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1. É próprio do
moralismo destilar maldições sobre as mais autênticas alegrias
humanas. Instalou-se, há muitos séculos, em certas correntes do
cristianismo e reaparece, periodicamente, como se fosse a sua versão
mais genuína pelo seu “desprezo do mundo”. É, na verdade, uma
importação estranha à poética pregação de Cristo que respira, em
cada gesto e em cada parábola, o gosto da plenitude da vida (Jo
20,30-31).
A evasão gnóstica foi denunciada por S.
João ao falar de Cristo como Aquele que ouvimos, vimos com
os nossos olhos e nossas mãos apalparam da Palavra da vida (…) E
isto vos escrevemos para que a nossa alegria seja completa (1 Jo 1,
1-4). A pregação e a intervenção da Igreja só valem na medida em
que forem Evangelho, isto é, revelação de que, da parte de Deus,
todos somos amados, mas com um encargo: amai-vos uns aos outros
(Jo 15, 12-17).
Dir-se-á que qualquer um, em dia sim,
poderia escrever algo parecido. Esqueci, nas transcrições referidas,
uma frase que perturba essa veleidade: ninguém tem maior amor do
que aquele que dá a vida pelos seus amigos. Não fica por aqui:
sois meus amigos se esta for a vossa prática. Se os
bons sentimentos não chegam para a boa literatura, também não
são as boas intenções que nos salvam.
2. João XXIII
agradeceu sempre a Deus ter nascido com bom feitio, mas nunca se
contentou com o seu contagiante bom humor, testemunhado nos
fioretti, que sobre ele foram publicados. Recorde-se a resposta
que deu a quem lhe perguntou quantas pessoas trabalhavam no
Vaticano: mais ou menos metade.
No Resumo das grandes graças feitas
a quem tem pouca estima por si próprio, mas recebe as boas
inspirações e as aplica com humildade e confiança, podemos ler:
«Primeira Graça: Aceitar
com simplicidade e honra o peso do pontificado, com a alegria de
poder dizer que nada fiz para o provocar, absolutamente nada; antes,
com a preocupação diligente e consciente de não ter chamado a
atenção sobre a minha pessoa; muito contente, durante as variações
do Conclave, quando via alguma possibilidade de diminuir no meu
horizonte e voltar-me para outras pessoas, verdadeiramente
digníssimas e venerandas, em minha opinião.
Segunda Graça:
Surgirem, no meu espírito, como simples e de execução imediata,
algumas ideias, nada complexas, pelo contrário bastante simples, mas
de vasto alcance e responsabilidade em relação ao futuro e com
sucesso imediato. Exemplos da expressão: colher as boas inspirações
do Senhor, “simpliciter et confidenter”!
Sem ter pensado nisso antes, terem
saído de mim, numa primeira conversa com o meu Secretário de Estado,
a 20 de Janeiro de 1959, palavras sobre o Concílio Ecuménico, o
Sínodo Diocesano e a remodelação do Código de Direito Canónico,
contrariamente a todas as minhas suposições ou pensamentos sobre
este ponto.
O primeiro a ficar surpreendido com
esta minha proposta fui eu próprio, sem que alguma vez me tivesse
dado indicações a este respeito.
E dizer que tudo, depois, me pareceu
tão natural no seu imediato e continuo desenrolar!
Depois de três anos de preparação
laboriosa, é certo, mas também feliz e tranquila, eis-me agora nas
faldas da Santa Montanha.
Que o Senhor nos ampare para
conduzirmos tudo a bom termo».
3. João XXIII
poderia dizer, como o poeta: o Concílio aconteceu-me. Numa nota
escrita em 1959 pode ler-se: “Este é o mistério da minha vida. Não
procureis outra explicação. Repeti sempre a frase de S Gregório
Nanzianzeno: voluntas tua pax nostra”.
Ao longo de toda a sua vida, como
testemunha o seu Diário, o que procurou, em primeiro lugar,
foi cultivar a humildade para estar disponível, livre, para o que
Deus quisesse fazer dele. Cada passo nesta direcção era um motivo de
alegria. Ele gostava da sua família, gostou da vida no seminário, de
ser padre, de ser bispo, de ser papa e de descobrir que tudo foram
etapas para chegar ao ponto de sentir que o mundo inteiro era a sua
família. Nessa altura, sentiu-se na onda de Deus. Não era uma
conquista ideológica ou teológica, mas o fruto de ter amado todos
aqueles com quem viveu e a quem foi enviado: Bulgária, Turquia,
Grécia, França. Descobriu, não só outras faces da Igreja Católica,
mas também a Igreja Ortodoxa, o Islão e o mundo laico. Foi um
acolhimento transformador, dele próprio e dos outros. Tornou-se um
pontífice, uma pessoa que faz pontes, que põe mundos em contacto.
Ao ler o Diário de João XXIII
parece que tudo lhe acontece sem premeditação, mas não sem método:
“o esforço vigilante de reduzir tudo, princípios, preocupações,
posições, trabalho, ao máximo de simplicidade e de calma; o podar
atentamente a minha vida daquilo que apenas é folhagem inútil e
gavinha e dirigir-me à verdade, à justiça e à caridade,
sobretudo à caridade. Qualquer outro sistema não é mais do que
atitude e busca de afirmação pessoal que se trai e se torna
embaraçante e ridícula. (…) Deixo aos outros a superabundância da
astúcia e da chamada perícia diplomática e continuo a contentar-me
com a minha bonomia e simplicidade de sentimentos, de palavra e de
trato. O resultado final é sempre favorável a quem permanece fiel à
doutrina e aos exemplos do Senhor”.
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