OFÍCIO DAS TREVAS / Quinta cena
Maria Estela Guedes
03-12-2004
www.triplov.org

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CENA 5

Aproxima-se Sylvia, a toutinegra.
Traz uma taça na mão, um baú na outra,
do qual tirará aquilo de que for precisando.

Sylvia - A paz das amoras seja convosco. 

Todos - E contigo também... 

Lucy - És tu o invisível companheiro? Não te reconheço. Acaso mandaste pôr o nome na lista de passageiros? 

Sylvia (abre o baú, tira plantas que desfaz na taça, deita-lhe água) - Sylvia atricapilla é a minha graça. Ou apenas toutinegra, em vernáculo. Ouvi gemidos de quem tinha sede, eis que vos trago a água. Ou preferis uma groselha? Também posso transmutá-la em capilé... Sim, porque há só uma criação... (põe a mão aberta sobre a taça): O Céu está aberto, a Terra está aberta, o Oceano está aberto, o Oriente está aberto, as Portas estão abertas de par em par... 

Lucy - Aceito o copo de água, pois a minha boca é fornalha em que lagarto verde se reduz a afrodisíacos pós. Que angústia, aguardo o invisível companheiro, exaspera-me tanta distância... Que nervos, ui! Até faz doer o peito. Disseste que te chamas Sylvia como a toutinegra que passa?

Sylvia (dá de beber a Lucy) - A Natureza cura todos os males, incluindo esse, não te rales... Estás muito transtornada, preparei-te uma tisana de Atropa mandragora para sossegares. Não queres contar uma história, enquanto aguardamos o invisível passageiro?

Lucy - Oh, uma história! E uma história de amor, quem me dera! Mas tenho soltos os fios da meada, deixei de saber contar a vida, só com lágrimas vou colando os estilhaços ao espelho dos politécnicos e dos polilogos. O teu chá amainou-me, sinto-me jardim botânico em sétima colina agora. Que disseste que era? (deita-se ao comprido no banco). 

Sylvia - Atropa mandragora, vulgarmente conhecida por ginseng. Vis: narcótica. Segundo uma receita secreta de Domingos Vandelli.

Lucy - É... Mas que boa criação... Sinto-me, como direi? Arrebatada numa visão de smaragdínea castidade. Vandelli também era um alquimista? Entende de drogas e poções mágicas. Conheço-o mais por causa da lira, a tartaruga-lira de Vandelli...

Sylvia - Vandelli é um venerável mestre. Foi o primeiro professor de História Natural e Química em Portugal. Quando o Marquês de Pombal reformou a Universidade e incluiu as ciências naturais nas matérias curriculares. Queres saber de águas termais? Pergunta a Vandelli. Cerâmica, pesca e fábricas baleeiras, vulcões? É com ele. Aeróstatos? Ensinou os alunos a fabricá-los. Como se prepara um animal para ficar incorruptível? É com Vandelli. Desenho biológico? Tens a Casa do Risco, no Real Jardim Botânico da Ajuda, dirigido por Vandelli. Minas de ouro, diamantes, cobre, prata, ferro, enxofre, mercúrio, fósforo, decomposição da água para lhe subtrair o hidrogénio? É com Vandelli. Como se dá mais força à pólvora, como se reproduzem as lombrigas, a ténia, interessa-te? Vandelli responde. Teratologia? Vandelli sabia. Anatomia humana? Refutou a sensibilidade halleriana. Como se protege a produção nacional da concorrência europeia, numa época em que os fisiocratas sonhavam com a CEE? Pergunta ao economista Domingos Vandelli. Dói-te a barriga? Consulta o Vandelli. Trabalham mal os faróis, o fumo é tanto que se não vê a luz? Vandelli arranjou novo combustível. Queres um corajoso naturalista que tenha peregrinado até aos Alpes? Vandelli... 

Lucy - Não fazia ideia... Porque é que isso não é do domínio público? Esse homem sabia de tudo! Hoje, quando pergunto alguma coisa, dizem-me que disso não percebem nada!... Só há especialistas, eu nunca tive nenhum problema especial, só os universais...

Sylvia - Vandelli foi sacrificado no altar da política... E há mais, mas não vos quero maçar com uma exposição muito comprida. Fiquemos só com a filosofia natural, e já é o suficiente para imaginar que conhecimentos tinha ele para agarrar a Natureza em toda a sua diversidade. Não se pode fazer a história da ciência em Portugal sem falar de Vandelli. Vandelli era parecido com Gray... As coisas que eles criaram! 

Yoruba - Eu cá sei parte, ó filha do jasmim do Éden! A minha família tinha contactos com o Vandelli, por causa da rota da prata, do ouro, da seda, das tintas, das plantas e dos animais. Essas espécies que transitavam entre Europa, Ásia, África e América. Sobretudo a tintura.

Tenebrário - Pois... Um homem assim mete os especialistas de línguas de gato num chinelo! Não admira que o tenham sacrificado, saber muito incomoda...

