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1.
Não vimos de nós mesmos. Também não nos confundimos com o
nosso património genético. Situámo-nos numa história, numa língua e
assumimos, de forma necessariamente selectiva, um património, uma
linhagem. Depois de ter desfeito muitas quimeras, tentamos viver na
companhia da esperança. Não somos nem o último dia, nem a última
noite do mundo. Ao longo do tempo, conhecemos pessoas luminosas e
outras assim-assim.
No passado dia 11, foram celebrados os
50 anos do início do Concílio Vaticano II. Muitos dos que
participaram na preparação e na realização do acontecimento maior da
Igreja Católica no século XX, já morreram. De quem se esperava que
ele fosse acolhido, de forma criativa, na intervenção pastoral,
verificamos que não entendeu ou não quis entender as suas
orientações mais profundas. Não vale a pena referir os movimentos
que preferiam que esse Concílio nunca tivesse existido.
Estava tudo a correr muito bem - numa
Igreja que se procurava que fosse imobilista - quando o desvairado
ou ingénuo João XXIII, ao fazer a barba, se lembrou de convocar os
bispos do mundo inteiro para pensarem tudo de novo. Sentiu que
Igreja precisava de um “aggiornamento”, isto é, de se pôr em dia com
o espírito de Cristo, em confronto com os problemas do mundo
contemporâneo. Não era uma assembleia para dizer, de uma vez para
sempre, o que devia ser o futuro, mas para ensaiar um método de ler
os sinais dos tempos, sabendo que Deus faz sinal à sua Igreja a
partir, não só do seu interior, mas também do mundo que ela não
comanda.
2.
Mais vale tarde do que nunca e, desde que o Movimento Nós Somos
Igreja se lembrou que nem a convocatória nem o começo deste
Concílio podiam ser ignorados, têm-se multiplicado as referências a
estas datas, com maior ou menor convicção. Depois, até se tornou de
bom-tom dizer que o Vaticano II nunca foi tão actual.
De facto, o Vaticano II, em
Portugal, não foi nem preparado, nem acompanhado, nem bem recebido,
pelas instâncias oficiais. Manuel de Almeida Trindade, nas suas
Memórias de um Bispo confessa que faltou um grupo de peritos
nacionais para acompanhar os bispos portugueses no desenrolar do
Concílio e que foi uma lacuna. Se tivessem acompanhado o Concílio
estariam depois em condições de, nas suas dioceses, “fazer um
trabalho de divulgação e explicação da doutrina conciliar”. Mesmo
sem querer fazer um juízo exacto acerca das intervenções dos bispos
portugueses, observa que “houve intervenções que mostraram o nosso
atraso em assuntos teológicos” (…): “os bispos, ocupados com os
trabalhos da pastoreação diária das suas dioceses, não dispõem de
sobras de tempo para se dedicarem, com profundidade, a assuntos
dessa natureza. É, pois, compreensível que a nossa participação não
tenha tido o nível do episcopado do Centro da Europa – ou da que
tivemos no Concílio de Trento”.
3. Isto não
significa que não tivesse havido, em Portugal, pessoas e grupos que
trabalharam para a reforma da Igreja na linha do que veio a ser o
Vaticano II. Essa História, com várias histórias, já encontrou bons
e conhecidos narradores.
No passado dia
6, no Convento de Cristo-Rei (Porto), realizou-se um intenso
colóquio, de três painéis, dedicado a celebrar os 50 anos da
Restauração da Província Portuguesa da Ordem dos Pregadores. Moisés
Martins, professor da Universidade do Minho, mostrou o desconforto
de não ter tido tempo - ao falar da presença dominicana em Portugal
- de abordar a relação dos dominicanos com o Vaticano II. De facto,
mesmo sem ter sido explicitada, com essa designação, esteve presente
em muitos momentos. Destaco a abordagem, lúcida e fervorosa, feita
pelo filósofo e poeta Eduardo Bento, sobre o papel do Studium
Sedes Sapientae (Filosofia e Teologia), frequentado por várias
congregações religiosas. Multifacetada e longa foi a acção do
Instituto S. Tomás de Aquino (ISTA), através do Curso de Verão
de Teologia, que começou por ser, embora não de forma exclusiva, a
iniciação das mulheres à prática da teologia, antes, durante e
depois do Vaticano II, causando muita perturbação em vários sectores
da Igreja.
Além de muitas outras realizações deste
Instituto, que ficam para outra altura, é obrigação da memória
referir os Encontros de Teologia para Leigos, em Coimbra e no
Porto, realizados sob forte vigilância eclesiástica. Deixo aqui
pequenos fragmentos do testemunho do Cónego Urbano Duarte, no Diário
de Coimbra, em 23.02.67: “Uma comissão de leigos incentivou a
realização deste III Encontro de Teologia para Leigos, a cargo dos
Padres Dominicanos de Fátima. (…) Mais uma vez, foi impressionante
e, podemos dizer, novo, o êxito alcançado. Nada em Coimbra se lhe
pode comparar, em matéria de cultura religiosa: (…) os ouvintes,
muitos que em salões caracteristicamente confessionais não costumam
entrar, eram às centenas. A sobriedade melíflua, o “santo engano”,
ou a paz morta à sombra da ignorância não tiveram assento nestas
assembleias de reflexão sobre a Fé.”
Tanta coisa fica por contar… mas
seria uma tristeza que a memória de mais de 50 anos não despertasse
uma Igreja de futuro.
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