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Somos filhos de uma herança cada vez menos
conhecida e que também já não sabemos comunicar de modo criador. No
entanto, a realidade vai-se construindo, com mais ou menos êxito,
numa transfusão de memórias, recebendo e dando sinais de geração em
geração para viver e fazer algo de novo. Não sei o que sou e não
sou o que julgo ser (A. Silesius). Estamos sempre mergulhados no
sensível, no racional e no
incompreensível.
Em contexto de “Nova Evangelização”, a pergunta
inevitável é esta: como evangelizar a Semana Santa? Que fazer para
que se torne um intenso retiro consagrado à revisão e transformação
da vida? O seguimento de Cristo não é um ritual nem sequer o ritual
da Semana Santa. Os fanáticos das rubricas nas cerimónias religiosas
ficam satisfeitos ao cumprir um regulamento. Chamam àquilo a
Liturgia da Igreja, embora sejam os seus coveiros paramentados.
É verdade que o ser humano, como os outros
animais, não pode viver sem rituais, mas quando não procura o seu
sentido profundo, torna-se seu escravo. É a lição que a liberdade de
Jesus, em relação ao culto do seu povo, nos deixou.
Numa celebração comunitária não se pode
prescindir da beleza dos ritos enquanto fontes poéticas e musicais
da vida nova. A improvisação, aliás, prevista nos começos do
cristianismo, só é possível quando é fruto de um sopro divino e não
da negligência.
2. Em todas as celebrações, a referência
primordial é o que aconteceu, há dois mil anos, com Jesus de Nazaré:
o seu percurso, a sua palavra, as suas opções e o preço que teve de
pagar, para não trair o que nele havia de mais íntimo. A fé das
comunidades do Novo Testamento nunca conseguiu desligar-se dessa
história, mas não era só para a evocar e interpretar, ainda que de
mil maneiras. O que nessa história há de salvífico atinge todos os
tempos e lugares, se for acolhido no processo de transformação da
vida, na liturgia ou no quotidiano: “estarei convosco até à
consumação dos séculos” Quais são os gestos, as palavras, as
atitudes, os acontecimentos, os estilos de vida que nos dizem hoje
que Cristo é nosso contemporâneo?
Não há celebração da Semana Santa sem a dupla
leitura da Paixão de Cristo e a Adoração da Cruz. Quem vê de fora
pode julgar que é para alimentar um cristianismo sacrificial, mil
vezes denunciado. Mas quem nelas participa também se sente
interrogado. Jesus sofreu muito, mas pode-se ficar com a ideia de
que ele já sabia o desenlace feliz “ao terceiro dia”. Por outro
lado, se tinha de passar por aquilo para fazer a vontade de Deus,
que Deus ou que Pai era aquele? Adorar a cruz? Jesus alguma vez a
adorou? Afinal, a cruz foi-lhe imposta pelos judeus, pelos romanos
ou por Deus?
Antes de mais, os textos do Novo Testamento
nasceram para superar o absurdo de um Messias crucificado. O que é
que realmente se passou com Jesus para chegar aquele ponto? Foi
apanhado de surpresa? E Deus, porque o deixou passar por aquela
tragédia?
Só um pretensioso insensato poderia tentar
responder, em algumas linhas, a este monte de interrogações. Direi,
apenas, a minha convicção.
3. Nietzsche, que tanto atacou o
cristianismo sacrificial, reconheceu que o Nazareno gostava da vida.
Perante a crucifixão de Jesus, todas as tentativas para entender
esse acontecimento, sejam elas de adversários, de amigos ou de
seguidores, deixam sempre um grande vazio, a impressão de que há
algo que escapa a todas as indagações, sejam elas de que tipo forem.
Estamos perante o incompreensível. O que não podemos é
acrescentar-lhe elaborações ridículas.
Parto do princípio de que gostar de sofrer é uma
doença. Nada no Novo Testamento nos diz que Jesus precisava de
psiquiatra. A desqualificação ia em sentido contrário: era um
comilão e um beberrão (Lc. 7, 34). Mas não são doentes as pessoas
que sofrem por muito amar. Uma coisa é amar o sofrimento e outra,
muito diferente, é ser capaz de dar a vida por amor.
Jesus aparece na cruz perdido no sofrimento, num
sofrimento sem qualquer sentido: Meu Deus, meu Deus, porque me
abandonaste? No entanto, o centurião romano, vendo como havia
expirado, confessou: de facto este homem era Filho de Deus
(Mc.15, 33-39).
S. Paulo, depois da experiência que teve de
Cristo, que lhe transformou a vida, não suportava que o
aconselhassem a apresentar Jesus Cristo, pondo de lado a crucifixão.
Paulo não cede: “os judeus pedem sinais e os gregos andam em busca
de sabedoria; nós, porém, anunciamos Cristo crucificado, que, para
os judeus é escândalo, para os gentios é loucura, mas, para aqueles
que são chamados, tanto judeus como gregos, é Cristo poder de Deus e
sabedoria de Deus”.
Jesus é Cristo, é o Messias, precisamente porque
é, apenas, o poder e a sabedoria do puro amor. |