Lucy - Ele não conhecia outras plantas medicinais? 

Sylvia (vai ao baú buscar os Florae; lerá de vez em quando; de outras, sabe de cor o nome das plantas e suas virtudes) - Deixa ver o que vem nos Florae lusitanicae et brasiliensis specimen... Há a Vellozia, dedicada ao Padre Joaquim Veloso de Miranda, que a apanhou no Brasil. E a Correia, oferecida ao Abade Correia da Serra, coligida também por Veloso em Minas Gerais. A Urceola, para o penteador das damas. Numa carta a Barbacena, Vandelli diz que lhe manda uma amostra, decerto para a comadre. Ah, quando tiverdes lombrigas, bebei todas as manhãs, em jejum, uma infusão de Spigelia anthelmia. Houve uma vez em que Lineu sugeriu a Vandelli que preparasse com ela grande cópia de produto, para vender em toda a Europa, já que facilmente a obteria do Brasil, onde a planta é espontânea, faria uma fortuna com isso. Imaginai, na Suécia, cada dose da erva chegava a um ducado!

Yoruba - Bissmilahir Rhamanir Rahim!, tão caro?! Extraordinário! Ó toutinegrinha, conheces mais?

Sylvia - Ainda mais? São tantas, tantas... O café, Coffea occidentalis, é para quem sofre de doenças venéreas. Hyoscyamus niger, de vis fantástica, é alucinogénea.

Coro - Não precisamos. Somos quantum satis. Não precisamos. 

Sylvia - O fumo de Nicotiana tabaccum aplica-se em clisteres, dá a volta logo aos intestinos, alivia-te da boca ao ânus...

Tenebrário - E era assim que devia ser sempre fumado... 

Sylvia - Ah-ah!, mas antes, Tenebrário, tens de massajar bem o abdómen com azeite casado com vinagre... Solanum lycoperficum, bem, isto são os tomates...

Yoruba - Pensei que fosse a batata... E Solanum não é nome de pessoa? Bendito seja o nome de Allah, lembra-me alguém... 

Sylvia - Também, também... Lembra o Solano Constâncio, claro!, que era um naturalista amigo de Joseph Banks... O género Solanum foi descrito por Banks, um rosacrúcio que participou na primeira viagem de circum-navegação empreendida pelo capitão Cook. Foi presidente da Royal Society of London. Banks herborizou no Brasil e outros sítios da América do Sul, trocou com Vandelli muitas gravuras e espécies. O género Pittosporum, da ordem Rosales, também é dele.

Lucy - Como é que eu me esqueci disso?! Então, Pittosporum Banks é o incenso! Que excelente ideia, eu vou buscar... 

Yoruba - Trazes lume no bico, ó iluminada avezinha! Tudo o que dizes é a pura verdade! Joseph Banks salvou Domingos Vandelli das masmorras da ilha Terceira, quando para ali o desterraram, depois das invasões francesas. Isto sei-o de histórias de família, porque um dos meus antepassados levou plantas e lagartos para os Açores, quando ele esteve lá. 

Sylvia - A Vitis vinifera é a planta do vinho, hujus vis est euphorica como já sabiam as bacantes... 

Coro - Tudo é a mesma criação! Evoé! Evoé!

Lucy (incensa o livro com o turíbulo) - Como num rol de nomes esquisitos há tanta história e tanta farmácia!...

Sylvia - Era assim que os alquimistas estabeleciam contactos e confrarias e transmitiam uns aos outros mensagens secretas. Galvania, vê bem, é alusão a Manuel Galvão da Silva, o da viagem filosófica a Goa e Moçambique. Houve quatro Expedições Régias no século XVIII. A Cabo Verde, Brasil, Angola, Moçambique e Goa. Organizadas por Vandelli. Quem devia ir ao Brasil era ele, por isso partiu de Pádua para Portugal. E foi, logo que chegou. Depois meteu-se na política, indústria, dava aulas em Coimbra. Mais tarde mandou também o compadre, o Alexandre Rodrigues Ferreira. Adorou ter conhecido a floresta virgem dos romances, cheia de bons selvagens...

Tenebrário - Pois... Os românticos, os libertins d'esprit... Considerados hereges na Universidade Reformada por Pombal! Rousseau, Voltaire, Diderot, o autor de Paul et Virginie, como é que ele se chama?

Lucy - Bernardin de Saint-Pierre. Mas o meu preferido é Montesquieu. O bom selvagem de Montesquieu é um persa, eu tenho um fraquinho pela Pérsia. Não conheço, mas ainda lá hei-de ir. Naquele tempo, a essa zona, que incluía o Líbano, a Terra Santa, a Arábia, o Egipto, Chipre, chamava-se o Levante. Muitos naturalistas por ali andaram, muitos publicaram viagens ao Levante. Era assim uma espécie de cruzadas científicas...

