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1. Para certos
frequentadores dos textos do Novo Testamento não lhes basta o
simples prazer de os ler. Interessa-lhes o que neles podem encontrar
para a orientação da sua vida pessoal, familiar e social. Querem,
talvez, descobrir o programa de Jesus de Nazaré e o que dele podem
tirar para resolver os problemas do seu dia-a-dia. Não me parece que
seja fácil satisfazer este pendor pragmático.
Se quiserem colher, nos Evangelhos, um
programa de governo, seja para que país for, ficarão decepcionados.
Jesus, no sector da agricultura, manifestou que conhecia bem as
condições e técnicas para as boas sementeiras e colheitas. Mas uma
reforma agrária não se faz recomendando: olhai os lírios do campo
e as aves do céu. Quando aborda a questão dos trabalhadores para
a vinha, tem uma política de salários que prima pelo arbitrário e
que qualquer central sindical teria de combater. No sector das
pescas, provocou iniciativas que multiplicaram o peixe, mas não
deixou a receita para garantir futuras experiências de sucesso. Além
disso, até retirou barcos e pescadores à sua utilidade normal,
fazendo dos pescadores pregadores. Para a montagem de uma indústria
próspera, como podia ser a da construção e a dos têxteis, não foi
boa ideia recomendar que não se preocupassem com o dia de amanhã. No
sector de comércio e negócios, tinha uma teoria que levaria tudo à
falência: não encoraja nem exportações nem consumo interno. A
atitude perante o dinheiro e a riqueza provocava a troça dos
fariseus. A saúde e a assistência foram a sua preocupação
permanente. No entanto, não criou uma rede hospitalar, nem lares de
terceira idade. Resolvia tudo com milagres. Rejeitou, liminarmente,
qualquer programa político, tanto para Si como para os discípulos.
Seria de supor que, pelo menos, no plano religioso, se apresentasse
como um grande especialista em organizar lugares de culto,
peregrinações e cerimoniais que se impusessem como a melhor
alternativa para o contacto com o divino. E nada.
2. Creio que Jesus
não veio resolver os problemas das áreas da competência humana, nem
substituir a nossa responsabilidade histórica. Interessa-Lhe apenas
fazer de nós criaturas novas, mediante a graça da conversão
permanente. Compete-nos resolver os nossos problemas, por nossa
conta e risco, através das ciências, das técnicas, das
artes e das sabedorias que formos inventando ou descobrindo.
É certo que não deixou nada escrito, não
encarregou ninguém de escrever e os textos cristãos não impõem uma
interpretação única. Remetem para a participação na realidade viva
de Cristo.
Os cristãos e as suas comunidades, como
todos os grupos humanos, nascem e desenvolvem-se numa história
marcada por tradições, mas sem estarem condenados a repeti-las. O
Espírito de Pentecostes, que celebrámos no Domingo passado, é fonte
de inovação segundo a pluralidade de carismas pessoais e de grupo.
3. O Papa João XXIII é, neste
sentido, um caso muito especial. Não basta dizer que nasceu pobre em
Sotto il Monte (província de Bérgamo,
Itália) a 25 de
Novembro de 1881. Que foi padre, bispo e cardeal de Veneza, núncio
apostólico na Bulgária, na Turquia e em França, eleito papa
a 28 de Outubro de 1958 e que morreu pobre,
em Roma, a 3 de Junho de 1963. Nem basta
acrescentar que, de forma improvável e imprevisível,
convocou o Concílio Vaticano II (1962-65), o maior
acontecimento da Igreja no século XX. Infelizmente, não assistiu ao
seu desenvolvimento até ao fim.
Os eclesiásticos gostam
todos de deixar uma obra na qual se possam rever. Os papas do
Renascimento não eram todos uns santos, mas deixaram marcas
inapagáveis que justificam todas as formas de turismo.
Angelo Giuseppe Roncalli era o terceiro filho de uma família
pobre e numerosa. Nem ele nem a família lucraram com o seu percurso
eclesiástico. Várias vezes confessou que estava bem assim. Sem nunca
esquecer a sua aldeia, a sua diocese, os países em que trabalhou, do
Oriente e do Ocidente, os seus familiares, a sua verdadeira ambição
era que o mundo inteiro fosse a sua família. Em 1959, depois de ter
sido eleito papa, escreveu no seu Diário íntimo: “desde o dia
em que o Senhor me chamou, miserável como sou, para este grande
serviço, já não me sinto pertencer a nada de particular na vida:
família, pátria terrena, nação, orientações particulares em matéria
de estudos, de projectos, por melhores que sejam. Agora, mais do que
nunca, apenas me reconheço como indigno servo dos servos de Deus. O
mundo inteiro constitui a minha família. Este sentido de pertença
universal deve dar vigor e vivacidade ao meu espírito, ao meu
coração. (…) Estou, sobretudo, grato ao Senhor pelo temperamento que
me deu, que me preserva de incómodas inquietações e de desânimos (…)
O bom acolhimento à minha pobre pessoa, imediatamente dispensado e
mantido por quantos de mim se aproximam, é sempre motivo de
surpresa. (…) Devemos estar, sobretudo, revestidos de uma habitual
prontidão às surpresas do Senhor.”
Ontem, o Movimento Nós Somos Igreja
promoveu, no Convento de S. Domingos, um colóquio sobre esta figura
da Igreja do futuro. A ela voltaremos no próximo Domingo.
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