|
1. Repetia-me, há dias, um amigo, um
anticlerical de velha tradição: se for verdade que um jesuíta,
conservador e autoritário, se converteu em irmão de Francisco de
Assis e que os cardeais fizeram dele o Papa da Igreja Católica
Romana, não posso continuar a dizer que não há milagres…
Muitos católicos, humilhados pelas
narrativas de escândalos ocultados durante muitos anos, voltaram a
socorrer-se de um velho adágio: Deus escreve direito por linhas
tortas. Alguns dos que, entretanto, tinham ido dar uma volta por
outras paragens religiosas ou agnósticas, estão de regresso. Não
faltam os que estão na expectativa. Aqueles que sempre defenderam as
opções da hierarquia, mesmo nas situações mais absurdas,
organizam-se, agora, para impedir os estragos que este papa, sem
devoção pelo Vaticano e demasiado inconveniente nas pinturas que faz
do carreirismo eclesiástico, está a causar ao mundo católico. Este
movimento até já tem a sua oração: “Senhor, antes que seja tarde,
ilumina-o ou elimina-o”.
Persiste, todavia, nessas reacções
contrastadas, o grande equívoco que João XXIII quis desfazer, ao
convocar o Vaticano II: a tendência inveterada de identificar a
Igreja com a hierarquia. Fala-se muito, e com razão, na urgência de
reformar a Cúria, mas debatem-se pouco as funções que deve
desempenhar, a composição que deve ter, a duração dos mandatos,
assim como as modalidades de prestar contas à Igreja, de forma
periódica.
Jorge Bergoglio estava consciente de
que teria de conduzir esse processo com prudência, a virtude cardeal
das decisões corajosas, ponderadas e sábias, a não confundir com o
medo de tocar na máquina dos interesses instalados, dispostos a
boicotar qualquer tentativa de reforma eficaz. Um reformador não é
um tonto com iniciativa.
O papa resolveu começar imediatamente a
reforma pela cúpula, para que a Igreja não continue a meter tanta
água. Tinha de ser ele a romper com o estilo palaciano e retomar, na
prática, a sentença de Santo Agostinho: “para vós sou bispo,
convosco sou cristão”.
Se não mostrasse, em concreto, o seu
modo de ser cristão, bispo e papa, não tinha autoridade para fazer
exigências radicais à Cúria, cujos “eminentíssimos cardeais precisam
de uma eminentíssima reforma”, para usar a expressiva linguagem de
D. Frei Bartolomeu dos Mártires no Concílio de Trento. Isso explica
as suas prioridades: celebrou a 5ª Feira Santa numa prisão de
jovens, foi à ilha-cemitério de Lampedusa, às favelas do Rio de
Janeiro e aos pobres da Sardenha. Estabeleceu o centro na periferia.
Mostra assim que só pode viver a sua missão apostólica na defesa dos
excluídos por um sistema mundial, que tem como fruto a globalização
da indiferença, a nossa vergonha!
2. Se, com essas iniciativas,
estivéssemos perante um fenómeno de populismo e idolatria papal, não
seria o próprio Bergoglio a dizer: já basta de Francisco, Francisco,
Francisco!
O que o papa procura é centrar as suas
preocupações na reconstrução de uma Igreja que seja um nós aberto ao
mundo. Herdou, porém, uma questão gritante que papas anteriores, com
argumentos duvidosos, afirmaram estar definitivamente encerrada. A
pergunta sempre adiada é clara: qual o papel das mulheres numa
Igreja, onde são a maioria? O sinal inequívoco de que entrámos num
tempo novo será dado pela resposta que se encontrar, com as
mulheres, para esta questão. Enquanto os homens não perceberem que
elas próprias têm uma contribuição insubstituível a dar para a
inteligência do sentido da fé, das suas expressões sacramentais e
organizativas, continuaremos, na prática, com o comportamento que
Jesus violou: sem contar mulheres e crianças.
A este propósito, convém conhecer um
texto que procurou fechar um debate que estava aberto, a Carta
Apostólica de João Paulo II, Ordinatio Sacerdotalis (22.05.1994).
Reza assim: “ainda que a doutrina sobre
a ordenação sacerdotal, reservada exclusivamente aos homens, tenha
sido conservada pela Tradição constante e universal da Igreja e seja
firmemente ensinada pelo Magistério nos documentos mais recentes,
hoje em dia, é considerada por várias tendências, aberta ao debate.
Chega-se mesmo a atribuir um valor puramente disciplinar à posição
tomada pela Igreja, de não admitir as mulheres à ordenação
sacerdotal”.
João Paulo II não quis deixar o debate
aberto: “É por isso, para que não subsista nenhuma dúvida sobre uma
questão de grande importância, que diz respeito à constituição
divina da própria Igreja, declaro, em virtude da minha missão de
confirmar os meus irmãos (cf. Lc 22, 32), que a Igreja não tem, de
maneira nenhuma, o poder de conferir a ordenação sacerdotal a
mulheres e que esta posição deve ser definitivamente sustentada por
todos os fiéis da Igreja” (cf. DC, 19.06.1994).
3. João Paulo II perdeu uma bela
ocasião para convocar um concílio, cuidadosamente preparado com as
mulheres e no qual elas tivessem uma presença significativa. Ao ter
feito a opção que fez, perdeu a oportunidade de rever palavras,
gestos, conceitos e interpretações acerca dos ministérios ordenados,
que não significaram a mesma coisa ao longo de dois mil anos. Nenhum
papa tem poder para encerrar a Igreja e o Mundo de forma definitiva.
|