Sylvia - Cruzadas alquimistas, cruzadas alquimistas... Esqueces-te do mais importante, a Turquia, com a cidade dos rosacrúcios, Constantinopla, capital do Império Romano do Oriente... 

Yoruba - Pelas barbas do Profeta, que queres ir fazer a uma Pérsia que já nem existe? Alguma peregrinação?

Lucy - Não é bem isso, não é bem isso... Falaram-me de uns lagartos gigantes dessa região que dá até ao Índico... Uns scincos afrodisíacos... (incensa a cena).

Coro - (risinhos).

Sylvia - Bah, isso é Lacerta scincoides de Shaw... Shaw, que era teólogo e naturalista, também andou pelo oriente. Escreveu a Viagem ao interior das terras do Levante e Berbéria, lembro-me até da data, 1738, porque foi nesse livro que descreveu o teu lagarto afrodisíaco...

Coro - (risinhos).

Lucy - Não é nada do que pensais! Eu até me sinto um querubim depois de ter bebido aquela poção mágica! Mudo para o teu assunto, pronto!... As plantas de oficina ou de botica...

Sylvia - Sim, há muitas espécies officinalis, ou de farmácia. Se te interessa, comandante, a Eryngium campestre também é afrodisíaca, se bem que nada o seja mais do que a castidade... Digo-to eu, que não sou capaz de entrever um intangível ostensório raiar no sacrário da distância sem me apaixonar logo por ele. Os afrodisíacos eram usados para aumentar a fome de espírito, pondo o corpo à prova, até arder de desejo como pura flama. Algo equiparável aos cilícios. Se virmos bem, os nobres viajantes eram celibatários, casavam muito tarde. Mas na maior parte eram frades. E morriam muito, muito velhos. 

Lucy - Vandelli morreu quase com noventa anos... E também casou muito tarde... O primeiro dos seus quatro filhos nasceu... Deixa cá ver... É, já ele ia nos 49... 

Tenebrário - Que tomariam? Sangue de drago?

Lucy - O sangue de drago é usado hoje em dia para qualquer doença, incluindo a prevenção das imaginárias. Há uns frades em Lisboa que o preparam, ouviste falar?

Yoruba - Ó Lucy de lucífera formosura, não é o dragoeiro de Vandelli, é o aloés, uma babosa. Tem alcalóides, não se pode tomar assim, sem mais nem quê. Quem o prepara com mel de alquímica abelha são os irmãos de S. Francisco, o santo que era pedreiro e conhecia a linguagem das aves... Tem saído nos jornais do Daomé...

Lucy - Ah, é? Disso não percebo nada, disseram-me foi que esses frades são uns tontos...

Yoruba - Todos são...

Tenebrário - Olha quem fala... 

Lucy - Mas deixa-me ver o livro, quero ler eu agora. Onde é que vais? (Sylvia aponta e vai-se sentar). Ora cá está... Ao visconde de Barbacena, secretário da Academia Real das Ciências, aquele que abafou a conjura do Tiradentes, dedicou o mestre português a Barbacenia, mais uma vez apanhada no Brasil pelo nosso bom padre Veloso.

Sylvia - É preciso dizer isso e repetir, porque ao nosso bom padre Veloso é censurada a vaidade de ter dado o seu próprio nome a uma planta, a Vellozia. Ora a Vellozia é de Vandelli. Parte do herbário de Veloso foi classificado por Vandelli.

Yoruba - Esse Tiradentes não é o da Inconfidência Mineira? Diz-se no Daomé que os naturalistas estiveram implicados na independência do Brasil. Antecipavam a retirada da corte, quando foi aquela história de Napoleão. Tinham vistas largas... Bem, eram liberais, os liberais de primeira geração suportavam mal a escravatura e o colonialismo. Sei disso porque os meus antepassados eram escravos. Depois de libertos levaram-nos para Freetown, mas mais tarde a família pôde regressar ao Daomé. Um parente meu, o Sousa, era um afro-brasileiro célebre, tinha um pomar de árvores exóticas conhecido no mundo inteiro. Al-Hamdo!, foi ele que ajudou os portugueses a tomarem o Daomé sob protectorado. O rei é que não gostou, meteu-o numa cuba de indigo para o castigar... E que foi feito de tanta espécie de Vandelli, ó silvestre passarinha?

Sylvia - Os liberais do século seguinte passaram-lhe uma borracha por cima. E só falo das plantas, reparai. Não quero entrar nos invertebrados marinhos, as holotúrias, bichos que tais. Para mim, isto é roubo de autoria.

Coro - Passaram-lhe uma borracha por cima! Passaram-lhe uma borracha por cima! E mais?

Lucy - Pela Urraca, ainda mais?! Há a Reseda luteola ou lírio dos tintureiros...

Tenebrário (incensando a cena) - A tintura é o objectivo da alquimia. Para não falar da cantaria, mas acho que nenhum dos naturalistas era pedreiro...