Bento Domingues - Triplo II: O blog do TriploV - Revista TriploV de Artes, Religiões e Ciências
 
 
 
 
 
 

BENTO DOMINGUES, op

O ser humano será uma causa perdida? 

Bento Domingues. Frade da Ordem dos Dominicanos, teólogo, professor e escritor.

1. Existem, ao que se diz, cada vez mais provas de que somos bons no que poderia parecer o mais difícil, isto é, nas ciências, nas artes, nas letras, mas também crescem os sinais de incapacidade de sermos decentes no serviço do bem público, permitindo o impensável na governação do país, a vários níveis.

Insistimos em nos afastar das más companhias, sobretudo da Grécia, encantados com elogios talvez interesseiros e de eficácia duvidosa. Ao crescerem, todos os dias, as evidências e os rumores de que o rol dos países em dificuldades e ameaçados, as más companhias são inevitáveis. Já não falta quem diga que a pior das companhias até parece ser o próprio regime da UE e da sua insensata moeda. 

Para que a Europa não fique com as culpas todas, recorda-se que a origem da crise é norte-americana e a globalização é o sistema mais rápido de contágio, tanto do que serve para culpabilizar, como para desculpabilizar tudo e todos. A hora é dos chamados países emergentes. Os mais cépticos acrescentam: esperem pela roda da sorte.

Nesse panorama simplório, os velhos consolam-se por lhes ser poupado o espectáculo do desfecho da estupidez; os outros confiam que não há mal que sempre dure e que, entretanto, alguma coisa se há-se arranjar. A verdade do humor é implacável: se os velhos estão cada vez mais velhos, os novos não estão cada vez mais novos.

É notório que, nos tempos mais recentes, a humanidade tem acelerado o desenvolvimento das suas capacidades científicas e técnicas e, nas últimas décadas, Portugal não ficou fora desse movimento. É nefasta a ilusão de que é possível dispensar algo de mais difícil de conseguir: a orientação da vida pessoal e colectiva em termos éticos. A boa medida é fruto de um intelecto que deseja e de um desejo que pensa, na procura de instituições justas. Política e ética da virtude não são a mesma coisa, mas não podem andar separadas.

Uma boa filosofia baseada na experiência e guiada pela virtude da prudência, isto é, pela decisão avisada, exige muito tempo e contínuas conversões do desejo. Dada a persistência do egoísmo, da crueldade, do ódio e do mau uso da ciência e da técnica, não falta quem pense que já não há mutação mental ou do coração que nos possa salvar. O ser humano é uma causa perdida.

A mutação que se impõe não é, pois, de ordem mental, mas genética. Por esse caminho, a humanidade seria a primeira espécie animal do universo conhecido a organizar as condições da sua própria substituição.

2. Michel Houellebecq escreveu as suas Partículas Elementares para prestar homenagem de despedida a essa espécie desafortunada e corajosa - ainda tão pouco diferente do macaco -, mas que é a nossa, capaz de um egoísmo ilimitado e de violências inauditas, mas que transportou consigo aspirações nobres e nunca deixou de acreditar na bondade e no amor, sem as conseguia realizar. Com a substituição genética anunciada, para os humanos da antiga raça, esse novo mundo parecia o paraíso.

Por mais aberrante que essa ficção nos possa parecer, não é muito original. Numa das narrativas bíblicas da criação, o optimismo é total: “Deus criou o ser humano à sua imagem, criou-o à imagem de Deus; Ele os criou homem e mulher. (…) Deus, vendo toda a sua obra, considerou-a muito boa” (Gn. 1, 26-31).

Há quem diga que o Senhor se deve ter distraído com alguma coisa pois “a maldade dos homens era grande sobre a Terra, que todos os seus pensamentos e desejos tendiam sempre e unicamente para o mal. O Senhor arrependeu-se de ter criado o homem sobre a Terra e o seu coração sofreu amargamente. O Senhor disse: eliminarei da face da terra o homem que Eu criei e, juntamente, com o homem os animais domésticos, os répteis e as aves dos céus pois estou arrependido de os ter feito” (Gn. 6, 5-7).

A narrativa da corrupção atinge proporções tais que Deus não está só arrependido da obra que fez. A sua vontade é acabar com tudo mediante um dilúvio. Como o fim de tudo seria também o fim da narrativa, esta  vai continuar com um salvador, acompanhado de todas as espécies. É a Arca de Noé. No final, Deus promete não mais amaldiçoar a terra por causa do homem, embora com muito pouca confiança “pois as tendências do coração humano são más desde a juventude” (Gn.8, 21).      

3. O Novo Testamento conhece duas genealogias teológicas de Jesus, não propriamente biológicas. A de S. Mateus começa com Abraão (1, 1-17); a de S. Lucas vai recuando de José até filho de Adão, filho de Deus (3, 23-38). Segundo este evangelista, Jesus ao iniciar a Sua intervenção, tinha mais ou menos 30 anos. Começou tarde. Já tinha experiência profissional e algum tempo como discípulo de João Baptista, o austero, que nunca deixou de admirar. Escolheu, no entanto, outro rumo depois de uma experiência espiritual, que não se enquadrava com nada do que tinha vivido até aí (Lc. 7, 18-35;16, 16).

Jesus ficou tão marcado que, desde esse momento, Deus deixou de ser propriedade privada de um povo e para um povo, ou de algumas pessoas privilegiadas. São os caminhos de inclusão ou de exclusão que avaliam o coração das pessoas, das famílias, das sociedades e das políticas.

Veremos como.

 

 

   
   
 
  Público, 16 de dezembro de 2012
   
 

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