1.
A memória e a recepção do Concílio Vaticano II continuam a dar que
pensar, falar e escrever, embora em âmbitos restritos. Não é bom que
as grandes religiões andem ora distraídas, ora a reagir com ameaças
num mundo que continua assustador. As comemorações devem servir para
rever o passado e para discernir os sinais que apontem hipóteses
viáveis de um futuro aberto para todos, sem medo e sem ingenuidade.
Aos movimentos espirituais compete a tarefa de ajudar a descobrir
que, sem práticas de fraternidade irrestrita, não há salvação para a
aventura humana.
A Igreja Católica, ao inscrever o Ano da Fé no cinquentenário do
Vaticano II, não deve ceder ao marketing da banalidade: pelo preço
de um, leve dois. Espero que a junção da memória do Concílio e dos
seus recursos adormecidos, aliada às urgências do nosso tempo,
desafie a temática do Ano da Fé, sem abafar questões eclesiais,
teimosamente adiadas.
A Ouvidoria de Ponta Delgada organizou um longo ciclo de
conferências para o Ano da Fé, subordinadas ao tema geral A Fé
Cristã Hoje. Convidou-me a reabrir o cansado e inevitável debate
das relações entre Deus e o Homem, duas palavras poluídas por
maus usos. Deixarei aqui, de forma esquemática, algumas
marcas desse percurso, embora sem os argumentos e as exemplificações
da conferência.
Partir de Deus para o encontro com o ser humano é manter-se na
“idade teológica”, segundo a periodização simplista de Auguste
Comte. Mas o próprio Tomás de Aquino, que muito lutou pela
consistência do mundo em si mesmo, organizou a Suma Teológica dentro
do esquema neoplatónico: é de Deus, dessa fonte misteriosa, que
continuamente vimos - nós e o universo - e a Deus regressamos, numa
viagem da nossa responsabilidade, pelo caminho da graça, vínculo do
divino e do humano, na pessoa e intervenção de Jesus Cristo, rosto
do céu e da terra.
Nesta referência, tudo é considerado a partir de Deus, embora com
ressalvas: d’Ele nada se pode dizer sem a negação de precipitadas
analogias que impedem o salto para a experiência do seu mistério
inabarcável. Deus não cabe na ilusão de nenhum conceito e só na
linguagem metafórica pode acontecer o milagre do seu advento em
humanidade. É, aliás, na grande música, na poesia, em parábolas, na
pintura, nas artes, no humor, que poderá ser sugerida a sua
passagem.
O terminal do Credo e das argumentações teológicas não são os
artigos do Credo, mas a infindável “treva luminosa” que provoca o
caminhar incansável dos místicos. De Deus, tanto mais saberemos,
quanto mais nos convencermos de ser “conhecido como desconhecido”.
Não se confunda esta radical e ardente ignorância com o silêncio da
preguiça catequética. Inspirado andava o Mestre Eckhart, quando
rezava: Deus livra-me de deus, livra-me dos ídolos que levam o seu
nome e procuram circunscrever e prender a sua presença transcendente
a pessoas, lugares, palavras, crenças, rituais e movimentos
religiosos. É essa idolatria que leva à alternância mediática do
exílio e do regresso dos deuses.
2.
Isso, por um lado. Por outro,
quando se fala das relações do ser humano com Deus, entra-se na
“idade filosófica” que parte da questão que o ser humano é para si
mesmo, procurando saber donde brotam as suas próprias perguntas.
A filosofia não começa por Deus, ainda que se diga que, desde
sempre, os seres humanos, para decifrar o enigma que constituem para
si próprios, fossem bater às portas dos desuses. A própria filosofia
da religião situa-se no âmbito da razão, como se pode ver nas
célebres quatro questões de I. Kant. Este iminente filósofo teve, no
entanto, o cuidado de advertir: é próprio da razão levantar questões
que ela própria não pode resolver! Na filosofia existem perguntas
básicas: quem sou eu? De quem sou responsável? O que será de mim e
dos outros? Como libertar o fundo de bondade que existe no ser
humano? Será a qualidade das sensações a medida de tudo?
Pelos passos da razão teórica e experimental passou-se à chamada
“idade das ciências”, que não precisam da hipótese Deus para
existirem e se desenvolverem, embora não possam evitar o espanto
diante da inteligibilidade do mundo que as torna possíveis. Por
método, não são religiosas. Nem a fé teologal se ocupa das ciências,
nem as ciências se ocupam dos pressupostos da teologia. Quando há
conflitos, é porque uma ou as duas se atrevem a falar do que não
cabe nas respectivas competências.
A ideologia cientista acreditava que o progresso das ciências
bastaria para resolver todos os problemas humanos e acabaria por
dispensar a religião, impulso da esperança, segundo I. Kant. Essa
ideologia era insensível ao “mistério de existir”, como lhe chamou
Fernando Pessoa. È legítimo supor que o oculto é sempre mais vasto
do que aquilo que o desenvolvimento das ciências pode revelar. A
distinção entre problema e mistério, elaborada por
Gabriel Marcel, continua sugestiva e fecunda.
Quando a modernidade entrou em crise, tanto a teologia como a
filosofia da religião depararam, do ponto de vista cultural, com a
chamada “morte de Deus”, anunciada por Nietzsche. Para uns, a
notícia é exagerada, para outros, uma evidência. Uns viverão como se
Ele não existisse e outros não podem passar sem o invocar.
Continuaremos no próximo domingo.
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