OFÍCIO DAS TREVAS / Sétima cena Maria Estela Guedes 03-12-2004 www.triplov.org |
CENA 7 |
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Ladainha |
Lucy (vai para o altar) - Leitura da Epistola de Holothurio et Testudine coriacea ad Celeberrimum Carolum Linnaeum: "Species autem diversa hujus Testudinis asservatur in Museo Instituti Scientiarum Bononiensis, quae anno 1756, capta fuit circa Neptunii oram, quam accolae Romam detulerunt, & Benedictus XIV, Pontifex Maximus eam magno emptam Bononiam importari dono jussit, de qua Celeberrimum Franciscus Zanottus aliquid loquitor, ejusque Testudinis figura est in commentariis Historiae Litterariae Venetiarum. Haec omnia autem ita a me descripta sunt, ut eadem parvi facienda existimem, nisi fuerint, Vir Celeberrime, Tuo judicio comprobata." Coro (gregoriano) - Epistola de Holothurio et Testudine coriacea!... Epistola de Holothurio et Testudine coriacea!... Amen! Amen! Dangbé (imita) - Amin! Amin! Lucy - Meus irmãos, deixai-me em singelas palavras comentar a consagrada espécie de Vandelli. Em 1761, vivia ainda em Pádua, o venerável Domenico publicou a Epistola de Holothurio et Testudine coriacea, em que descreve a lira. Esta tartaruga marinha é um milagre da Natureza, um espanto, a mais espectacular das espécies à face da Terra. Respira por pulmões, como todos os répteis, mas mergulha a mil metros de profundidade. Fica debaixo de água durante semanas, atentai no abismo! E chega a pesar perto de mil quilos! Yoruba (afagando) - Está caladinho, Dangbé! Disseste, ó nocturna luzinha, que o venerável descreveu a lira numa epístola? Lucy - Publicou a descrição sob forma de carta a Lineu, sim. E Lineu incluiu a tartaruga-lira no Systema Naturae, deixando claro que pertencia a Vandelli. Por isso a espécie devia chamar-se Testudo coriacea Vandelli, 1761. É assim ou não é? Coro (gregoriano) - É assim, sim! É assim, sim! É assim, sim! É assim, sim! É assim, sim! É assim, sim! Lucy - Acreditais que a marinha criatura já teve mil e um nomes diferentes, sem ter ainda transmutado nem um pingo de carapaça? Coro - Não temos fé, não acreditamos! Não temos fé, não acreditamos! Lucy - Pela Urraca!, e se vos atirar com o rol da sinonímia à cabeça? (pega numa folha contínua de computador, a folha vai-se desdobrando pelo chão). Coro - Por amor de Deus, tem piedade de nós! Por amor de Deus, tem piedade de nós! Por amor de Deus, tem piedade de nós! Lucy - Tenho piedade de vós. Vou só rezar um terço do que está registado... Porque também há o que a sinonímia não registou. Sem me deter na trapalhada de Bocage com uma lira capturada em Peniche de que Vandelli também falou... Para a deslindar, num livro sobre quelónios, o Brongersma teve de estudar história de Portugal! Coro - Bocage, não! Tem piedade de nós! Bocage, não! Tem piedade de nós! Bocage, não! Tem piedade de nós! Lucy (vai puxando a folha, selecciona) - Já disse que tinha. Sabeis que animal é a Testudo coriacea Lineu, 1766? Coro (baixinho, falado) - A tartaruga-lira de Vandelli?!... Lucy - Sabeis que animal é a Testudo arcuata Catesby, 1771? Coro (falado) - Credo! A tartaruga-lira de Vandelli. Lucy - Sabeis que animal é a Testudo lyra Lacepède, 1788? Yoruba (canto corânico) - Subhanallah! Subhanallah! Lucy - Sabeis que animal é a Testudo tuberculata Pennant in Schoepf, 1801? Coro (gregoriano) - Credo! A tartaruga-lira de Vandelli. Lucy - Sabeis que animal é a Chelonia lutaria Rafinesque, 1814? Coro (gregoriano) - Credo! A tartaruga-lira de Vandelli. Lucy - Sabeis que animal é a Sphargis mercurialis Merrem, 1820? Coro (falado) - Credo! A tartaruga-lira de Vandelli. Lucy - Sabeis que animal é a Chelonia Lyra Bory de St. Vincent, 1828? Yoruba (canto corânico) - Bissmilahir Rhamanir Rahim! Lucy - Sabeis que animal é a Dermatochelys porcata Wagler, 1830? Lucy - Sabeis que animal é a Testudo coriacea marina Ranzani, 1834? Coro (gregoriano) - Credo, como se a espécie não fosse toda marinha! Lucy - Sabeis que animal é a Dermatochelys atlantica Fitzinger, 1836 (1835)? Coro (gregoriano) - Credo! Credo! Como se a tartaruga-lira do Atlântico não fosse a de todo o mundo! Lucy - Sabeis que animal é a Sphargis coriacea Duméril & Bibron in Bocage, 1863? Esta é só a trapalhada de Bocage sobre a lira de Peniche, de que resultou o prodígio de Vandelli ter vindo à Terra doze anos depois de ter morrido, só para a mandar embalsamar... Coro (gregoriano) - Credo! Bocage, não, tem piedade de nós! Lucy - Quantas vezes é preciso dizer que sim, que tenho piedade de vós?! Sabeis que animal é a Sphargis coriacea var. Schlegelii Garman, 1884? Coro (furioso) - Credo! A tartaruga-lira de Vandelli. Lucy - Sabeis que animal é a Dermochelys coriacea Boulenger, 1889? Coro (gritado, batendo o pé) - Credo! A tartaruga-lira de Vandelli. Lucy - Sabeis que animal é a Dermatochaelis coriacea Lineu in Oliveira, 1896? Bem, esta é só mais uma trapalhada sobre a lira de Peniche que Vandelli mandou expor no Museu da Ajuda, isto doze anos depois da sua morte... Com Paulino de Oliveira, essa única bichinha passou a ser duas. Se vos contar que o Brongersma, para desenredar o imbróglio... Coro (gregoriano) - Credo! Para deslindar o imbróglio, o Brongersma teve de recorrer à interdisciplinaridade, começando por tirar um curso de História de Portugal! Lucy - Mas o pior está para vir. Nas invasões francesas, o Geoffroy tinha querido levá-la para França, já estava encaixotada e tudo, o venerável Vandelli é que não consentiu. Mais valia tê-la deixado ir! Acabou esturricada no incêndio da Politécnica... Era uma das maiores que à data se conheciam! Um dos mais espantosos animais da Criação! Ou uma das mais espantosas criações humanas... Bom, retomando o rol da lavandaria... Sabeis que animal é a Dermatochelys angusta Quijada, 1916? Dangbé - E o habitante do Ataúde não terá de recear a perseguição do Mal! Em verdade, vive. A Tartaruga está morta! Tenebrário - Sabeis que animal é a Dermochelys coriacea (Vandelli, 1761)? Todos (dito com infinita resignação) - A tartaruga-lira de Vandelli. Lucy - Sabeis quando foi a tartaruga-lira devolvida ao seu legítimo autor? Todos (gregoriano) - A tartaruga-lira de Vandelli. Lucy - Só em 1980 a lira foi devolvida a Vandelli! Todos (gregoriano) - Credo! Credo! E durante quanto tempo mais será a lira de Vandelli? Lucy - Posso ficar segura de que nunca mais esquecereis esta barbaridade? Jurais? Todos (estilo militar) - Juro! Jamais esquecerei a tartaruga-lira de Vandelli! Yoruba - Pelo Clemente sem Limites, estou siderado! Os sistematas são ilusionistas, nunca se sabe o que o lhes vai sair da cartola... Mas esta da tartaruga-lira de Vandelli ultrapassa todos os limites! Como saber de que espécies falam eles, se os nomes mudam todos os anos, e os autores variam com as estações? Coro (estilo militar) - A tartaruga-lira de Vandelli. Lucy - O maior perigo disto é a manipulação ideológica da Natureza. Porque se não há regras, nenhum código ético na identificação dos seres, posso varrer uma fauna do mapa a meu bel-prazer, criar outra totalmente diversa. Como aconteceu com os répteis de Cabo Verde... Ora isso é tão perigoso como as metáforas. Mais perigoso que a engenharia genética, porque com o racismo ainda acabam por nos varrer a nós... |