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1. Se uns católicos projectam sobre o novo
Papa os seus desejos de mudança, outros receiam a sua desenvoltura.
Bergoglio já mostrou que conhece as diversas
correntes espirituais e culturais do catolicismo, nos diversos
países. O que ainda não sabemos - apesar de alguns gestos e
entrevistas importantes -, é o método da sua liderança. Situando-se
no seio de uma Igreja, toda ela chamada a ser aprendiza e testemunha
do Evangelho no mundo, seguirá o método de João XXIII. Se passar o
tempo a invocar o poder papal para exercer o seu magistério,
reprimindo as correntes teológicas que não o reproduzam, será mais
do mesmo. Foi esse o lamentável estilo adoptado, embora com acentos
diferentes, durante 150 anos, mais precisamente, desde a encíclica
programática Mirari vos, de Gregório XVI (1832), que procurava
levantar um dique contra o mundo moderno.
Espero que o papa Francisco vença a tentação
de desenhar o futuro de modo voluntarista, apoiado apenas nas suas
concepções pré-estabelecidas e invocando imperativos da divina
tradição. Vimos, na crónica do passado Domingo, as consequências da
tentativa de parar o tempo, mediante a declaração intimidatória de
João Paulo II, sobre a “ordenação sacerdotal” das mulheres.
Na expressão de K. Rahner, esse comportamento
estava situado no Inverno da Igreja. Para este teólogo, as
autoridades eclesiásticas de Roma, em 1985,
davam a impressão de favorecer mais um retorno medroso aos
“bons tempos passados”, do que tomar consciência clara da situação
actual do mundo e da humanidade, com espírito evangélico, no
seguimento do Concílio Vaticano II.
Se as mulheres começarem, em breve, a fazer
parte da instituição do cardinalato, será um bom sinal. Ninguém
poderá adiantar qualquer argumento teológico contra tal decisão e
esta poderá contribuir para desbloquear o debate sobre o papel das
mulheres nas comunidades cristãs. Não esperemos, no entanto, que o
papa possa resolver tudo com uma penada. Embora os regimes
democráticos funcionem ainda muito mal, na Igreja Católica nem
sequer foram ensaiados, salvo em alguns nichos.
2. O
grande historiador, Giuseppe Alberigo, orientou um número especial
da Concillium (108, 1975), dedicado à renovação da Igreja e à
reconfiguração do serviço petrino. Naquela data, não foi tido em
conta. Parece-me que chegou o momento de o revisitar com proveito.
Na altura, a meta a atingir com esse dossier consistia em formular
alguns pontos operacionais capazes de concretizar, no seio da
Igreja, uma imagem realista e praticável daquilo que poderia ser e
fazer o papado, no seio da Igreja dos últimos decénios do séc. XX.
Como já foi referido, meteu-se pelo meio um longo inverno. Não se
pretendia, de modo nenhum, ter identificado o ponto central e
decisivo da renovação da Igreja. Pelo contrário. É necessário manter
viva a consciência de que o papado romano constitui, apenas, um
factor da Igreja e nem sequer é o mais decisivo. Por outro lado,
parece igualmente importante abandonar o “globalismo” paralisador,
muito difundido, que em nome da necessidade de levar em conta todas
as componentes da problemática eclesial, nos impede de as
considerar, uma a uma, com realismo e oportunidade.
Recolocar os ministérios eclesiais dentro do
Povo de Deus, como fez o Vaticano II, constitui o fundamento e o
critério de uma nova fase na história do papado. Torna-se
incontornável e urgente a reapropriação do papado romano por parte
da Igreja, superando tanto a animosidade anti-romana, como a imagem
mitificada do papa.
Temos um longo e complexo caminho pela
frente. Esse caminho pressupõe uma efectiva capacidade da Igreja
para exprimir, mediante formas adequadas e responsáveis – sem
servilismos nem arrogância – indicações pertinentes sobre o espaço e
conteúdos do serviço que o Papa deve prestar.
3. Alberigo, no seu contributo, destacou e
desenvolveu a seguinte tese: é preciso que a consciência eclesial se
compenetre de que o estatuto do papado romano não é, nem do ponto de
vista teológico nem histórico, um dado indiscutível e imutável.
Se fizermos uma reavaliação da possibilidade
de modos, estilos e conteúdos diferentes daqueles que se tornaram
mais habituais e constantes, ver-se-á que, quase tudo aquilo que se
sabe do papado romano, depende das circunstâncias históricas. Estas
sofreram repetidas e profundas modificações, ao longo dos tempos.
Quando os papas são apresentados sob um único
denominador comum, figuras tão diferentes e contrastadas como as de
Gregório Magno, Gregório VII, Paulo III, Pio IX e João XXIII, acabam
por conduzir a história da Igreja a uma história do papado e ao
triunfo de uma uniformidade construída. Nenhum papa é a Igreja. Não
deixemos tudo para este iluminado e desarmante argentino.
in Público,
03.11.2013
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