1. Existem, ao que
se diz, cada vez mais provas de que somos bons no que poderia
parecer o mais difícil, isto é, nas ciências, nas artes, nas letras,
mas também crescem os sinais de incapacidade de sermos decentes no
serviço do bem público, permitindo o impensável na governação do
país, a vários níveis.
Insistimos em nos afastar das más
companhias, sobretudo da Grécia, encantados com elogios talvez
interesseiros e de eficácia duvidosa. Ao crescerem, todos os dias,
as evidências e os rumores de que o rol dos países em dificuldades e
ameaçados, as más companhias são inevitáveis. Já não falta quem diga
que a pior das companhias até parece ser o próprio regime da UE e da
sua insensata moeda.
Para que a Europa não fique com as
culpas todas, recorda-se que a origem da crise é norte-americana e a
globalização é o sistema mais rápido de contágio, tanto do que serve
para culpabilizar, como para desculpabilizar tudo e todos. A hora é
dos chamados países emergentes. Os mais cépticos acrescentam:
esperem pela roda da sorte.
Nesse panorama simplório, os velhos
consolam-se por lhes ser poupado o espectáculo do desfecho da
estupidez; os outros confiam que não há mal que sempre dure e que,
entretanto, alguma coisa se há-se arranjar. A verdade do humor é
implacável: se os velhos estão cada vez mais velhos, os novos não
estão cada vez mais novos.
É notório que, nos tempos mais
recentes, a humanidade tem acelerado o desenvolvimento das suas
capacidades científicas e técnicas e, nas últimas décadas, Portugal
não ficou fora desse movimento. É nefasta a ilusão de que é possível
dispensar algo de mais difícil de conseguir: a orientação da vida
pessoal e colectiva em termos éticos. A boa medida é fruto de um
intelecto que deseja e de um desejo que pensa, na procura de
instituições justas. Política e ética da virtude não são a mesma
coisa, mas não podem andar separadas.
Uma boa filosofia baseada na
experiência e guiada pela virtude da prudência, isto é, pela decisão
avisada, exige muito tempo e contínuas conversões do desejo. Dada a
persistência do egoísmo, da crueldade, do ódio e do mau uso da
ciência e da técnica, não falta quem pense que já não há mutação
mental ou do coração que nos possa salvar. O ser humano é uma causa
perdida.
A mutação que se impõe não é, pois, de
ordem mental, mas genética. Por esse caminho, a humanidade seria a
primeira espécie animal do universo conhecido a organizar as
condições da sua própria substituição.
2. Michel
Houellebecq escreveu as suas Partículas Elementares para
prestar homenagem de despedida a essa espécie desafortunada e
corajosa - ainda tão pouco diferente do macaco -, mas que é a nossa,
capaz de um egoísmo ilimitado e de violências inauditas, mas que
transportou consigo aspirações nobres e nunca deixou de acreditar na
bondade e no amor, sem as conseguia realizar. Com a
substituição genética anunciada, para os humanos da antiga
raça, esse novo mundo parecia o paraíso.
Por mais aberrante que essa
ficção nos possa parecer, não é muito original. Numa das narrativas
bíblicas da criação, o optimismo é total: “Deus criou o ser humano à
sua imagem, criou-o à imagem de Deus; Ele os criou homem e mulher.
(…) Deus, vendo toda a sua obra, considerou-a muito boa” (Gn. 1,
26-31).
Há quem diga que o Senhor se deve ter
distraído com alguma coisa pois “a maldade dos homens era grande
sobre a Terra, que todos os seus pensamentos e desejos tendiam
sempre e unicamente para o mal. O Senhor arrependeu-se de ter criado
o homem sobre a Terra e o seu coração sofreu amargamente. O Senhor
disse: eliminarei da face da terra o homem que Eu criei e,
juntamente, com o homem os animais domésticos, os répteis e as aves
dos céus pois estou arrependido de os ter feito” (Gn. 6, 5-7).
A narrativa da corrupção atinge
proporções tais que Deus não está só arrependido da obra que fez. A
sua vontade é acabar com tudo mediante um dilúvio. Como o fim de
tudo seria também o fim da narrativa, esta vai continuar com
um salvador, acompanhado de todas as espécies. É a Arca de Noé. No
final, Deus promete não mais amaldiçoar a terra por causa do homem,
embora com muito pouca confiança “pois as tendências do coração
humano são más desde a juventude” (Gn.8, 21).
3. O Novo
Testamento conhece duas genealogias teológicas de Jesus, não
propriamente biológicas. A de S. Mateus começa com Abraão (1, 1-17);
a de S. Lucas vai recuando de José até filho de Adão, filho de Deus
(3, 23-38). Segundo este evangelista, Jesus ao iniciar a Sua
intervenção, tinha mais ou menos 30 anos. Começou tarde. Já tinha
experiência profissional e algum tempo como discípulo de João
Baptista, o austero, que nunca deixou de admirar. Escolheu, no
entanto, outro rumo depois de uma experiência espiritual, que não se
enquadrava com nada do que tinha vivido até aí (Lc. 7, 18-35;16,
16).
Jesus ficou tão marcado que, desde esse
momento, Deus deixou de ser propriedade privada de um povo e para um
povo, ou de algumas pessoas privilegiadas. São os caminhos de
inclusão ou de exclusão que avaliam o coração das pessoas, das
famílias, das sociedades e das políticas.
Veremos como.
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