OFÍCIO DAS TREVAS / Quarta cena
Maria Estela Guedes
03-12-2004
www.triplov.org

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CENA 4

Yoruba tira do balaio
a tiara faraónica

Lucy - Boa espécie, animal lindo de morrer, lá isso é verdade... Olá, Dangbé, como tens passado?

Dangbé - E a besta que eu vi era semelhante a um leopardo... Há por aqui alguém que se queira instruir? E o dragão deu-lhe uma grande força e um grande poder... Iblis, Iblis... 

Lucy - Curioso, esta criatura fala por oráculos... Falas ou não falas, Dangbé? Se assim é, diz para onde vai a nau Gabriel...

Dangbé - Recorda: a Igreja não exige talento e reclama apenas obediência bovina, submissão ao estilo. Em nome de um verbo esclerosado, mandou acender as fogueiras... Há por aqui alguém que se queira instruir?

Lucy - Se eu conseguisse funcionar nesse comprimento de onda para inteligir o que tu dizes! Se conseguisse, recordava-me e instruía-me... 

Tenebrário - Deixa-a falar e aponta aí num papel, depois pedimos ajuda a um semiólogo... (Lucy vai buscar um caderno e aponta). Diz, Dangbé, qual o destino da barca?

Dangbé - Phoenicopterus ruber roseus... Há por aqui alguém que se queira instruir? Para ressuscitar, a Igreja tem de arder na flama do amor humano... De outro modo, é o frio museu de cera da idolatria... Há por aqui alguém que se queira instruir? 

Lucy - Dangbé... Dangbé, meu docinho... Deixa lá a Igreja embalsamada e concentra-te: para onde vai a nau Gabriel? 

Dangbé - O diálogo põe-nos em presença de um terceiro que é a Verdade. Pode ser invisível, mas está a olhar para nós... Há por aqui alguém que se queira instruir? 

Yoruba - Dangbé, não me encavaques... Estes senhores são todos instruídos!... Pelo destino!, diz: para onde vai a nau Jibraíl? 

Dangbé - Há por aqui alguém que se queira instruir? O que funda o homem não é a desconfiança do homo homini lupus, sim o amor, a sensibilidade à voz do coração. Há por aqui alguém que se queira instruir?

Lucy - Como posso eu instruir-me, se não entendo nada? Com oráculo ou sem oráculo, estamos com sérios problemas de comunicação... (afaga a cobra). Por favor, docinho, só te peço que me digas para onde vai a barca... Não vês que sem destino a viagem não tem sentido?

Dangbé - Porque a fé passa pelo corpo, é preciso tocar... Não são os crentes que na missa têm de se beijar em sinal de hospitalidade... Os padres é que precisam de recuperar o perdido corpo e oferecê-lo aos fiéis em comunhão. Há por aqui alguém que se queira instruir? Não foram as jóias do Vaticano nem o Tribunal do Santo Ofício que levaram à desertificação da Igreja romana, sim a sua impotência para traduzir. O discurso religioso tornou-se estranho ao nosso corpo e à nossa linguagem...

Tenebrário - Nota-se... Uma pergunta tão simples, tão objectiva, e a criatura não consegue atinar com a resposta! Ela não ouve, não está aqui... Desce ao corpo da nossa fala: qual o destino da barca?

Dangbé - Participa da Vida Eterna comungando o amor consagrado... O meu Pão de comungar será feito de Trigo branco, a minha Bebida de comungar será feita de Trigo vermelho... Há por aqui alguém que se queira instruir? Não confundas prazer com felicidade, não reduzas à chama de um fósforo sentimentos cuja beleza não se apaga no orgasmo.

Yoruba - Ela não costuma portar-se mal, é uma Boa hyeroglyphica, Bissmilahir! Nunca a vi tão alucinada, deve haver qualquer presença por aqui que lhe deu volta à cabeça... Se calhar é das velas... Por amor de Allah, diz: para onde vai a piroga?

Dangbé - Deus manifesta-se na comunhão humana. A Igreja tem de sair dos seus limites, abrir a porta ao amor... Há por aqui alguém que se queira instruir? Exigir castidade aos sacerdotes é idolatrar o pénis. Exigir castidade aos sacerdotes é insultar a Criação.

Lucy - Oh, mas quem lhe terá encomendado o sermão?! Pela última vez, ou perco a paciência: qual o destino da barca?

Dangbé - O meu canto espraia-se em canais de lápis-lazúli. Avanço: eis que a luz se torna ofuscante! Eu adoro as silenciosas divindades ocultas nas Trevas. Apoio e levanto os que choram, com o rosto entre as mãos, mergulhados no desespero... Olhai, escutei os vossos lamentos! Abro o Caminho da Luz. Eu sou a que expulsa as Trevas...

Tenebrário - Oxalá, oxalá!... Mas não podes ser só um pouco mais clara?

Dangbé - Eli, Eli, lamma sabacthani?

Coro - Hiiiiiiiiiii!..... Ouvis? Que rumor vem galgando os degraus do Atlântico? É um frio zumbir de abelha, é onça preparada para o salto... Hei! Auuuu! Quem vem lá? Hei! Auuuu! Quem vem lá? É pantera em posição de salto, é mel de alquímica abelha... Que sussurro vem dobrando as colmeias da Atlântida? Hei! Auuu! Quem vem lá?

Lucy - Eli, Eli, lamma sabacthani? Até estou arrepiada, será o invisível passageiro? Eli, Eli, lamma sabacthani?