Bento Domingues - Triplo II: O blog do TriploV - Revista TriploV de Artes, Religiões e Ciências
 
 
 

         1. Deus não figura em nenhum lugar da escala das necessidades humanas. É mais ou menos consensual que as necessidades básicas começam por ser de natureza fisiológica: fome, sede, sono, sexo, etc.. Logo a seguir vem a necessidade de segurança: viver sem medo de ser espancado, roubado ou humilhado e de não ter com que viver nem onde viver. Mas sem amor e sentido de pertença, sem uma relação afectiva privilegiada, sem família e amigos, sem integrar um grupo, uma tribo ou uma nação, não há vida verdadeiramente humana. Não basta ver reconhecido o seu trabalho. É necessário sentir-se reconhecido como pessoa. Só quem se sente valorizado é capaz de reconhecer e lutar pela dignidade dos outros.

BENTO DOMINGUES, op

Santíssima Trindade

Bento Domingues . Frade da Ordem dos Dominicanos, teólogo, professor, escritor

 
 

Este quadro, por mais ajustado que seja, é abstracto. O percurso de cada pessoa, no fundo da sua alma e no mundo das suas relações, é complexo. A vida é “um livro do desassossego”. Do interior da nossa real e incurável finitude, se não andarmos distraídos e não aceitarmos o baile de máscaras que nos inventaram, pode nascer a pergunta sobre o sentido da nossa existência. Recolho a de Wittgenstein:

“Que sei eu sobre Deus e o sentido da vida? Sei que este mundo existe. Que estou nele como o meu olho no seu campo visual. Que algo nele é problemático, a que chamamos o seu sentido. Que este sentido não reside nele, mas fora dele. (…) Ao sentido da vida, i. é, ao sentido do mundo, podemos chamar Deus e associar-lhe a metáfora de Deus como um pai. A oração é o pensamento do sentido da vida. (…) Crer em Deus significa compreender a pergunta pelo sentido da vida. (…) Crer em Deus significa ver que a vida tem um sentido.”[i]

Este filósofo procura entender a originalidade do jogo de linguagem próprio da religião, que não deve ser confundido com o da filosofia ou o da ciência: “se quem acredita em Deus olha em redor e pergunta: Donde vem tudo o que vejo?, Donde vem tudo isto?, não anseia por uma explicação (causal); a sua pergunta é, no essencial, expressão de um certo anseio. Ela expressa uma atitude face a todas as explicações.” O que confere o sentido às palavras é o seu uso e a prática que traduzem.

2. Desde há várias décadas, a ciência é a rainha do mundo académico. O seu prestígio está sempre a crescer e o da teologia a diminuir. Deus não é objecto de ciência, não pode ser exposto a nenhum teste de observação e experimentação. No plano popular, nos meios de comunicação, só existe o que aparece e Deus ainda não apareceu na televisão. Também não é um empresário e muitos se queixam da gestão do mundo que lhe é atribuída: se fosse bom e omnipotente não haveria tanta guerra, tanta violência, tanta fome e tantas catástrofes naturais.

O fim da religião já foi muitas vezes anunciado e sempre adiado. É, por natureza, uma busca de sentido, uma orientação global da vida, uma grande exigência ética de transformação do mundo, para que haja uma maior justiça e amor, ao serviço dos mais carenciados.

Depois do diálogo inter-religioso extensivo aos agnósticos e ateus, cresce, cada vez mais, o chamado diálogo entre ciência e religião ou, mais exactamente, entre ciências e teologias, em novas bases.

3. Foi aconselhado que num debate teológico devia sair vencedor quem provasse saber menos sobre Deus. Tomás de Aquino escreveu que acerca de Deus tanto mais sabemos quanto mais nos apercebemos que excede tudo o que dele compreendemos. Numa experiência mística concluiu que tudo quanto tinha escrito lhe parecia palha seca e deixou a Summa Theologiae inacabada. A linguagem menos imperfeita para exprimir o acolhimento da fé é, sempre, simbólica, metafórica, a da beleza, a do amor e a da responsabilidade ética.

Hoje, os cristãos celebram a festa da Santíssima Trindade. Por sua causa, tanto o judaísmo como o islão não acreditam muito na autenticidade do monoteísmo cristão. Até para alguns cristãos é uma complicação desnecessária. O próprio I. Kant não via que se pudesse extrair qualquer coisa de prático dessa fé.

Tenho, no entanto, esta simbólica como fundamental para pensar e acolher as expressões do mistério de Deus e do mundo. Não é por acaso que a grande questão das nossas sociedades, a todos os níveis, é sempre a da unidade e a da pluralidade. Será possível viver juntos, respeitando e promovendo, ao mesmo tempo, a comunhão entre todos e a originalidade de cada um?

Se privilegiamos a pluralidade corremos o risco da fragmentação. Se sublinhamos muito a urgência da unidade, espreita-nos a uniformidade. A coincidência entre unidade e pluralismo parece um milagre sempre diferido. O pluralismo não é funcional e a unidade é sufocante, tanto na Igreja como na sociedade. S. Paulo gastou muita energia em encontrar metáforas que garantissem a coabitação da unidade e da diversidade dos dons, frutos do mesmo espírito, num só corpo com muitos órgãos e membros.

      Em pouco menos de duas semanas, o centralismo e o secretismo do Vaticano, em nome da unidade e da santidade da Igreja, revelaram os mesmos vícios de outros estados e governos, sobre os quais é preciso manter uma vigilância metódica.

 

[i] (L. Wittgenstein, Tagebücher 1914-1916, Werkausgabe, Vol. I, Suhrkampf: Francoforte,  1984, 167-8).

 
 

Público, 3 de junho de 2012

 

   
   
 

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