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1. Hoje, na Europa,
já não temos religião cristã suficiente para a culpar de todos os
nossos males. A repetida e gasta retórica da “morte de Deus” também
já não assusta nem seduz. Decretou-se, em nome da autonomia da
razão, que o ser humano, ser de relações múltiplas, deve viajar
sozinho e por sua conta e risco.
Acentuou-se, desde o humanismo dos
séculos XV e XVI, a viragem antropológica que atingiu na
modernidade, com o proclamado acesso do ser humano à idade adulta
(I. Kant), uma confiança muito celebrada e algo exagerada na
ideologia do imparável “progresso”, entretanto sob acusação. Foram
as próprias ciências humanas que acabaram por humilhar o “narcisismo
do homem”, na expressão de S. Freud. A cosmologia mostrou a sua
condição periférica e a biologia fez dele apenas o resultado da
evolução da vida; para a sociologia, não vai além do resultado das
condições sociais e para a psicologia, são as pulsões inconscientes
que o comandam. É, afinal, a vaidade de pouca coisa.
Além do mais, o ser humano, embora
tenha chegado muito tarde ao palco do mundo, pelos crimes que junta
às suas grandes realizações, não pode esperar ser o último a
desaparecer. Ao mostrar-se mais apressado em criar problemas a si
mesmo e à natureza do que em curar a sua persistente vontade de
dominação destruidora, sobretudo pela sua falta de sabedoria, parece
uma espécie sem remédio. Ao consentir na transmutação de todos os
valores, afunda-se no niilismo, na “morte do homem” e pensa numa
saída pela porta do “pós-humano”. O recurso da falta de sentido da
boa medida é o delírio, às vezes, perigoso.
2. Vivemos hoje, a
muitos níveis, num clima paradoxal. Crescem, por um lado,
universidades, centros de investigação científica partilhada e redes
culturais que, todos os dias, nos revelam imagens maravilhosas dos
êxitos das tecnociências. Por outro, guerras e ameaças de guerra
multiplicam as tragédias e misérias. As ameaças nucleares,
reais ou fictícias, ajudam a encobrir a vergonhosa expansão de
negócios das armas.
Quando se pensava que a Europa tinha
optado definitivamente pela rota da cooperação e da paz, deparamos
com o regresso da desconfiança, de velhos ressentimentos, com o
retorno aos nacionalismos fatais, à desagregação que anunciam o
caos, se nada de substancial for feito a tempo. A propaganda, os
caminhos e os processos que levaram à União Europeia fizeram sonhar
com o paraíso.
Imaginar, pensar e construir um
projecto de integração tão espantoso e tão difícil exigia lucidez e
sabedoria política para integrar, sem esmagar povos de histórias e
culturas tão diferentes, e não apenas saídas de burocracias míopes.
A moeda única não pode, só por si, gerar automaticamente o “espírito
europeu”.
Sem a criação contínua da Europa, como
empreendimento de sabedoria, de ética e beleza, todos passarão a
colocar na balança apenas o que cada país tem a ganhar ou perder em
euros. Ao esquecer no sótão da sua construção o horizonte e a alma
da paz que a suscitou, a Europa perde--se na hegemonia dos
interesses de uma Alemanha com pouco respeito pela memória das
vítimas da sua loucura colectiva. Não muito longínqua.
Tive a consolação de ler, na semana
passada, um texto luminoso de Maria João Rodrigues, “Que mensagem
para a Europa?” (Público,10.04). Não é, apenas, um contributo para a
unidade dos europeus. É também uma serena e integradora mensagem
para que a nossa política governamental não dispense os portugueses.
Por outro lado, o poder europeu e a troika podem exigir de nós
rigor, mas sem nos esmagar. No artigo referido, competência é irmã
da sabedoria.
3. É velha, revelha
e mítica, a alternância entre projectos megalómanos e a depressão. A
divina exaltação do ser humano (Gn 1, 1-31) acabou num desastre de
tais dimensões que o próprio Deus já não sabia o que fazer. “O
Senhor reconheceu que a maldade dos homens era grande na Terra, que
todos os seus pensamentos e desejos pendiam sempre para o mal. O
Senhor arrependeu-se de ter criado o Homem sobre a Terra, e o seu
coração sofreu amargamente. O Senhor disse: eliminarei da face da
Terra o Homem que Eu criei e, juntamente com o Homem, os animais
domésticos, os répteis e as aves dos céus, pois estou arrependido de
os ter feito” (Gn 6, 5-8). Arrependido, mas não desesperado. Tinha
uma estratégia alternativa, pois Noé era agradável aos olhos do
Senhor (Gn 6, 9). Com a arca começou outra história e renovou-se a
Aliança.
A Bíblia tem duas narrativas da
criação. São narrativas poéticas que não pretendem explicar o mundo,
mas sugerir, de forma muito bela, o seu sentido. A ciência, pelo
contrário, fala de processos naturais. Apresenta a evolução como
fruto de adaptações e mutações, não sendo fruto do azar, mas da
selecção natural.
Só quem não consegue distinguir poesia
e ciência pode ver contradições onde, de facto, não existem.
O grande conflito que atravessa todo o
AT é teológico. O ser humano não é Deus nem seu rival, é criatura.
Precisa de sabedoria, do sentido da boa medida, na relação com a
natureza e com os outros, para não cair na loucura. A ordem para não
comer da “Árvore da Vida”, é para não comer da árvore do veneno. É
dizer que não vale tudo. O ser humano tem cura, se tiver juízo.
in Público 14.04.2013
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