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1.
Na passada sexta-feira foi celebrada a festa do Sagrado Coração de
Jesus.
A origem desta devoção deve-se a Santa
Margarida Maria de Alacoque, religiosa da Ordem da Visitação, que
manifestou ter recebido extraordinárias revelações pessoais de Jesus
Cristo, entre 1673 e 1675.
Depois, a partir de Portugal, a Beata Maria do Divino Coração,
condessa de Droste zu Vischering, obteve do Papa Leão XIII, em 1899,
a consagração do mundo a esta invocação. Várias congregações
religiosas, femininas e masculinas, assim como igrejas, paróquias,
basílicas e outros monumentos passaram a ser designados como do
Sagrado Coração de Jesus. A devoção das nove primeiras sextas-feiras
de cada mês, acompanhada de doze promessas de garantia, teve um
grande êxito, em vários países.
Em Lisboa, existe uma igreja paroquial dedicada ao Sagrado Coração
de Jesus, obra dos arquitectos Nuno Teotónio Pereira e Nuno Portas,
que recebeu o prémio Valmor em 1975 e é monumento nacional, desde
2010. Apesar de todas as diligências, o Sagrado Coração de Jesus não
conseguiu, na altura, encontrar nenhum grande artista que o quisesse
pintar ou esculpir. Fui ao Google verificar se teria havido algum
esquecimento. Entre as mais de quatrocentas imagens visitadas não
encontrei uma que lá pudesse figurar, sem atentar contra a qualidade
daquela arquitectura. Aliás, a reprodução de tais imagens é sempre a
multiplicação da fealdade. Não é apenas um defeito português, é uma
importação. A revista L’ Art Sacré, dos padres dominicanos
Marie-Alain Couturier e Pie Régamey, na secção campo contra campo,
as imagens do Sagrado Coração de Jesus eram sempre apresentadas como
a desfiguração da autêntica arte sacra. Eles apostaram no génio,
em artistas como Matisse, Rouault, Léger, Bonnard, Chagall,
Braque, Corbusier, entre outros, mas o Coração de Jesus continuou
como está no Google.
Porque será que algumas das expressões mais belas do Antigo e do
Novo Testamento tenham sido transformadas em insuportáveis figuras
que apresentam entre as mãos, sobre o peito, a extracção de um
coração ensanguentado, num realismo que é a própria negação do
caminho simbólico, caminho da transcendência? Que terá isso a ver
com a promessa bíblica evocada no baptismo, “dar-vos–ei um coração
novo e infundirei em vós um espírito novo. Arrancarei do vosso peito
o coração de pedra e dar-vos-ei um coração de carne“? Será a troca
de uma pedra da calçada por um naco de carne humana?
Como encontrar nas ditas imagens do “sagrado coração de Jesus” a
beleza deste apelo? “ Vinde a mim todos os que estais cansados sob o
peso do vosso fardo e eu vos darei descanso. Tomai sobre vós o meu
jugo e aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração, e
encontrareis descanso para as vossas almas, pois o meu jugo é
suave e o meu fardo é leve.”
Sem sensibilidade para a linguagem simbólica, o pseudo-realismo
torna-se grotesco.
2.
Os textos da solenidade da sexta-feira passada são, precisamente, a
orquestração literária deste apelo. Ezequiel era um profeta,
testemunha da situação do povo a que pertencia, um povo no exílio,
que se julgava abandonado. Ezequiel era também um grande poeta,
alguém que salta para fora das evidências empíricas de uma cultura
pastoril. Tem à mão uma realidade partilhada: a dos rebanhos e a dos
pastores. Não vai fazer comparações. Vai colocar Deus a falar e a
agir como nunca nenhum pastor o tinha feito. As metáforas são
indispensáveis, mas podem ser perigosas. Ao servir-se de uma relação
de pastor com as suas ovelhas, aplicada aos seres humanos, pode
incorrer num equívoco. Ninguém gosta de ser ovelha, seja qual for o
senhor. Tomada à letra, essa expressão é degradante, não é de
cidadãos. Para não ofender as ovelhas, quando encontramos seres
humanos servis, chamamos-lhes carneiros.
A parábola do
Bom Pastor (Lc
15,3-7)
faz a ponte entre o Antigo e o Novo Testamento, pois a metáfora só
vale para o pastor, para aquele que cuida das ovelhas, sem pensar no
lucro que lhe dão, mas pelo amor que lhes tem. Usa, por isso, de uma
irracionalidade: deixar em perigo noventa e nove, o rebanho todo,
para ir atrás de uma desgarrada. Ao extremar as atitudes, até ao
absurdo, indica que está a falar de outra coisa que não cabe no
registo do razoável, que está fora da lógica dos números. Para Deus
cada pessoa é insubstituível. Em todo o lado, noventa e nove são
noventa e nove e uma apenas uma. Na lei dos grandes números mais um
ou menos um não é relevante.
3.
Paulo, na segunda leitura (Rom
5,5b-11),
não fala em parábolas, nem constrói grandes teorias psicológicas ou
filosóficas sobre o amor. Só lhe interessa mostrar que a lógica do
comportamento de Deus em relação a nós, salta para fora do amor
razoável. Segue a loucura da sua própria gratuidade. Não tem
porquês. É a respiração do seu modo de ser. Não olha para quem
merece ou não merece ser amado. É o amor que nos tem que nos pode
tornar amáveis, se nele consentirmos. Mas o seu amor é anterior a
tudo. Neste ponto coincide com S. João: Deus é amor, o amor que nos
amou primeiro.
in Público, 15.06.3013
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