Este quadro, por mais ajustado que seja, é abstracto. O percurso
de cada pessoa, no fundo da sua alma e no mundo das suas
relações, é complexo. A vida é “um livro do desassossego”. Do
interior da nossa real e incurável finitude, se não andarmos
distraídos e não aceitarmos o baile de máscaras que nos
inventaram, pode nascer a pergunta sobre o sentido da nossa
existência. Recolho a de Wittgenstein:
“Que sei eu sobre Deus e o sentido da vida? Sei que este mundo
existe. Que estou nele como o meu olho no seu campo visual. Que
algo nele é problemático, a que chamamos o seu sentido. Que este
sentido não reside nele, mas fora dele. (…) Ao sentido da vida,
i. é, ao sentido do mundo, podemos chamar Deus e associar-lhe a
metáfora de Deus como um pai. A oração é o pensamento do sentido
da vida. (…) Crer em Deus significa compreender a pergunta pelo
sentido da vida. (…) Crer em Deus significa ver que a vida tem
um sentido.”[i]
Este filósofo procura entender a originalidade do jogo de
linguagem próprio da religião, que não deve ser confundido com o
da filosofia ou o da ciência: “se quem acredita em Deus olha em
redor e pergunta: Donde vem tudo o que vejo?, Donde vem tudo
isto?, não anseia por uma explicação (causal); a sua pergunta é,
no essencial, expressão de um certo anseio. Ela expressa uma
atitude face a todas as explicações.” O que confere o sentido às
palavras é o seu uso e a prática que traduzem.
2.
Desde há várias décadas, a ciência é a rainha do mundo
académico. O seu prestígio está sempre a crescer e o da teologia
a diminuir. Deus não é objecto de ciência, não pode ser exposto
a nenhum teste de observação e experimentação. No plano popular,
nos meios de comunicação, só existe o que aparece e Deus ainda
não apareceu na televisão. Também não é um empresário e muitos
se queixam da gestão do mundo que lhe é atribuída: se fosse bom
e omnipotente não haveria tanta guerra, tanta violência, tanta
fome e tantas catástrofes naturais.
O fim da religião já foi muitas vezes anunciado e sempre adiado.
É, por natureza, uma busca de sentido, uma orientação global da
vida, uma grande exigência ética de transformação do mundo, para
que haja uma maior justiça e amor, ao serviço dos mais
carenciados.
Depois do diálogo inter-religioso extensivo aos agnósticos e
ateus, cresce, cada vez mais, o chamado diálogo entre ciência e
religião ou, mais exactamente, entre ciências e teologias, em
novas bases.
3.
Foi aconselhado que num debate teológico devia sair vencedor
quem provasse saber menos sobre Deus. Tomás de Aquino escreveu
que acerca de Deus tanto mais sabemos quanto mais nos
apercebemos que excede tudo o que dele compreendemos. Numa
experiência mística concluiu que tudo quanto tinha escrito lhe
parecia palha seca e deixou a Summa Theologiae inacabada.
A linguagem menos imperfeita para exprimir o acolhimento da fé
é, sempre, simbólica, metafórica, a da beleza, a do amor e a da
responsabilidade ética.
Hoje, os cristãos celebram a festa da Santíssima Trindade. Por
sua causa, tanto o judaísmo como o islão não acreditam muito na
autenticidade do monoteísmo cristão. Até para alguns cristãos é
uma complicação desnecessária. O próprio I. Kant não via que se
pudesse extrair qualquer coisa de prático dessa fé.
Tenho, no entanto, esta simbólica como fundamental para pensar e
acolher as expressões do mistério de Deus e do mundo. Não é por
acaso que a grande questão das nossas sociedades, a todos os
níveis, é sempre a da unidade e a da pluralidade. Será possível
viver juntos, respeitando e promovendo, ao mesmo tempo, a
comunhão entre todos e a originalidade de cada um?
Se privilegiamos a pluralidade corremos o risco da fragmentação.
Se sublinhamos muito a urgência da unidade, espreita-nos a
uniformidade. A coincidência entre unidade e pluralismo parece
um milagre sempre diferido. O pluralismo não é funcional e a
unidade é sufocante, tanto na Igreja como na sociedade. S. Paulo
gastou muita energia em encontrar metáforas que garantissem a
coabitação da unidade e da diversidade dos dons, frutos do mesmo
espírito, num só corpo com muitos órgãos e membros.
Em pouco menos de duas semanas, o centralismo e o
secretismo do Vaticano, em nome da unidade e da santidade da
Igreja, revelaram os mesmos vícios de outros estados e governos,
sobre os quais é preciso manter uma vigilância metódica.
[i]
(L. Wittgenstein, Tagebücher 1914-1916,
Werkausgabe, Vol. I, Suhrkampf: Francoforte, 1984,
167-8).