadas, não é verdade? Em naturais e artificiais, puras e impuras, em sagradas e profanas, em humanas e divinas... Tudo tem de ter um nome. Como falar do céu, sem a palavra céu, como identificar a giboia, sem a palavra Python, como referir a cobra-de-capelo, sem o nome Coluber haje? Lucy - Receio que já nenhuma naja se chame assim. Esse nome que disseste é um arcaismo. O conjunto dos nomes desusados vai para o caixote do lixo da sinonímia. Ou nem isso, perdem-se muitos, há muitos nomes que já não se sabe do que eram. Vão para o lixo com toda a história que têm dentro, caso da Geoffroya. Entre um primeiro nome e o mais recente, há buracos de conhecimento, perdas de memória. Da Filosofia Natural, amnésia cultural é o que hoje sobra... Tenebrário - Pelo nosso Nosso!, não estás a exorbitar? |